Ricardo III de William Shakespeare, O que há no meio de nós?
Introdução
Pretendo, nesta minuciosa exposição, levar ao leitor o conhecimento dos fatos imutáveis que fazem parte da história, valendo-me de uma peça teatral escrita pelo Sir William Shakespeare (1564-1616) e que atualmente, no Brasil, entrou em evidência com sua adaptação e tradução feita para o teatro pelo seu também diretor, o apresentador Jô Soares. Pretendo conduzir-lhes por esta obra e lhes apresentá-la percorrendo as suas entrelinhas, a fim de que você, leitor, possa tirar suas próprias conclusões e descobrir se este homem, este rei, este vilão, este herói é, afinal, culpado ou não. Se ele foi premeditado ou se apenas deixou-se levar pelo momento que se mostrou propício.
1. A História de Ricardo III
Ricardo III foi o rei da Inglaterra no período de 1483 a 1485. Estava próximo o fim da Guerra das duas Rosas onde as famílias Lancaster e York lutavam para regerem o país que chegaria a dominar 2/3 do mundo. Duas famílias que possuíam, cada uma, o seu próprio exército de terra. Ricardo era o filho caçula de Ricardo de York e da Duquesa de York. Foi o último rei a representar um período sombrio da história da Inglaterra. Era conhecido como Duque de Gloucester, também era irmão de Jorge, duque de Clarence e de Eduardo IV, que governou de 1461 a 1483, pois herdara, após a morte de seu pai, o direito à coroa, depois de haverem destronado a Henrique VI e seu filho Eduardo, príncipe de Gales. Eduardo IV casou-se com Elisabeth Woodville, viúva e mãe de um jovem. Deste enlace vieram mais duas crianças: Eduardo V e seu irmão menor, Ricardo. E a irmã mais velha dos dois, também chamada de Elisabeth. Estes dois, após a morte do rei, foram seqüestrados e assassinados em Junho de 1483, na Torre de Londres, por ordem de Ricardo de Gloucester, o nosso Ricardo III, que declarou ilegítimo o nascimento dos dois jovens príncipes. Desta maneira sombria e macabra Ricardo III é lembrado nas enciclopédias e livros de história. Ricardo Morrera em batalha em Bosworth, em 1845 por Henrique Tudor, herdeiro dos Lancaster. Que se casou com Elisabeth e unificaram as duas rosas em uma só sobre o nome da dinastia dos Tudor.
2. A História contada por Shakespeare
Ricardo foi descrito muito tempo depois por um homem, a quem se levanta mitos e lendas, como um homem rude, perverso e maquiavélico e que fora capaz, pelo poder, de matar os próprios sobrinhos.
Ricardo III era um homem desprovido de atributos físicos e possuía um defeito físico. Foi o último rei da casa de York a assumir o trono Inglês antes que se levantasse a dinastia dos Tudor, com o Conde de Richmond.
Nesta observação, nos nortearemos pelo texto traduzido e adaptado por Jô Soares, em virtude de ser recente e estar mais accessível ao público.
E é para este público que Ricardo, logo no início se mostra:
“(...) Mas eu não fui moldado pra essas gracinhas amorosas, e que não espero os prazeres do amor nem das mocinhas mais devassas, eu que fui construído às pressas por uma natureza descuidada que se esqueceu de me completar; e me lançou no mundo, disforme, mal-acabado, estranho e sem feitio, fico só observando entediado a minha sombra, perplexo com a minha deformidade. E como eu não participo dessas diversões, me dedico a ser o mais canalha dos canalhas. (...)” (Soares, págs 17 e 18)
Ricardo, durante todo o desenrolar da trama não esconde do público quem ele realmente é. Não nega haver matado a Henrique VI e seu filho Eduardo em campo de batalha. Conspira para a morte do seu irmão Clarence, que é morto por seu irmão, o rei Eduardo IV – que dá a ordem para que seu irmão seja morto, porém volta atrás em sua decisão, entretanto muito tarde, pois Ricardo já havia favorecido o acesso dos dois assassinos até a torre onde Clarence encontrava-se preso e levavam consigo a ordem do Rei para matá-lo enquanto Ricardo guardava consigo a revogação da mesma ordem. Ricardo manda matar os seus dois sobrinhos para assumir o trono vago por seu irmão usando o argumento de que ambos eram bastardos, já que, segundo ele, o seu irmão Eduardo IV houvera se casado com a princesa de Sabóia da França por procuração e depois com Elizabeth Woodville, sendo este um casamento inválido, bígamo.
Manda matar a todos os que se voltam contra ele como seu primo Buckingham, que conspirara com ele até a sua ascensão ao trono e Hastings que se opôs às suas vontades. Mata a sua esposa, Anne, viúva de Eduardo, o falecido Príncipe de Gales que fora morto por Ricardo.
