PALESTRIÃO: UM GRANDE ARCHITECTUS NA COMÉDIA MILES GLORIOSUS DE PLAUTO
Sabemos que a cultura clássica romana não surgiu da noite para o dia.
Primeiro, a Grécia, como uma grande civilização, exerceu um imenso
poder cultural sobre Roma, tornando-se para esta que, pouco a pouco se agigantava, um modelo de cultura. Hoje, podemos perceber que a
influência dos gregos ultrapassou muito mais do que fronteiras;
atravessou o tempo, tornando a Grécia o berço da cultura ocidental.
Séculos depois da brilhante existência do império helênico, Neatzsche
afirmou que "...Os outros povos da Antiguidade nos deram santos. Só os gregos nos deram sábios". Embora esta afirmação esteja carregada de ironia e materialismo, num aspecto, corresponde à verdade e revela
reconhecimento a um povo cuja vocação maior foi para o pensar
racional. Esta postura helênica permitiu a geração de discursos que
culminaram em invenções e descobertas fundamentais para a evolução da humanidade. Em todas as etapas da cultura, a Grécia tem inspirado, instigado e mobilizado estudiosos e todo aquele que se propõe a compreender o seu próprio tempo. Pois não há na História da nossa civilização, nenhum espaço que não tenha sofrido a influência da
civilização grega. Vieram da Grécia os Jogos Olímpicos, a Geometria, a
Filosofia, a Medicina, a Matemática, o Teatro, a História, além de uma série de conhecimentos e expressões de Arte.
Segundo Mario Schimidt ,
"A união da cultura grega com a romana produziu aquilo que
os historiadores chamam de cultura da Antiguidade Clássica. Ela é a base sobre a qual
se ergueu toda a nossa civilização ocidental".
Com isto, podemos entender que Roma tornou-se a maior via de transporte da cultura helênica para o mundo atual. Os romanos se apropriaram de uma fusão de elementos da cultura grega, e nos tornaram herdeiros, por exemplo, de tudo o que há de grego na língua portuguesa. A ascensão de Roma à condição de centro cultural do mundo, ditadora de padrões, ocorreu com a fundação do Império Romano . Roma conquistou inúmeros territórios, submeteu mais povos à escravidão e ao pagamento de impostos. Neste contexto, dominou também a Grécia, um tanto desgastada em suas fórmulas, segundo Hauser, mas saiu culturalmente dominada pelos gregos, tornando-se uma grande divulgadora dos padrões helênicos e, ao mesmo tempo, protagonista nos ditames de novos padrões culturais.
Embora o tema central dessa monografia seja o escravo na comédia de
Plauto, tendo como base o "Miles Gloriosus", é importante
registrarmos, também, como se deu o processo de helenização dos
romanos, para melhor entendermos as criações do fenômeno Plauto, que tanto se espelhou no modelo grego em suas produções. Segundo BURNS, as causas desse processo têm raízes nas guerras que proporcionaram a expansão de Roma
"As guerras com Cartago tiveram enormes efeitos sobre Roma. Em
primeiro lugar levaram-na a entrar em conflito com os governos do
leste do Mediterrâneo, e daí a abrir caminho para a dominação do
mundo. Durante a segunda guerra punica, Filipe V da Macedônia fizera
uma aliança com Cartago e conspirara com o rei da Síria para a divisão
do Egito entre eles. Para punir Filipe e impedir a execução de seus
planos Roma enviou um exército ao Oriente. Daí resultou a conquista da Grécia e da Ásia Menor e o estabelecimento do protetorado no Egito.
Assim, antes do fim do séc. II virtualmente toda a área mediterrânea
estava sob o domínio romano. A conquista do Oriente helenístico levou
à introdução em Roma de idéias e costumes semi-orientais, mudando,
como logo veremos, todo o aspecto da vida cultural."
Burns aponta para as raízes gregas da cultura romana, deixando
subentendido que o teatro romano tem suas bases construídas sobre um alicerce grego. No entanto, o predomínio do espírito romano nessas
bases, através de um acabamento bem aprimorado dessa construção, deixa fora de questão o teor latino desta forma de arte. E graças,
principalmente ao talento de Plauto – um comediógrafo carismático e
criativo. O teatro latino não foi semeado no solo estéril do plágio.
