No burburinho das ruas – mercadorias entre mercadorias.
Em um determinado trecho de “Paris do segundo Império”, Walter Benjamin cita uma frase de Guys, transmitida através de Baudelaire que diz: “Quem é capaz de se entediar em meio à multidão humana é um imbecil. Um imbecil, repito, e desprezível!”
Desta frase, partimos para verificar algumas questões a cerca do flaneur e da modernidade nos contos “Um e outro”, de Lima Barreto e “Capítulo dos chapéus”, de Machado de Assis. Tanto um como outro tem como personagens centrais figuras femininas.
Em “Capítulo dos chapéus”, é Mariana, recatada e caseira esposa de um advogado, que vivia em uma ciosa rotina no lar. Em “Um e outro” é Lola, a prostituta, que se esforça em levar uma vida burguesa.
Em ambos os contos, o ambiente da casa é contrastado com a ambiência das ruas. Para Mariana, a rotina era sagrada: “Uma das três janelas, por exemplo, que davam para a rua vivia sempre meia aberta; nunca era outra. Nem o gabinete do Mario escapava às exigências monótonas da mulher, que mantinha sem alteração a desordem dos livros, e até chegava a restaura-la”.
Já Lola, tinha na rotina da casa, um fardo “...enfim, aquele ar burguês da vida que levava, aquela regularidade, aquele equilíbrio davam-lhe a impressão de estar cumprindo pena”.
Ambas, no entanto, deixarão o espaço da casa e por diferentes motivos, desfilarão nas ruas, a moradia do flaneur: “...que entre as fachadas dos prédios, sente-se em casa tanto quanto o burguês entre quatro paredes. Para ele, os letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou melhor que a pintura a óleo no salão do burguês (...) bancas de jornais são suas bibliotecas, e os terraços os cafés, as sacadas de onde, após o trabalho, observa o ambiente.”
Embora resguardada no ambiente do lar, Mariana acaba por brigar com o marido porque este não lhe quis atender ao pedido de trocar o velho e surrado chapéu por outro que melhor conviesse com sua posição de advogado, que lhe desse uma melhor imagem perante seus pares.
É levada pela amiga Sofia, personagem que incorpora o espírito do flaneur e para quem a imagem é uma questão essencial, para um passeio a fim de se distrair. Perguntada por Mariana sobre onde iriam, Sofia responde incisiva: “—Que tolice! Vamos passear à cidade...”
Uma vez nas ruas, as duas transitam entre outros transeuntes e nesse ambiente se dispersam no jogo de ver e de ser visto. Para Baudelaire, segundo Benjamim, “O prazer de se achar numa multidão é uma expressão misteriosa de gozo pela multiplicação do número.” Chegam à Rua do Ouvidor.
- Esta Rua do Ouvidor! Ias dizendo.
- Sim? Respondia Sofia, voltando a cabeça para ela e os olhos para um rapaz que estava na outra calçada.
Sofia, prática naqueles mares, transpunha, rasgava ou contornava as gentes com muita perícia e tranqüilidade. A figura impunha; os que a conheciam gostavam de vê-la outra vez; os que não a conheciam paravam ou voltavam-se para admirar-lhe o garbo.”
Nesse turbilhão da Rua do Ouvidor, ampliado se contrastado com a pacata e rotineira vida de Mariana, pessoas e imagens se confundem, pessoas e mercadorias se entrecruzam. Nas ruas é possível ver e ser visto, porém, não mais como uma personalidade específica, mas sim, como uma imagem, uma figura, um fantasma a passar de uma atividade a outra, incessantemente, da loja de chapéus, ao dentista, falar de diferentes diversões, o jockey e o Teatro Lírico e por fim, numa busca incessante de novas emoções e novidades podia-se ir à Câmara dos deputados.
Pessoas e mercadorias confundidas na mesma fantasmagoria:
Entediada na sala de espera do dentista, Marina vai até a janela e de lá avista as mercadorias-pessoas-fantasmas:
“Da janela podia gozar a rua, sem atropelos. Recostou-se; Sofia veio ter com ela. Alguns chapéus masculinos, parados, começaram a fita-las; outros, passando, faziam a mesma coisa. (...) Na verdade, o chapéu era bonito, trazia uma linda gravata, e possuía um ar entre elegante e pelintra, mas...”