Ricardo não é querido por nenhum daqueles que o cercam, como retrata a obra. Margareth, a viúva de Henrique VI o chama assim:
“(...) cão raivoso, corrompedor do universo(...)/ Aborto da natureza, rejeitado pelos anjos,/ Truculento javali marcado desde nascença,/ Como rebotalho humano. Cloaca viva saída/ Do ventre da tua mãe, e frangalho vomitado/ Da virilha do meu pai!” (Soares, págs 41 e 42)
Nem tão pouco por sua mãe:
“(... ) devia ter te barrado antes, te estrangulado no meu ventre, pra impedir todos os teus crimes! (...)se D’us for justo, você morre nessa guerra(...)leva contigo a minha maldição.” (Soares, págs 151 e 153)
Até aqui é possível perceber o quão perverso ele é. Entretanto essa perversidade se encontra maravilhosamente bem representada e muito bem explorada na narrativa shakesperiana.
2.1 As peças Históricas de Shakespeare
Shakespeare escreveu, oficialmente dez peças históricas inglesas. Duas delas podem ser vistas isoladamente quanto à forma, entretanto as outras oito relacionam-se por conterem uma mesma abordagem temática, deixando de ser apenas uma dramatização cronológica para serem transformadas em parábolas ou fábulas (Heliodora, pág 98)
Ricardo III encontra-se juntamente às três primeiras partes de Henrique VI compondo a primeira tetralogia. Foi de estrema perspicácia de Shakespeare, após escrever três peças sobre Henrique VI, não se deter em Eduardo IV e tratar diretamente de todo o processo de ascensão de Ricardo III ao trono. Isso lhe proporcionou um conteúdo implícito onde nele, ele teria a liberdade de criar a teia na qual Ricardo teceria a sua ascensão e a sua queda.
Shakespeare tinha a preocupação de retratar o bom e o mau governante. Com isso ele usava da forma para poder retratar o que queria passar ao público. Interessante é o fato de que ele manipulava os exemplos e dava-lhes forma.
Em Ricardo III o personagem Ricardo é o centro das atenções para mostrar ao público o que um homem ambicioso e inescrupuloso faz para ascender ao poder. Ricardo vem a ser, contrapartida, um modelo a não ser seguido.
3. As mortes, uma a uma...
Ricardo aproveitando a fraqueza do seu irmão – Fraqueza esta que compreendida por Shakespeare também não foi aproveitada, posto que ele dá um salto de Henrique VI e vai direto a Ricardo III, levando o Rei Eduardo IV como um mero figurante participando da trama – Lançando uma “profecia idiota” para criar uma cisma entre seus irmãos e dúvidas na mente fraca de seu Rei Eduardo IV.
“(...) Inventei uma profecia idiota, que me teria sido revelada num sonho, pra criar um ódio mortal entre o rei Eduardo, meu irmão, e o Clarence, meu outro irmão. E se o rei for tão sincero e justo quanto eu sou dissimulado e traiçoeiro, hoje mesmo o Clarence vai ser preso por causa dessa minha profecia imbecil. A profecia garante que alguém com a letra ‘C’ no nome vai assassinar os herdeiros do trono.” (Soares, pág 18)
“Coitado do Clarence... tão ingênuo... meu amor por ele é tão grande que, logo logo, vou enviar a alma dele ao céu.” (Soares, pág 21)
Seu irmão, o rei Eduardo IV manda prender Clarence, que o aceita de bom grado para não criar desavenças dentro da família. Mais à frente o rei o sentencia à morte enquanto está preso na Torre de Londres, dando esta ordem por escrito. Contudo arrepende-se e envia outra ordem revogando a anterior a fim de salvaguardar a vida de seu irmão, mas Ricardo já havia tramado tudo. Ele convoca dois assassinos e os envia com a primeira ordem e quando um deles lhe pergunta acerca da revogação da sentença de morte de Clarence, Ricardo diz:
“(...) Mas vai chegar tarde. O coitado vai morrer pela primeira. A primeira veio rápido, quase voando. (Lança o papel para eles.) A segunda pode ter sido entregue por um mensageiro manco, que só vai conseguir chegar depois do enterro.” (Soares, pág 44)
“[Depois que eles] Saem. Ricardo puxa a outra ordem, sorri e a guarda novamente.” (Soares, pág 44)
A próxima vítima é Anna. Ele a seduz no dia do funeral de seu marido e de seu sogro com segundas intenções bem explícitas. Não o faz porque a ama, mas o faz por interesses.