Foi buscar, na própria vivência romana, elementos próprios,
expressões e situações adequadas a uma platéia ávida de pão e de
risos.
Da questão da cópia da cultura grega atribuída aos romanos, inclusive
a Plauto, diz Michael Grant:
"A civilização romana não teria começado a ser o que foi sem os
gregos. (...) A influência grega direta foi a força dominante. A
literatura, arte e a arquitetura romanas tiveram origem em modelos
gregos. (...) Apesar de serem parte de um mesmo todo, os mundos grego
e romano diferiam. (...) Considerar que os feitos culturais romanos,
em virtude de suas raízes gregas, não passam de pálida imitação da
Grécia (...) é algo equivocado. (...)
Muita coisa de Roma continua viva, ainda que modificada (...): a
língua e o governo, o direito, a Igreja, a literatura, a oratória, a
arte, os negócios e os modos de pensar e de viver. A civilização
ocidental jamais deixou de estar consciente desses elementos romanos
que permaneceram."
É importante observar, também, que o teatro latino, especialmente em
termos de comédia, ateve-se mais ao entretenimento, em função do
espírito prático dos romanos, que não eram propensos a aprofundamentos filosóficos. Segundo Mario Schmidt, os romanos "... nunca tiveram filósofos originais como os gregos". Em sua grande maioria, constituíam uma população de agricultores e escravos. Talvez por isso a comédia tenha se destacado e superado a tragédia em termos de público.
Burns, apresentando um quadro mais abrangente, com respeito à ascensão de Roma, nos leva a crer que as guerras púnicas resultaram em desenvolvimento para a Roma do séc. III e II, contribuindo para o
aumento da população de escravos, a grande força ativa e produtora
dessa civilização. Diz ele:
"...indubitavelmente, o efeito mais importante das guerras púnicas foi a
grande revolução social e econômica que desabou sobre Roma nos séculos III e II a.C. Os incidentes dessa revolução podem ser assim
enumerados: 1) um grande aumento da escravidão devido à captura e
venda de prisioneiros de guerra; 2) desaparição progressiva do pequeno lavrador como resultado do estabelecimento do sistema de cultivo em áreas conquistadas e da introdução de trigo barato, oriundo das províncias; 3) o crescimento de uma multidão citadina desprotegida, composta de lavradores e operários empobrecidos, que tinham perdido suas ocupações por causa do trabalho servil; 4) o aparecimento de uma classe média composta de mercadores usuários e "publicanos", ou seja detentores de contratos governamentais para explorar minas, construir estradas e cobrar impostos; 5) aumento de lucro e da ostentação vulgar (...)."
Dentro desse processo de desenvolvimento, ficou estabelecido o
paradoxo da convivência paralela da miséria inconformada com a riqueza bem acomodada. O teatro e os espetáculos de gladiadores tiveram um papel muito importante, em termos psicológicos, junto à plebe. Burns relata com maiores detalhes essa situação:
"Em conseqüência dessa revolução econômica e social, Roma passou de uma república de pequenos fazendeiros para uma nação composta em grande parte de parasitas e escravos. Embora a propriedade nunca
tivesse sido equitativamente distribuída, o abismo que então passou a
separar ricos e pobres foi mais profundo do que antes. As velhas
idéias de disciplina e devoção ao estado enfraqueceram e os homens
começaram a fazer do prazer e da riqueza os seus deuses. (...)
Decaiu, ao mesmo tempo, a moralidade pública. Coletores de impostos
pilhavam as províncias e empregavam os seus lucros ilícitos em comprar os votos dos pobres. As massas infelizes da cidade passaram a esperar que os políticos as alimentassem e oferecessem para seu divertimento espetáculos cada vez mais brutais."
Podemos, então, entender que o teatro era um meio, um recurso para
conter as massas, evitando as grandes revoltas e rebeliões,
causadas pela miséria, que é a primeira desorganização social. Foi do
sátiro Juvenal a expressão "pão e circo" ("panis et circenses"), a
fórmula que resume a relação entre poder, teatro e plebe nessa época. "O povo gosta de circo", dizia ele. E como dependia de um patrocínio esses eventos, era condição "sine qua non" que os espetáculos tivessem uma boa receptividade junto ao público. Caso contrário, o dinheiro teria que ser devolvido aos patrocinadores. Isso explica o investimento maior no entretenimento do tipo comédias e lutas sangrentas.
