(de Canudos – Bahia) Muito melhor do que ler e aprender; é viver parte da própria história. A oportunidade de poder estar em locais considerados históricos, principalmente para seu próprio povo, não paga a emoção e o prazer.
Desde menino que eu sou um apaixonado pela história, sobretudo a história revolucionária. Analisar fatos históricos “in loco” é o melhor dos laboratórios; portanto, se um dia você puder estar num lugar onde houve qualquer fato que mudou a característica cotidiana de um povo ou de uma região, pesquise, leia, aprenda e viva aquele momento; ele poderá ser único e sua experiência poderá lhe remeter a uma dimensão acessível a poucos, como agora; eu estou em Canudos, alto sertão nordestino; lugar onde viveram gente como Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião; lugar onde o cangaço já deixou de ser história para virar lenda. Eu estou na terra onde viveram Antonio Conselheiro e Euclides da Cunha, dois dos grandes personagens da história brasileira, responsáveis, um pela manutenção e o outro pela divulgação da Guerra de Canudos.
Antonio Vicente Mendes Maciel, mais conhecido como Antônio Conselheiro foi um beato que muitos lhe atribuíram a plenitude da loucura e da insanidade; um revolucionário cearense que encontrou nesta terra uma espécie de refúgio para conduzir um povo sofrido em busca de uma felicidade ligada ao espiritual. Conselheiro liderou uma marcha jamais vista no Brasil que havia negros, sertanejos, lavradores, enfim, excluídos sociais da época, para fundarem uma comunidade que se tornou próspera e intransponível por vários anos, pelo menos para o exército brasileiro, da recém criada república brasileira.
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, escritor, repórter jornalístico, sociólogo e engenheiro; nasceu no Rio de Janeiro, mas depois de ter ficado órfão da mãe foi morar com as tias na Bahia para ser educado. Foi Euclides da Cunha um dos maiores divulgadores póstumos da Guerra de Canudos, muito embora não tivesse participado daquele evento nem do lado de Conselheiro, muito menos do Exército. O jornalista foi cobrir o final movimento através de um jornal importante e meses antes deste acontecimento ele ainda estava engajado nas próprias fileiras do Exército.
Esta região é o espelho de grande parte do Nordeste brasileiro e raras vezes eu enxerguei lugares mais áridos e miseráveis do que aqui em Canudos. Na região existem dezenas de cidades importantes para a sobrevivência financeira e cultural desta parte da Bahia, mas nenhuma com a capacidade plena de produzir algo além da própria mísera sobrevivência.
O que Conselheiro viu neste lugar foi à própria sorte de ficar num recanto onde suas forças já não suportavam mais o desempenho de desbravar novos lugares. O religioso saiu do Ceará aliciando multidões em torno de uma causa que jamais foi totalmente explicada; passou por muitas cidades e quando aportou em Canudos, região Centro Norte da Bahia, se viu cansado, exausto, foi então que resolveu fundar Bello Monte e fazer daquele lugar a sua fortaleza, sua cidade particular, onde faria gestão social de seu povo na condução de um movimento social e religioso.
Conselheiro e Cunha tinham algo que os aproximavam; ambos tiveram a amarga experiência da traição de suas consortes. Antônio Conselheiro flagrou sua esposa em deleite carnal com um Sargento da Polícia do Ceará e Euclides da Cunha também viu a esposa, a famosa Ana de Assis, ter um caso romântico e perverso com um jovem Tenente, com quem teve dois filhos e com quem se casou após a morte do marido, morto inclusive pelo próprio amante. Esta saga infeliz não foi o fato de aproximação destes dois personagens, mas com certeza pode-se traduzir algumas etapas das vidas de ambos.
O Exército Brasileiro tentou destruir e matar Antonio Conselheiro por três vezes sem nenhum sucesso. Na primeira incursão o exército perdeu 10 homens, enquanto Conselheiro perdeu mais de 100; ainda assim a vitória foi de Bello Monte porque não foi desativado, sequer foi abalado e Conselheiro mantinha-se vivo.