“(...) Para garantir o poder, antes eu preciso me casar com Anna, filha de Warwick, o Fazedor de Reis. Eu matei o marido dela e o sogro. Por isso mesmo a melhor maneira de remediar o mal que lhe fiz é me casando com ela.” (Soares, pág 22)
Entretanto, depois de haver seduzido-a com palavras que até mesmo ele duvidara que houvera proclamado ele se entrega à maldade e diz:
“(...) Ha! Eu sou muito bom... Ela é minha! Só que eu não vou ficar com ela muito tempo...” (Soares, pág 31)
E mais adiante, no tecer da trama ele, depois de ter sido coroado, em uma festa chama a Catesby e lhe diz em reservado:
“Catesby, vem cá. (Catesby se aproxima) Espalha por aí o boato de que minha mulher Anna está muito doente. (Catesby não entende) Então? Está esperando o que? Eu já disse: espalha o boato de que minha mulher Anna está morrendo.” (Soares, pág. 133)
“Eu quero eliminar qualquer oposição que possa se levantar contra mim, antes mesmo que ela surja. Eu me livro da Anna, porque para garantir a Coroa eu preciso me casar com a filha do meu irmão. Por enquanto, os meus alicerces do meu trono são de vidro. (Pensando) Mato os seus irmãos e depois caso com ela! Não é o que manda a etiqueta, mas eu já estou tão mergulhado em pecado que um pecado a mais não vai fazer diferença” (Soares,pág 134)
Como o sugerido em seu pensamento supracitado “(...) mato os seus irmãos (...)”, ele se prestou a fazer o que, aos olhos da platéia, do leitor e da historia foi o mais hediondo possível que alguém pudesse fazer por ambição a um objetivo. Ricardo prende os seus dois sobrinhos, após ter se tornado seu tutor legal ante a menor idade dos dois, logo depois da morte de seu irmão o rei Eduardo IV. Alega que são bastardos, uma vez que advieram de um casamento ilegal com Elisabeth, já que seu irmão era casado por procuração com a princesa de Sabóia e os herdeiros legítimos ao trono seriam os filhos advindos deste, que era o primeiro casamento de Eduardo. Então nenhum dos dois, nem Eduardo V nem Ricardo, seu irmão mais novo, poderiam assumir. Depois deles, nesse caso, o próximo da linha de sucessão seria Clarence, mas desde já se encontrava morto restando apenas o irmão mais novo deles Ricardo, Ricardo III.
Buckingham, primo de Ricardo, conspira para elevar o primo ao trono.
Neste ponto Shakespeare insere um elemento que é de grande sutileza. Coloca dois cidadãos comuns a conversar acerca dos fatos que ocorrem. Um diz que o rei morreu e acrescenta que seu filho vai ser coroado. O outro lhe diz: “Coitado do País que é governado por uma criança” O outro retruca que nesse caso um conselho é quem governa até a maioridade dele e acrescenta “...Além disso, ele conta com a proteção dos tios: pelo lado do pai e pelo lado da mãe.” E o outro contrapõem “... Imagine só a briga que vai haver entre eles pra controlar o menino. O duque Ricardo é um homem perigoso e a família da rainha é muito ambiciosa.” (Soares, págs 63 e 64) Por isso, Buckingham fala ao seu primo Ricardo:
“Seja quem for que vá buscar o príncipe, nós vamos também. Mas com a nossa tropa. Pra que o nosso projeto funcione, é preciso que o príncipe seja afastado de qualquer parente da rainha. Quem ficar com o menino vai controlar o país” (Soares, pág 60)
Antes da ascensão de Ricardo, que neste contexto está próxima de ocorrer, é necessário ganhar a simpatia de alguns poucos que não se agradam dele, que são fieis ao seu falecido irmão e são favoráveis a que seu filho o suceda no trono. Um deles é o primeiro ministro Hastings, Eles tentam trazê-lo para o lado deles, mas há uma dúvida:
“Buckingham: – E se o Hastings não concordar com o nosso projeto?
“Ricardo: – A gente corta a cabeça dele...” (Soares, pág 74)
Ricardo sabe que Hastings é amante de Joana Shore, que é casada com William Shore e que ela também fora amante do rei Eduardo IV, por isso ele a acusa, implicitamente, de haver-lhe feito um feitiço que fizera definhar sua mão. Ele envolve Hastings de maneira tal que, ante o conselho, ele condena culpado e à morte quem fizera isso a Ricardo. Depois de que Hastings declara o seu ponto de vista Ricardo revela o nome da suposta bruxa. Hastings tenta dialogar e voltar atrás. Tarde demais. Ricardo pede a cabeça de Hastings e a quer antes do jantar.
Buckingham conduz toda a armação para levar Ricardo ao trono. Articula ante os demais, encena dentro de cena com primazia até que conseguem o que lhes houvera motivado. Buckingham vai, com outros tantos, até Ricardo pedi-lhe que assuma o trono:
“Mas eu não quero e nem posso atender a esse pedido! – diz Ricardo.