O teatro de Plauto não foi encenado em nenhum monumento. Os palcos eram improvisados com madeiras. No entanto, em outras fases mais adiante, as grandes construções monumentais dos anfiteatros, como o Coliseu, contrastavam com o mesmo tipo de público que freqüentava esses espaços. Muitas vezes, neles, os romanos assistiam espetáculos chocantes, como lutas sangrentas de gladiadores com feras que terminavam em pedaços na arena, para o deleite de uma multidão de espectadores.
A História da Roma Antiga, pela sua extensão, se deu em várias etapas. Cada uma com suas características próprias. Porém, sempre marcadas por guerras, escravizações, influxos culturais gregos e organização militar cada vez mais acentuada. Um dos aspectos que mais se destaca em todo o decorrer deste processo histórico, é a questão da escravização do homem. Uma mácula, certamente, para uma História de bravuras e grandes feitos, de heróis e de florescimento artístico de uma grande civilização.
Visto com naturalidade, na época, o escravo não era considerado um ser. Era propriedade do seu amo, que podia fazer com ele o que bem entendesse, até matá-lo.
Essa população, constituída de escravos, era formada de plebeus, devedores e prisioneiros de guerra de várias camadas sociais e origens. Muitos plebeus, ao retornarem da guerra não tinham a condição de pagar suas dívidas. Suas terras ficavam abandonadas, seus familiares desamparados, enquanto eles estavam em campo de batalha. Assim, endividados, trabalhavam como escravos. Com isso, os patrícios obtinham maiores recursos de mão-de-obra em sua produção e ficavam mais ricos.
Segundo matéria da Internet, Roma chegou a ter uma população de 60 mil escravos. "(...) os escravos tornaram-se a principal mão-de-obra, tanto na agricultura quanto no artesanato, como já havia ocorrido na Grécia. Mas a grande originalidade de Roma foi a combinação de latifúndio e escravidão. Em comparação com o escravismo grego, o romano mostrou-se muito mais amplo e profundo, atingindo um número surpreendente de pessoas, proporcionalmente ao de pessoas livres:
• em 225 a.C., para 4 milhões e quatrocentos mil homens livres, havia
60 mil escravos;
• em 43 a.C., para 4 milhões e quinhentos mil homens livres, havia 3
milhões de escravos.
Nunca a Antiguidade tinha visto algo semelhante."
A escravidão foi a mola mestra da República Romana, a força geradora de toda a produtividade e riqueza que ergueram Roma a um patamar de grande civilização. O termo ESCRAVO, portanto, foi uma palavra-chave na Antigüidade Romana, pelo que representou em matéria de força de trabalho e geração de riqueza para uma minoria. O escravo foi o sujeito ativo de toda a Antigüidade Romana. Foi um grande produtor no campo e grande construtor na cidade; construiu todos os monumentos de Roma, como o Coliseu; além de estradas, prédios, aquedutos. Juntamente com os plebeus, os escravos formaram o grande alicerce de uma civilização erguida, como um rolo compressor, sobre si mesmos. A vida do escravo era de precariedades. As conseqüências eram as inúmeras rebeliões. Em vários momentos da expansão romana, escravos e plebeus fizeram rebeliões, obrigando os patrícios a criarem algumas leis que os favorecessem,como a Lei das Doze Tábuas, Lei Canuléia, Lei Licínia. Uma rebelião que ficou na História, foi a de Spartacus. Esta rebelião desestruturou, de certa forma, o poder por força da bravura e da artimanha deste escravo rebelde que não aceitou o jugo e morreu lutando. Com os seus combatentes, este grande líder chegou a dominar a maior parte do sul da Itália. Estes conflitos deram o que fazer aos poderosos de Roma. Por isso, podemos considerar que o escravo foi um construtor e desconstrutor ativo na História de Roma, como foram os escravos da comédia de Plauto.
É importante, num trabalho que pretende destacar o escravo neste tempo histórico, este tipo de registro. Principalmente, porque a arte imita a vida. E a presença do escravo, como personagem na comédia latina, reflete o modelo social romano e o modelo social grego, que além de utilizar este personagem em suas comédias, também foi a raiz primeira do Teatro latino.