Na segunda tentativa de entrada em Bello Monte em 1896, a história conta que Conselheiro consegue matar vários membros do exército, mas nenhum livro aponta um número. Daqui de Canudos, conversando com “seu” Manuel da Paixão, um velho agricultor que já conta com 91 anos e uma lucidez de dar inveja, ele me informa que ouvia seu avô falar que na segunda tentativa o exército perdeu 500 homens, enquanto conselheiro não chegou a contar 50 mortos de sua comunidade. Esta revelação, se verídica, pode começar a explicar porque as tropas de Conselheiro eram tão temidas e porque o Exército demorou tanto para voltar a tentar um assalto a Bello Monte.
O que se ouve falar por aqui, através dos poucos anciãos que de certa forma lembram de relatos de seus pais e avós é que Conselheiro tinha entre seus milhares de homens uma boa parte de negros recém libertados das senzalas por conta da Lei Áurea; estes negros foram expulsos destas fazendas e jogados a própria sorte; eles encontraram em Antonio Conselheiro uma rara oportunidade de sobrevivência. Os negros escravos daquela região eram treinados e fortes, trabalhavam com os braços e praticavam todas as noites as artes marciais que aprendera de seus antepassados africanos. Além disso, eles tinham técnicas de emboscada e defesa e o Exército não contava com nada disso; imaginavam que eram religiosos inocentes que pregavam a palavra de Deus e buscavam um punhado de comida.
Na quarta incursão do exército contra Bello Monte Conselheiro sucumbiu aos tiros de canhão e a operação cirúrgica executada por uma artilharia pesada de milhares de militares. A batalha foi tão feroz que afirma o próprio Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, que milhares de “conselheiristas” foram mortos após a rendição. Era um fator de honra para as forças federais matar e não somente prender aquela gente; matar Antonio Conselheiro era de vital importância para uma instituição que se intitulava gloriosa, ademais havia os fortes rumores dentro do próprio exército que afirmavam que Antonio Conselheiro e sua gente eram emissários do Imperador Pedro II e que eles queriam restaurar à recém decapitada Monarquia brasileira.
O solo onde estive pisando hoje pela manhã é seco, improdutivo e estéril, mas bem que poderia estar florido e cultivado; os milhares de corpos que deixaram aqui seus sangues ou que foram enterrados em valas comuns, seja de um lado ou do outro, eram de brasileiros que sempre acreditaram numa única coisa: ser feliz em sua terra com o suor de seu labor. Aquele povo que morreu aqui e que inspirou Euclides da Cunha a escrever sua célebre obra “Os Sertões”, do lado do Governo, o que não me causa espanto algum, sequer sabiam ao certo o por que e quem eles estavam matando; do lado de Conselheiro, apenas um punhado de pessoas em busca de liberdade, oração e comida.
Em agosto será comemorado os 100 anos de morte de Euclides da Cunha; em setembro, 112 anos de morte de Antonio Conselheiro; de lá para cá quase nada mudou por aqui, as pessoas continuam peregrinando em busca de comida e água; hoje já não há mais vaga para gente como Antonio Conselheiro, Euclides da Cunha e Lampião; muito embora vejamos ao largo das rodovias que cortam esta região, motocicletas e carros novos, isso não se traduz em prosperidade ou em pujança. As pessoas de hoje que vivem por aqui, algumas tiveram sorte de terem um pedaço de terra menos triste, outras vivem das esmolas do Governo e um pouco restante vive para servir no básico que todas elas precisam.
O Exército, grande libertador de Bello Monte já não chega aqui há décadas; o Governo se limita em fornecer cartões de esmolas e ponto final; o restante dos políticos chega de dois em dois anos em busca dos votos que lhes manterão na farra de Brasília ou de Salvador e o povo, aquele que ainda sonha com comida e água, ainda sonha com a chegada de um Antonio Conselheiro que lhes conforte ou que lhes dê uma visão melhor de futuro, futuro este que hoje só lhes aponta ainda mais miséria!
A vida dos brasileiros é desta forma; alguns em Canudos e outros na Rocinha; uns nos sertões, outros nas florestas e muitos espremidos entre os prédios e o mar; 35% do nosso povo vive por viver e se dizem cidadãos somente para manter a calma e se encherem de alguma esperança falida.
Carlos Henrique Mascarenhas Pires
Foto: Carlos Henrique Mascarenhas Pires – Em breve todo acervo de fotos desta viagem estará exposta no Flickr.com do Yahoo.