“Se você continuar recusando, saiba que nós jamais aceitaremos esse bastardo como rei. Antes ver qualquer outro sentado no trono. – retruca Buckingham” (Soares, pág 122)
Por fim ele é coroado e na sala do trono onde todos se reúnem na festa da coroação ele sugere ao seu primo, tão cúmplice quanto culpado, a morte dos dois jovens presos na Torre de Londres. Buckingham pede um tempo para pensar:
“Ele precisa de um tempo, e eu preciso de um homem de ação. Esse negócio de ficar pensando muito não me serve. Agora o ganancioso Buckingham ficou cheio de escrúpulos... quer refletir... (Imita) ‘eu preciso de um tempo...’ Eu não tenho tempo” (Soares, pág 132)
Ele conhece a um homem chamado Tyrrel, James Tyrrel. Depois desse encontro, no silêncio e na escuridão da Sala do Trono surge Tyrrel para dar-lhe a notícia de que a missão fora cumprida:
“(...) Os meninos estavam deitados, abraçados, (...) Tinha uma bíblia em cima do travesseiro Eu quase desisti, mas a minha ganância foi mais forte... como mesmo travesseiro eu sufoquei os dois” (Soares, pág 141)
Buckingham, depois de refletir, vai ter com Ricardo. Tarde demais, Ricardo já havia encontrado quem fizesse o serviço. Haja vista que Buckingham quis contestar-lhe sobre sua promessa de receber o condado mais rico do reino assim que Ricardo se tornasse rei, mas ele nada disse ou se mostrou favorável a dar algo a alguém. Sai e deixa o seu primo absorto:
“Então é assim? É com esse desprezo que ele me paga? Foi pra isso que eu coloquei a coroa na cabeça dele? Ah, mas eu não esqueço o que ele fez com a cabeça de Hastings. Vou-me embora enquanto a minha cabeça está presa no meu pescoço” (Soares, pág 137)
Daqui por diante Ricardo mira em um novo alvo: Elisabeth, a sua sobrinha, filha de seu irmão Eduardo. Ele segura sua cunhada pelo braço e começa a destilar o seu plano de transformá-la em rainha. Diz que quer levá-la à cama do vitorioso quando voltar da sua luta que se anuncia contra Richmond, certo de que seja ele. Sua cunhada reprime-o veementemente passando-lhe em face todas as mortes que lhe são atribuídas, diz que não vai deixar que faça o mesmo com a pobre princesa. Ricardo pede-lhe que ela o ensine a conquistar o coração de sua sobrinha, incita-lhe a lhe revelar os prazeres da vida de um casal:
“(...) Conversa com a tua filha. Excita aquela juventude tímida com a tua experiência. Prepara os ouvidos dela pros desejos de um amante apaixonado. Fala dos prazeres secretos do casamento nas horas silenciosas da noite. Desperta nela a ambição de ser rainha.” (Soares, pág 161)
Ricardo diz não poder devolver-lhe os filhos que lhe tiraram, mas que os trará de volta no ventre de Elizabeth, sabe que privou o seu filho ao trono e que por isso oferece este mesmo trono a Elisabeth.
Quando Ricardo pensa em transformar Elisabeth em rainha é porque em sua ótica só há consolidação da Casa dos York se ambos, rei e rainha, forem também da mesma Casa. Consolidando assim uma dinastia.
Elisabeth deixa-se seduzir pelo argumento de Ricardo, vendo neste uma forma de proteger a si e a sua filha. Ela até se questiona: “Será o demônio me tentando?” E Ricardo responde: “É o demônio tentando te fazer um bem.” Antes que ela sai dizendo que vai tentar fazer o que lhe pediu ele a beija nos lábios e pede que ela o leve a sua filha. Quando ela sai, ele diz: “...Que mulher interesseira... frouxa...” (págs 162 e 163).
Porém Elisabeth jamais se deixou levar pela astúcia de Ricardo e, pelas suas costas, tramava a sua morte e a sua queda do trono e o casamento da sua filha com Richmond como adiante constata o público quando Stanley se encontra com Richmond à noite:
“(...) Infelizmente não posso arriscar mais do que isso, com medo de que o meu filho seja executado. (entrega uma carta a Richmond.) A Rainha Elisabeth escreve dizendo que ficaria muito feliz de ver você casado com a filha dela.” (Soares, pág 185)
Aqui começa o fim de Ricardo III.
4. Lendo o texto de um novo ângulo
A professora Elinês de Albuquerque Vasconcelos e Oliveira ministrou durante o período 2007.2 da Universidade Federal da Paraíba a cadeira de Cultura dos povos de Língua Inglesa. Com a finalidade de apresentar um pouco da história da Inglaterra sugeriu-nos ler o texto que é motivo desta análise. Entretanto propôs-nos que fizéssemos um julgamento. Julgamento este que deveria conter três pessoas na promotoria e três na defesa. Ambas deveriam levantar pontos a favor e contra os atos de Ricardo. Eu fiz parte da defesa. E como é possível constatar até então, tratar-se-ia de uma tarefa árdua inocentar tal personagem. Todavia pude fazer alguns apontamentos nos quais a defesa pode se nortear:
Argumentos usados pela defesa
Eduardo para tornar-se Rei usou do sentimento que Ricardo nutria por Anna e o incentivou a assassinar ao Rei Henrique e seu filho, marido de Anna e filho de Margareth.
Não há acusação formal nos autos, posto que nenhum dos maiores interessados em dar andamento à acusação se professou.
O crime é passional e Anna é cúmplice, podendo ser condenada por cumplicidade em duplo homicídio, este que foi a mando de Eduardo, que se tornou Rei e foi o único que se beneficiou com a morte deles e vale ressaltar que Ricardo apenas foi um negociador para o irmão e lhe apoiou nas horas mais incertas.
O Rei Eduardo mandou matar seu irmão Clarence. O Tenente que estava no local quando os carrascos chegaram pode atestar a veracidade dos fatos. Sendo tal morte também aliviada do fardo de Ricardo.