Foi neste contexto social, marcado por guerras, helenização e escravização do homem que surgiu, no III século, Plauto ou Titus Maccius Plautus. Segundo Paratore , "... persistem dúvidas acerca do praenomen e do nomen."; como também com relação à data de nascimento, que foi deduzida em 254 a.C. Estima-se que escreveu 130 peças. Paratore, no entanto, tem como fonte segura as referências de Varão Reatino que afirma serem, autenticamente plautinas, 21 obras que chegaram intactas até nós.
Foi provavelmente um fruto da raiz popular, pois também foi escravo. "Plauto teve que sujeitar-se a girar a mó de um moinho, para subsistir; nos intervalos do seu trabalho ingrato e fatigante, escreveu três comédias, duas das quais intituladas respectivamente Satúrio (= o comilão) e Addictus (= o escravo por dívidas). Parecem títulos excogitados exactamente para a sua dolorosa condição ou, se as comédias existiram realmente, estimularam a tradição da miséria e do trabalho serviu do poeta: é que Plauto, se tinha verdadeiramente fome e foi obrigado, por dívidas, a um trabalho escravo, devia mesmo ter escrito a primeira comédia para desabafo da sua pobreza, e a segunda como comentário da sua situação miserável."
Plauto é considerado um dos maiores comediógrafos do Teatro latino. Destacou-se pela vivacidade, pela criatividade literárias, acrescentando à ebulição natural de um novo cenário de cultura, que seria âmbito de influência de toda a cultura ocidental, suas comédias picantes, inusitadas e hilariantes.
Nascido na Umbria, Sársina, Itália, morto em 184, trabalhou como diretor, ator e comediógrafo. Escrevia para as massas. Enquanto escravo, tornou-se verdadeiro especialista de uma linguagem popular que veio a enriquecer a sua obra. Sua convivência com diversos tipos sociais deste quadro hediondo de uma sociedade escravista, permitiu-lhe uma colheita de diversos elementos que o tornou mais autêntico em sua arte e mais íntimo da sua platéia, que era, praticamente, um personagem a mais em cena.
O seu público alvo era a grande plebe que necessitava de pão e circo. Dotado de grande habilidade e criatividade, produziu as suas comédias ao gosto romano, obedecendo aos códigos culturais latinos, apesar das referências gregas. Mas, se provocava gargalhadas com suas temáticas de época e do dia-a-dia, denunciava as mazelas de uma sociedade mesquinha, materialista e sofrida, através de determinados "tipos" como gêmeas, avarentos, soldados e escravos. É certo que esses personagens e situações cotidianas do povo romano, representadas no palco, levavam o público a uma identificação que resultava em risos e em grande participação da platéia. Essa "tática" de Plauto estabelecia uma conivência entre espectadores e as figuras (geralmente um escravo) encarregadas de resgatar o bem do transgressor para devolvê-lo ao merecedor. A partir de então, o palco se transformava em arena onde dois opositores se digladiavam até um deles se tornar o vencedor.
Uma grande característica de Plauto é a menção, no prólogo, de todas as informações necessárias a respeito do personagem ou assunto que seria o grande alvo do "combate". Assim, sem surpresas, prendia a atenção do público e fazia com que tomassem partido daquele que seria o vitorioso da "luta".
Com a sensibilidade daquele que conhece o seu povo, Plauto foi capaz de atender às expectativas do seu público, favorecendo a personagem que representava o lado do bem. Seguia, portanto, um padrão moral do romano, não só deixando em questão, como também punindo o transgressor do comportamento social. Como um adúltero, por exemplo.
Com isso, podemos retomar a Grant, lembrando o quanto é inadequado rebaixar Plauto à condição de um mero plagiador. Uma das razões do sucesso da sua obra foi justamente a identificação do público com a situação apresentada, perfeitamente adaptada aos padrões romanos. Dedicou-se, então, a adaptações da comédia grega – especialmente, a comédia nova de Menandro. Os estudiosos de sua obra dão a este processo o nome de "contaminatio".
Plauto parecia brincar com a sua platéia, através de jogos maldosos de palavras, insinuações e expressões ambíguas, como se quisesse acarinhar uma gente tão sofrida. São exemplos disso:
A descrição do Mercator:
"Cabelo branco, pernas tortas, barrigudo, boca grande, atarracado,
olhos negros, bochechas caídas, pé chato. - Não é um homem que me descreves,
mas um montão de calamidades".