Note-se que no espaço da presença crescente das mercadorias, a individualização vai sendo substituída pela coisificação. Não são os homens que olham para as mulheres, são chapéus, são roupas, são mercadorias, são imagens, são fantasmas. Conforme afirmava Marx em “A consciência revolucionária da História”: “Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”.
Já Lola, não se dirige para a rua na fuga de um problema caseiro, para ela se dirige como quem vai para seu ambiente: “A rua dava-lhe mais força de fisionomia, mais consciência dela. Como se sentia estar no seu reino, na região em que era rainha e imperatriz.”
Embora como no conto de Machado de Assis, a rua e a fantasmagoria da imagem estejam presentes, no conto de Lima Barreto novos elementos entram em cena. Novas e ofuscantes tecnologias que não só aceleram o ritmo das ruas como também criam novas situações no jogo de ver e ser visto. Um desses elementos é o transporte coletivo. Voltando a Benjamim, diz ele que: “As relações recíprocas dos seres humanos nas cidades se distinguem por uma notória preponderância da atividade visual sobre a auditiva. Suas causas principais são os meios públicos de transporte. Antes do desenvolvimento dos ônibus, dos trens, dos bondes no século XIX, as pessoas não conheciam a situação de terem de se olhar reciprocamente por minutos, ou mesmo por horas a fio, sem dirigir a palavra umas às outras.”
Lola vai compartilhar dessa experiência. Vai desfilar sua imagem não apenas nas ruas, mas também no bonde, aonde diante de outros seres urbanos, vai se perceber diferente dos demais, talvez se perceba como um apache, “...que renega as virtudes e as leis. Rescinde de uma vez por todas o contrato social. Assim se crê separado do burguês por todo um mundo.”
Ao contrário de Mariana, que se sente aturdida nas ruas, Lola vai se colocar em cada espaço dessa modernidade ciente de sua diferença. O bonde seguia e ela seguia nele:
“O bonde chegou à Praça da Glória. Aquele trecho da cidade tem um ar de fotografia, como que houve nele uma preocupação de vista, de efeito de perspectiva; e agradava-lhe. (...) Considerou dessa vez os vizinhos. Todos lhe pareciam detestáveis. Tinham um ar de pouco dinheiro e regularidade sexual abominável. Que gente!”
Mas ela, entretanto não consegue livrar-se do fetiche da mercadoria. Dessa vez não é o chapéu que dita a personificação dos seres, mas sim o automóvel. “Na imaginação, ambos, chauffeur e “carro”, não os podia separar um do outro; e a imagem dos dous era uma única de suprema beleza, tendo a seu dispor a força e a velocidade do vento.”
As imagens se misturam e se tornam uma só. O amante e o carro. O carro e o amante. Para agradá-lo compra um presente caro e ofuscante. De ouro e pedraria. Na troca das mercadorias o prazer se estabelece. O ser e a coisa se confundem numa mesma falta de personalidade. “Marcara aquele rendez-vous com muita saudade e vontade de vê-lo e agradecer-lhe a imaterial satisfação que a máquina lhe dava. Dentro daquele bonde vulgar, um instante, ela teve novamente diante dos olhos o automóvel orgulhoso, sentiu a sua trepidação, indício de sua força, e o viu deslizar silencioso, severo, resoluto e insolente, pelas ruas em fora, dominado pela mão destra do chauffeur que ela amava.”
Porém, no mundo dominado pelas mercadorias e imagens, de mercadorias entre mercadorias, as imagens são supremas. A descoberta de que o amante não guiava um automóvel particular, mas sim um simples e despersonalizado táxi, faz o amor desmoronar como um castelo de cartas;
“Então... E aquela abundante beleza do automóvel de luxo que tão alta ela via nele, em um instante, em um segundo, de todo se esvaiu. Havia internamente, entre as duas imagens, um nexo que lhe parecia indissolúvel, e o brusco rompimento perturbou-lhe completamente a representação mental e emocional daquele homem.”
Não era o mesmo semideus, ele que estava ali presente; era outro ou antes era ele degradado, mutilado, horrendamente mutilado.”
Uma imagem que ama oura imagem, um fantasma que se apaixona por outro, uma mercadoria em comunhão com outra. Nas ruas e espaços da modernidade, cada imagem vale quanto pesa, e a coisificação dos seres é um imperativo. Fugir da mercantilização ou nela mergulhar e aproveitar seus reflexos e suas imagens? Qual seria afinal o verdadeiro papel, ou seria melhor dizer, qual seria a imagem do flaneur, do apache, do herói?