O Rei Eduardo era casado por procuração com a princesa de Sabóia da França. Entretanto casou-se com Elisabeth que era viúva e plebéia. Então o Rei Eduardo era um bígamo. O que não era possível e nem aceitável aos padrões da época. Além disso, o Rei Eduardo deitava-se com Joana Shore que era casada com William Shore que não somente traia o seu marido com o Rei como também com todos, inclusive o Primeiro-Ministro Hastings. Além de ser um homem devasso, libertino e dado aos prazeres da carne, tornou-se um Rei fraco, pois era dominado pelos desejos de suas mulheres.
Que visão teria as outras nações ante um Rei devasso. Um Rei tem de ser um exemplo não só como administrador, mas como homem público ante os seus súditos.
O Rei Eduardo morre de um mal súbito.
Ricardo passa ser o tutor dos filhos bastardos de seu irmão falecido. O trono estava a perigo, pois Richmond, que era da Casa de Lancaster desejava desapossar os York do trono da Inglaterra. A fim de salvaguardar a descendência de York no trono e a dúvida acerca dos filhos de Eduardo, que não podiam assumir um trono por serem jovens e bastardos, O Conde de Buckingham articulou a ascensão de Ricardo ao trono para dar continuidade aos York no trono.
Possivelmente o Conde de Buckingham tenha sido o mandante do assassinato dos bastardos, posto que era muito ganancioso e se ele matasse a Ricardo poderia ele mesmo tornar-se Rei.
Hastings morre por traição e por tramar a morte do Rei Ricardo juntamente com sua amante Joana Shore e o Prefeito pode testemunhar.
Buckingham morre por sua ganância e por ameaçar o Rei Ricardo.
O Rei Ricardo, por nascer deformado, fora desprezado pela sua mãe. Pode-se crer que ele não seria amado, mas ele pôde ser feliz ao lado de Anna, sua esposa que estava convalescente.
Stanley, Richmond e Elisabeth tramaram contra o Rei Ricardo para retirá-lo do trono. Elisabeth promete sua filha ao Rei Ricardo, mas jura em falso e promete-a a Richmond caso ele mate a Ricardo e torne-se Rei.
A Rainha Margareth maldiz a todos membros da Realeza. Como os fatos poderiam ocorrer justamente da forma como ela “previu”? Seria ela bruxa ou a articuladora de toda a situação para que se consolidasse a sua palavra?
Nenhuma testemunha pode ser apresentada como conhecedora das intenções ilícitas, segundo a promotoria, do Rei Ricardo. Primeiro porque ele não foi nem sequer, mentor de nenhuma das mortes ocorridas.
Caso o Rei Ricardo viesse a ser qualificado como mandante ou executor de qualquer um dos assassinatos anteriormente referidos seria necessário salientar o seu distúrbio mental, sua insanidade por ser um filho que não teve amor de mãe nem de pai. Primeiro por ser um portador de necessidades especiais, alguém que era visivelmente rejeitado ante os seus. Segundo, ele próprio, por sua aparência se menosprezava por saber que não teria um amor de verdade. Amou a Anna e por seu amor pagou alto preço. Arrependido se declara a ela e assume todo o peso da culpa a fim de proteger o irmão, Rei.
Ricardo era um homem honrado, corajoso, religioso e confiável. Sempre esteve ao lado dos seus irmãos. Assim o fez para elevar a Eduardo a Rei. Assim o fez ao ver seu irmão ante sua prisão. Era confiável, pois conhecia o pecado de muitos e nem por isso usava do que sabia para conseguir, com manipulações capciosas, posições ante a máquina governamental. Era corajoso, uma vez que enfrentava suas batalhas de igual para igual com quem quer que fosse, mesmo levando desvantagem de não ser igual aos demais. Era um homem religioso que se resguardava em seu quarto acompanhado de monges para orar por um futuro melhor para a Inglaterra naqueles tempos difíceis. Enquanto seu irmão se valia da companhia de mulheres obscenas.
Ricardo não passa de um homem que procurou não se contaminar com a sujeira que a vida real lhe arremete. Não queria poder, queria apenas ter uma vida simplória e alijada do peso da coroa. Mas parece que o destino lhe preparava um fim crucial para o trono da Inglaterra. Assumir o trono foi-lhe uma questão de honra ante a casa de seus ancestrais, os York. E para realizar o desejo maior de Margareth o seu fim foi como ela previu: a morte. Pois esse sempre é o fim de quem procura fazer algo de bom para o país que vive, para o país que ama. E hoje, ele estando morto, em defesa de sua honra elevamos nossa voz ante os presentes a fim de testificar a inocência do falecido Rei Ricardo III, quem apenas propôs-se, ante o desejo de muitos, a fazer algo profícuo e de valor ao seu povo e ao seu pais. D’us salve a Inglaterra! Muito obrigado!
Shakespeare, salientado com muita propriedade por Bárbara Heliodora, foi habilmente perspicaz quando trouxe a personagem de Margareth na peça de Ricardo III. Antes, nas três anteriores peças que vêem a formar esta primeira tetralogia, a rainha Margareth era violenta e cruel, tão seduzida pelo poder e tão dominadora que chega a ponto de expulsar o seu marido do campo de batalha por conta de ser um homem imprestável. Agora ela surge menos agressiva e digna de pena, tratada como vítima por haver perdido seu marido, seu filho e sua coroa.