Segundo Paratore, "das vinte e uma comédias plautinas que nos foram transmitidas (Curculio, Pseudolus, Stichus, Truculentus, Epidicus) cinco recebem o nome da personagem do escravo ou do parasita, urdidores de enganos e trocistas desavergonhados ." Qualquer uma dessas peças seria, talvez, mais indicada para o desenvolvimento deste trabalho. Mas o tipo escravo é uma figura constante nas comédias plautinas, caracterizadas por traquinagens e artimanhas. Geralmente é um arquiteto, um artífice que desbanca o transgressor do comportamento social. Nesse caso, a comédia "O Soldado Fanfarrão", é tão emblemática quanto as outras. O seu protagonista, o escravo Palestrião é talvez o mais astuto e enganador de todas as personagens plautinas do tipo escravo.. Tem uma articulação verbal que delicia. Até Lurcião, que atua mais como um trapalhão, é responsável por momentos de comicidade bem significativos. Ao informar a Palestrião que Céledro dorme, ele diz:
"(...) Só o nariz não dorme, isso não... Tal é o estrondo que faz com ele!"
Mas é ao Palestrião que o comediógrafo, de uma forma idealizante, empresta os sentimentos mais nobres. Até poesia. Num diálogo com Plêusicles, o escravo revela o senso filosófico, revelador de sua origem grega:
-"Tu, meu caro, tens uma maneira bem insólita de amar. Se na verdade te envergonhas de alguns dos teus actos, não amas de facto: de um verdadeiro amante não és mais do que uma sombra, Plêusicles."
Numa visão particular, achamos que, nessa comédia, o autor desfavorece, logo de início, o fanfarrão Pirgopolinices quando põe na obra um título referente a ele. Pois, até nisso perde para o escravo, porque nem protagonista ele é; como também não é nada do que afirma ser, embora se apresente como a metáfora da hipérbole. E, se tem um Etna de dinheiro, a beleza de um Páris e até Vênus o ama, é exaltado por um parasita, o Artrótogo; é enganado e ridicularizado a peça inteira por três figuras femininas que não tinham o menor valor na Antigüidade, porque a mulher era considerada o flagelo dos deuses: Filocomásio, sua amásia, e a cortesã Acrotelêucio e sua criada Milfidipa . Também é enganado por um sênex (Periplectômeno) e por um escravo, o Palestrião. Isto, sem falar nas atrapalhadas que os escravos Céledro e Lurcião faziam na adega do amo sem o seu conhecimento, o que não deixa de ser um desrespeito e uma traição.
A história se passa em Éfeso. Pirgopolinices obteve de forma ilegítima o escravo Palestrião e sua amásia Filocomásio. Os dois eram propriedades do Ateniense Plêusicles, um moço apaixonado, que se instala na casa de Periplectômeno para recuperar o que é seu. E, como sempre ocorre nas comédias de Plauto, o resgate fica por conta do grande herói da intriga, o escravo Palestrião. Este, muito ladino, abriu um buraco na parede da casa do amo, o Pirgopolinices – uma casa geminada com a do hospitaleiro senex Periplectômeno. A intriga sofre um certo agravamento, porque o escravo Céledro, ao subir no telhado para procurar uma macaca, avista a amásia do patrão aos beijos com Plêusicles. Grande parte da peça, então, gira em torno dessa "embrulhada", pois Palestrião teve que se desdobrar em mil artifícios para convencer o seu "companheiro de servidão" de que ele não viu o que viu. Para isso, estabeleceu em cena a ubiqüidade, através de Filocomásio, que passa a representar a sua irmã gêmea.