Desde menino que eu sou um apaixonado pela história, sobretudo a história revolucionária. Analisar fatos históricos “in loco” é o melhor dos laboratórios; portanto, se um dia você puder estar num lugar onde houve qualquer fato que mudou a característica cotidiana de um povo ou de uma região, pesquise, leia, aprenda e viva aquele momento; ele poderá ser único e sua experiência poderá lhe remeter a uma dimensão acessível a poucos, como agora; eu estou em Canudos, alto sertão nordestino; lugar onde viveram gente como Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião; lugar onde o cangaço já deixou de ser história para virar lenda. Eu estou na terra onde viveram Antonio Conselheiro e Euclides da Cunha, dois dos grandes personagens da história brasileira, responsáveis, um pela manutenção e o outro pela divulgação da Guerra de Canudos.
Antonio Vicente Mendes Maciel, mais conhecido como Antônio Conselheiro foi um beato que muitos lhe atribuíram a plenitude da loucura e da insanidade; um revolucionário cearense que encontrou nesta terra uma espécie de refúgio para conduzir um povo sofrido em busca de uma felicidade ligada ao espiritual. Conselheiro liderou uma marcha jamais vista no Brasil que havia negros, sertanejos, lavradores, enfim, excluídos sociais da época, para fundarem uma comunidade que se tornou próspera e intransponível por vários anos, pelo menos para o exército brasileiro, da recém criada república brasileira.
Euclides Rodrigues Pimenta da Cunha, escritor, repórter jornalístico, sociólogo e engenheiro; nasceu no Rio de Janeiro, mas depois de ter ficado órfão da mãe foi morar com as tias na Bahia para ser educado. Foi Euclides da Cunha um dos maiores divulgadores póstumos da Guerra de Canudos, muito embora não tivesse participado daquele evento nem do lado de Conselheiro, muito menos do Exército. O jornalista foi cobrir o final movimento através de um jornal importante e meses antes deste acontecimento ele ainda estava engajado nas próprias fileiras do Exército.
Esta região é o espelho de grande parte do Nordeste brasileiro e raras vezes eu enxerguei lugares mais áridos e miseráveis do que aqui em Canudos. Na região existem dezenas de cidades importantes para a sobrevivência financeira e cultural desta parte da Bahia, mas nenhuma com a capacidade plena de produzir algo além da própria mísera sobrevivência.
O que Conselheiro viu neste lugar foi à própria sorte de ficar num recanto onde suas forças já não suportavam mais o desempenho de desbravar novos lugares. O religioso saiu do Ceará aliciando multidões em torno de uma causa que jamais foi totalmente explicada; passou por muitas cidades e quando aportou em Canudos, região Centro Norte da Bahia, se viu cansado, exausto, foi então que resolveu fundar Bello Monte e fazer daquele lugar a sua fortaleza, sua cidade particular, onde faria gestão social de seu povo na condução de um movimento social e religioso.
Conselheiro e Cunha tinham algo que os aproximavam; ambos tiveram a amarga experiência da traição de suas consortes. Antônio Conselheiro flagrou sua esposa em deleite carnal com um Sargento da Polícia do Ceará e Euclides da Cunha também viu a esposa, a famosa Ana de Assis, ter um caso romântico e perverso com um jovem Tenente, com quem teve dois filhos e com quem se casou após a morte do marido, morto inclusive pelo próprio amante. Esta saga infeliz não foi o fato de aproximação destes dois personagens, mas com certeza pode-se traduzir algumas etapas das vidas de ambos.
O Exército Brasileiro tentou destruir e matar Antonio Conselheiro por três vezes sem nenhum sucesso. Na primeira incursão o exército perdeu 10 homens, enquanto Conselheiro perdeu mais de 100; ainda assim a vitória foi de Bello Monte porque não foi desativado, sequer foi abalado e Conselheiro mantinha-se vivo.