Ela aparece maldizendo a todos, como uma mulher preenchida pelo desgosto, o rancor e o ódio:
“Que esse rei de vocês morra na orgia e não na guerra,/ Já que o meu bom rei foi morto pra que ele usasse a coroa./ E que o teu filho Eduardo, que agora é príncipe herdeiro,/ Morra como meu filho Eduardo, que era príncipe antes dele./ E você, que hoje é rainha,/ Como eu fui rainha ontem, seja infeliz como eu sou depois de viver a glória./ Que morra bastante velha,/ Pra chorar por muitos anos a perda dos teus meninos./ E pra ver outra rainha se enfeitar com as tuas jóias,/ Como eu vejo as minhas jóias enfeitando outra rainha./ Que você morra sozinha, não mais sendo mãe, nem filha, nem esposa, nem rainha. (Para Hastings e Dorset.)/ E vocês que contemplaram quando o meu filho inocente,/ Foi ferido, sem defesa, por punhais ensangüentados,/ E nem se manifestaram pra que alguém interferisse,/ Que D’us também não permita,/ que os dois morram de velhice!/ (Para Ricardo.) Quanto a você, cão raivoso, corrompedor do/ universo./ Que o verme da consciência roa a tua alma negra,/ Que os teus melhores amigos sejam os teus traidores,/ Que o sono nunca acalente os teus olhos embaçados!” (Soares, pág 41)
Shakespeare faz com que ela, praticamente ainda no terceiro ato, contasse toda a história do início ao fim, mas faz isso sutilmente com salienta Bárbara Heliodora: “Mas Shakespeare consegue utilizar a figura da Rainha Margareth de forma irretocável: ela não interfere nos acontecimentos, não faz nada a não ser servir de coro e profetiza lançando, aterradora, as maldições sobre os York e seus colaboradores periodicamente lembradas à medida que vão sendo cumpridas.” (Heliodora, pág 110).
Dentro do texto foi possível estabelecer argumentos que favoreciam a defesa de Ricardo. Mas para chegar a esses argumentos era necessário enxergar o texto por um novo prisma. Para que se chegasse a um parecer favorável era necessário que se conduzisse a leitura, algo que não tivemos a oportunidade de fazer devido o tempo e de termos outras atividades concernentes à graduação.
4.1.Usando a realidade dentro do texto para inocentar Ricardo III
Quando se lê o texto torna-se evidente o mau-caratismo do personagem, pois assim o fez o seu criador e isso é digno de que se ressalte. Entretanto isto se trata de uma peça teatral onde Shakespeare não estava fazendo uma biografia oficial de Ricardo III, ele apenas estava retratando o seu ponto de vista do que seria um bom soberano tratando de mostrar um mal soberano.
Há de se frisar que é uma peça teatral. Quando Ricardo fala para a platéia ele fala consigo mesmo. Quando efetua um Sole Lóquio ele se revela. Ele se entrega. Neste caso então ele não pode ser julgado pelos seus pensamentos, pois corte nenhuma neste mundo em que vivemos pode julgar alguém pelo o que pensa, apenas D’us pode julgar-nos por nossos pensamentos segundo as escrituras sagradas.
Outro ponto interessante é de que não há testemunhas. – nesta hora nos foi inquirido pela promotoria como poderiam trazer testemunhas de um feito que sucedeu em meados de 1480? Não era necessário trazer alguém fisicamente – posto que seria impossível – Mas mostrar no texto que alguém mais sabia de tudo o que Ricardo tramara. Excluindo a platéia ninguém sabe! Suspeitam, apenas.
Os únicos que sabem, de fato, das atrocidades que ele cometeu ou foi mandante são: o rei Eduardo IV; Buckingham; Tyrrel; os dois assassinos e Anna. No decorrer da peça, ou eles morrem ou somem. Quando levantei esta bandeira pensei no que realmente fosse possível. Pro exemplo: quando Ricardo, já rei, pede a Buckingham que elimine as crianças essa conversa fica só entre os dois. Entre os dois e a platéia. Se Buckingham houvesse comentado isso com outro personagem da história, dentro de nossa perspectiva haveria mais alguém que saberia do fato e assim, alguém que o pudesse incriminar-lo. Mas isso não ocorre em nenhum momento.
Quando se debruçarem sobre o texto de Shakespeare, verão que ele foi deveras sábio no seu conduzir, proporcionando ao próprio Ricardo álibis que poderiam inocentá-lo. Nada se perde nesta versão e adaptação de Jô Soares onde ele também conserva o benefício da dúvida entre os que participam da história encenada em palco.
Só quem pode acusá-lo é o público e este não toma parte dos fatos, pois se encontra na posição de um deus onipresente e incapaz de qualquer posição.
Ricardo se confessa a Anna, dizendo que matou o seu sogro e o seu marido. Diz-lhe que fez por amor e ela, ao invés de rechaçá-lo aceita o calor de seus braços, tornando-se assim cúmplice. Sem contar que estas duas mortes ocorreram em campo de batalha, podendo ser alegado assim como fatalidade. Já que a morte é comum para algum dos lados daqueles que lutam entre si.
Quando questionados sobre a morte de Anna nos da defesa afirmamos que ela não a havia matado. Então nos apresentaram o argumento da pág 134. que segue assim:
“RICARDO (Para a platéia) – Eu quero eliminar qualquer oposição que possa se levantar contra mim, antes mesmo que ela surja. Eu me livro da Anna, porque para garantir a Coroa eu preciso me casar com a filha do meu irmão. Por enquanto, os meus alicerces do meu trono são de vidro. (Pensando) Mato os seus irmãos e depois caso com ela! Não é o que manda a etiqueta, mas eu já estou tão mergulhado em pecado que um pecado a mais não vai fazer diferença”
Livrar-se de Anna pode ser interpretado como “deixar Anna”, “desquitar-se de Anna”, com certa ressalva, obviamente. Mas atentai ao que está entre parênteses para a platéia e pensando. Por um momento essas três palavras desmoronaram nossa argumentação de que: quando ele falava para a platéia ele falava consigo mesmo. Como aceitar que ele ao falar para a platéia está pensando quando algumas linhas mais à frente ele está, definitivamente, pensando?
Confesso que o meu castelo desmoronou neste momento e não tive a mesma acuidade que tive uma hora depois quando dei por mim de que todas as informações relacionadas entre parênteses, tratavam estritamente de informações de como o ator deveria portar-se, qual seria a sua expressão, o que faria em cena, como entrar, como sair, etc.
Mas sinto que não perdemos por não haver dado atenção a esta pegadinha. Perdemos por algo maior. Perdemos por algo que jamais será apagado da verdadeira história de Ricardo III. O assassinato de seus sobrinhos.
5. O Julgamento do senso comum
Shakespeare, desde o início incita à platéia a odiar a Ricardo III. Ele conduz os eventos a fim de mostrar quem é o homem por trás da máscara antes mesmo que ele a pudesse por. Cria um herói que é um vilão, um tirano maquiavélico e ambicioso. Um homem que não mede esforços para conseguir o que quer. E nesse ínterim ele comete “... o ato mais canalha, o massacre mais horrível que a terra já presenciou.” Como assim descreveu Tyrrel ao haver consumado o fato. Ele cometera então a ato mais desumano que foi matar duas crianças que em alguns dados pode se encontrar com 12 e 10 anos ou 10 e 8 anos. Mas que diferença faz essas idades? Eles não deixam de ser indefesos, de ser duas crianças.
Depois de nós: defesa e promotoria, havermos exposto os nossos argumentos, coube ao restante da sala, no papel de júri popular, revelar um a um a sua sentença e o motivo pelo qual o sentenciava.
Foi quase unânime o argumento de que era imperdoável ele haver matado duas crianças trancafiadas dentro de uma torre sombria e macabra.
Eles não já estavam presos? Então, por que matá-los? Poderia escondê-los, pôr-lhes uma máscara de ferro como fizeram com um dos príncipes na obra de Alexandre Dumas para que ficassem irreconhecíveis, incomunicáveis.
Procurando conhecer mais sobre os fatos tomei conhecimento de que em algumas adaptações há a cena onde Tyrrel os mata, entretanto em sua tradução e adaptação Jô Soares decide, por motivos cujo quais não posso assegurar, não acrescentá-la. Entretanto o fato de não se ver o que se passou não tira o peso de que tenha acorrido assim como relata Tyrrel, que confessa quase ter desistido, mas fora mais forte a sua ganância.
As pessoas podem aceitar a morte de um homem adulto, são, que pudesse se defender, mas não a morte de uma criança, de um ancião. Isto causara uma revolta, uma repugnância que antes mesmo que ele fosse julgado já lhe condenavam culpado.
Por mais que nos fosse possível conduzir a leitura do texto mostrando a astúcia de Shakespeare em dar a este personagem o direito de aparentar inocência ao encontrar-se rezando entre monges; ao se declarar apaixonado por Anna; ao demonstrar bravura incondicional no campo de batalha mesmo não estando em pé de igualdade com os seus adversários; ao ver que não teve amor de mãe e que fora desprezado causando-lhe assim grande revolta; ao ver que a situação se demonstrava a favor de que pudesse se promover até chegar a rei.
Nada disso o aliviaria do fardo que carrega até hoje, de haver matado duas crianças. Tudo pelo poder. Tudo por um reino. Por um reino que posteriormente ele sugere trocá-lo por um cavalo. Mas para que um cavalo? Para fugir ou para lutar? É uma resposta que não teremos, pois em seguida Richmond o transpassa com sua espada dando assim a sentença como o júri havia desejado.
6. A experiência de Defender Ricardo III
Resume-se a uma única e simples palavra: Difícil! Uma tarefa árdua onde mesmo sabendo que é possível absolvê-lo de grande parte do que lhe é atribuído, não há como escapar da sina de haver cometido tão hediondo crime. Ler o texto observando cada diálogo, encontrando cada contradição relevante à argumentação proposta por nós da defesa.