Na segunda tentativa de entrada em Bello Monte em 1896, a história conta que Conselheiro consegue matar vários membros do exército, mas nenhum livro aponta um número. Daqui de Canudos, conversando com “seu” Manuel da Paixão, um velho agricultor que já conta com 91 anos e uma lucidez de dar inveja, ele me informa que ouvia seu avô falar que na segunda tentativa o exército perdeu 500 homens, enquanto conselheiro não chegou a contar 50 mortos de sua comunidade. Esta revelação, se verídica, pode começar a explicar porque as tropas de Conselheiro eram tão temidas e porque o Exército demorou tanto para voltar a tentar um assalto a Bello Monte.
O que se ouve falar por aqui, através dos poucos anciãos que de certa forma lembram de relatos de seus pais e avós é que Conselheiro tinha entre seus milhares de homens uma boa parte de negros recém libertados das senzalas por conta da Lei Áurea; estes negros foram expulsos destas fazendas e jogados a própria sorte; eles encontraram em Antonio Conselheiro uma rara oportunidade de sobrevivência. Os negros escravos daquela região eram treinados e fortes, trabalhavam com os braços e praticavam todas as noites as artes marciais que aprendera de seus antepassados africanos. Além disso, eles tinham técnicas de emboscada e defesa e o Exército não contava com nada disso; imaginavam que eram religiosos inocentes que pregavam a palavra de Deus e buscavam um punhado de comida.
Na quarta incursão do exército contra Bello Monte Conselheiro sucumbiu aos tiros de canhão e a operação cirúrgica executada por uma artilharia pesada de milhares de militares. A batalha foi tão feroz que afirma o próprio Euclides da Cunha, autor de Os Sertões, que milhares de “conselheiristas” foram mortos após a rendição. Era um fator de honra para as forças federais matar e não somente prender aquela gente; matar Antonio Conselheiro era de vital importância para uma instituição que se intitulava gloriosa, ademais havia os fortes rumores dentro do próprio exército que afirmavam que Antonio Conselheiro e sua gente eram emissários do Imperador Pedro II e que eles queriam restaurar à recém decapitada Monarquia brasileira.
O solo onde estive pisando hoje pela manhã é seco, improdutivo e estéril, mas bem que poderia estar florido e cultivado; os milhares de corpos que deixaram aqui seus sangues ou que foram enterrados em valas comuns, seja de um lado ou do outro, eram de brasileiros que sempre acreditaram numa única coisa: ser feliz em sua terra com o suor de seu labor. Aquele povo que morreu aqui e que inspirou Euclides da Cunha a escrever sua célebre obra “Os Sertões”, do lado do Governo, o que não me causa espanto algum, sequer sabiam ao certo o por que e quem eles estavam matando; do lado de Conselheiro, apenas um punhado de pessoas em busca de liberdade, oração e comida.
Em agosto será comemorado os 100 anos de morte de Euclides da Cunha; em setembro, 112 anos de morte de Antonio Conselheiro; de lá para cá quase nada mudou por aqui, as pessoas continuam peregrinando em busca de comida e água; hoje já não há mais vaga para gente como Antonio Conselheiro, Euclides da Cunha e Lampião; muito embora vejamos ao largo das rodovias que cortam esta região, motocicletas e carros novos, isso não se traduz em prosperidade ou em pujança. As pessoas de hoje que vivem por aqui, algumas tiveram sorte de terem um pedaço de terra menos triste, outras vivem das esmolas do Governo e um pouco restante vive para servir no básico que todas elas precisam.
O Exército, grande libertador de Bello Monte já não chega aqui há décadas; o Governo se limita em fornecer cartões de esmolas e ponto final; o restante dos políticos chega de dois em dois anos em busca dos votos que lhes manterão na farra de Brasília ou de Salvador e o povo, aquele que ainda sonha com comida e água, ainda sonha com a chegada de um Antonio Conselheiro que lhes conforte ou que lhes dê uma visão melhor de futuro, futuro este que hoje só lhes aponta ainda mais miséria!
A vida dos brasileiros é desta forma; alguns em Canudos e outros na Rocinha; uns nos sertões, outros nas florestas e muitos espremidos entre os prédios e o mar; 35% do nosso povo vive por viver e se dizem cidadãos somente para manter a calma e se encherem de alguma esperança falida.
Carlos Henrique Mascarenhas Pires
Foto: Carlos Henrique Mascarenhas Pires – Em breve todo acervo de fotos desta viagem estará exposta no Flickr.com do Yahoo.