Todos os demais presentes, um a um, declararam-no: CULPADO. Uma aluna falou-nos: “Se eu não conhecesse a história, se eu não tivesse lido, certamente pela explanação apresentada por vocês eu poderia inocentá-lo”. Foi salientado por um de nossos colegas que qualquer um deles, dos personagens poderiam fazer a mesma coisa, pois em sua opinião Ricardo apenas tratou de tirar proveito da situação que se apresentava favorável.
A ganância, a cobiça é natural dos seres humanos, mas neste homem ela é demasiadamente acentuada. Isto faz parte das características complexas que assumem os personagens criados por Shakespeare, sejam eles os protagonistas ou os coadjuvantes.
O fato é que a peça tem o estrito propósito de caricaturar até onde um ser humano é capaz de chegar pelo poder. Até onde e quando ele pode guardar esconder-se por trás de sua máscara, até quando sustentará o dominó que lhe cabe à sociedade.
É possível observar que homens influentes não são tão civilizados quanto aqueles que não possuem estudo. Aqueles que são taxados de menos educados ou ignorantes. Tão ignorantes quanto os dois cidadãos que percebem o que se passa ou o escrivão que não se assusta por ter de inventar injúrias a um homem já morto apenas para justificar o irremediável. Shakespeare, com a sutileza que só ele tinha, retrata o homem comum como um homem observador, como alguém que não deixa escapar nada, mas que se encontra incapacitado de promover mudanças, entretanto é sábio para saber adaptar-se quando elas surgem.
Quando um rei ascende, um dia, não importa quanto tempo leve, ele cai. Não importa quem governe, um dia não mais governará. E todo o seu julgo, o seu feito será apenas passado e o acompanhará apenas na história, enquanto o povo não. O povo pode mudar de cara, como uma platéia nunca será sempre a mesma, todavia sua razão de existir será imutável, o proceder, talvez, seja distinto, porém o fim será sempre o mesmo. Por mais que quem escreva a história sejam os vencedores, quem a julga é o povo.
7. Conclusão
Ricardo III é uma peça envolvente que meche com os nossos sentidos, seja lendo-a ou assistindo-a, quiçá no teatro ou no cinema, não importa. Ricardo será sempre Ricardo. É uma peça que meche com os nossos conceitos e se defronta com os nossos paradigmas. Não há como falar de Shakespeare sem não lembrar Ricardo III e sua saga através do seu desejo de tornar-se rei. O rei que jamais seria se não tivesse lutado por isso.
Às vezes o homem, ao perseguir suas ambições, deixa de lado certos conceitos. Ultrapassa certos limites. Há a crença de que “O fim justifica os meios”. Se realmente justifica ou não é tema para outra novela. Pode até ser que sim, mas tudo tem um limite. E esse limite é sagrado e não pode ser ultrapassado. Ricardo, porém, ultrapassou. Chegou a rei por seu próprio esforço, mas derrubou outro tanto para fazer valer a sua escalada. Se isso é lícito? Não tenho autoridade para dar um ponto final. Nem tão pouco conheço quem o tenha. Contudo nem tudo que é lícito é bom ou faz bem. Quer seja para o corpo, para a alma ou para a reputação.
No caso de Ricardo, a sua ambição não lhe fez bem em nenhuma das opções anteriormente citadas. Talvez se ele não fosse tão ambicioso nada disso teria acontecido, não seria mal visto pela história nem teria a sua reputação manchada para sempre com um ato de covardia que teve para com aquelas crianças. No entanto se ele tivesse se resignado e aceitado o fato de que, naquelas condições, não poderia ser rei e nada tivesse feito para mudar, sem entrar no mérito do que é certo ou errado. Nos, seres comuns, pessoas que não escrevemos a história, mas que, mesmo sem sermos magistrados ou nem sabermos o que é uma toga, podemos julgá-la, não teríamos a honra de defrontarmos nossos conceitos do que é certo e errado, do que é lícito e ilícito, do que é possível ou impossível quando tratamos de lutar por nossos objetivos, sejam simples como comprar uma casa ou até imponentes como tornar-se monarca.
Graças ao descomedimento de ética por parte de Ricardo e a genialidade de Shakespeare, ambos ao encalço de seus objetivos, podemos hoje discutir o certo e o errado. Podemos refletir no benéfico e no maléfico. Podemos entender no que implica perseguir um objeto e até onde é possível chegar sem atentar contra os direitos mais básicos e essenciais que alguém pode ter: a vida alheia. Graças aos dois é possível perceber que por mais que nos pareça nefasto tudo segue o seu curso normalmente. Quem que ser rei torna-se rei, mesmo que brevemente e quem deve julgá-lo o julga, mesmo que tardiamente.
Se Ricardo é inocente ou culpado? Bem... Eu não trouxe a resposta, posto que a mim não me cabe julgar os fatos, já que me envolvi demais com esta história tão empolgante, mas trouxe mais lenha para esta fogueira.