Palestrião resume o seu plano nestes versos:
"glalcumam ob oculos obiciemus, eumque ita/ faciemus ut quod viderit me viderit"
("lhe faremos vir uma catarata sobre os olhos e faremos crer que não tenha visto o que viu, diz Palestrião com uma imagem tirada da Medicina")
Após deixar Céledro completamente confuso, o grande architectus , como é chamado na peça, procura, com todo o empenho, reunir os meios necessários para resgatar a amada do seu verdadeiro amo, o Plêusicles. A tarefa é realizada com sucesso. O espertíssimo Pirgopolinices abre mão de sua amásia com todos os pertences, incluindo as jóias, e o próprio Palestrião que volta para Atenas muito gentilmente cedido. Só depois, quando estes já estavam embarcados, é que o mascarado fanfarrão cai em si. É quando Céledro finalmente se convence de que viu o que viu. E o resultado da "embrulhada" acaba numa sessão de pancadaria, cuja vítima não é nada mais nada menos do que o "netinho querido de Vênus", o mascarado e espertíssimo Pirgopolinices - um dos "nomes falantes" de Plauto que significa "vencedor de rochas e cidades". Finalmente, a peça é encerrada com uma fala interessante de Pirgo, que já sem a máscara e um pouco mais cúmplice daqueles que torcem pela preservação da moral e dos bons costumes, diz:
-"Se acontecesse o mesmo aos outros devassos, haveria sobre a terra menos gente dessa raça: teriam mais receio e menos gosto por taiz proezas. (...) (Aos espectadores) Batam palmas!"
Há um diálogo, nessa peça, muito representativo daquilo que nos propomos neste trabalho, que é destacar o escravo como um grande artífice nesta comédia "Miles Gloriosus". Neste diálogo, entre Palestrião e Periplectômeno, podemos observar um resumo da arte deste protagonista, através do sênex Periplectômeno; como também observamos o recurso da metalinguagem utilizada pelo autor. Parece que Plauto traça um paralelo entre a sua arte e a do escravo na tecitura de sua teia artística. Segundo o Professor Airto Ceolin, "A cena mostra "o trabalho do artista insatisfeito com a própria criação". Mas representar o ato criador, vale dizer um processo mental, ou fantástico, interior, é tarefa quase impossível; por isso Plauto recorre a uma admirável solução teatral: fazer descrever os movimentos e as atitudes de Palestrião para com o velho Periplectômeno, num vivacíssimo "a parte" recitado fora do campo, sobre o palco."
Pe: Mas o que estás ruminando nessa cabeça aí, Palestrião?
Pa: Cala-te um pouco, enquanto reúno os pensamentos e os consulto sobre o que hei de fazer, sobre as espertezas a contrapor ao astuto companheiro de servidão que a viu aqui beijando o jovem, de modo que aquele fique convicto de não ter visto o que viu.
Pe: Pensa, enquanto eu me retiro. (Distanciando-se um pouco de Palestrião e observando os movimentos) Olha que atitudes tomou, que cara faz, quando ajunta os pensamentos , quando reflete! Se bate o peito com os dedos, dir-se-ia que quer chamar para fora o coração. Eis que se volta, apóia-se sobre a coxa esquerda a mão esquerda e com a direita faz as contas com os dedos. Agora bate a coxa direita: que golpes se dá! Escasseiam as idéias; estalou os dedos: está angustiado, muda de posição continuamente. Por Ceres! Agora balança a cabeça; não serve o que encontrou. Qualquer que seja sua idéia, não a arrancará crua, mas a servirá bem quente. (Vendo que Palestrião apoiou o queixo na mão) Veja, agora está construindo; crava-se a ponta sob o queixo. À larga! É uma construção que não me agrada nada: ouvi dizer que nos lados do poeta latino com a face pontada, montavam guarda permanentemente, a toda hora, dois guardas. Bravo! Que graciosa atitude ele toma! Que garbo! Um verdadeiro comediante! Não se dará um instante de repouso hoje, se antes não tiver vindo à cabeça o que procura. Inventou, me parece! Vamos, mãos à obra! Bravo! Abre os olhos, não pegue no sono, se não preferes que sejam as vergas a acordar-te, enchendo-te de manchas. Digo-te: não hajas como cavalos castrados. Ei! Falo contigo, Palestrião! Abre os olhos, estou te chamando. Acorda! Já é dia! Estou falando contigo!
Pa: Estou ouvindo.
Pe: Não vês que o inimigo está às tuas costas e te ameaça os ombros? Toma uma decisão, emprega todos os recursos, toda ajuda; é preciso ser rápido, não há um inuto a perder. Desvia o inimigo por qualquer caminho, enrola-o guiando o teu exército por alguns passos, aperta-o num cerco, apresenta uma defesa para os nossos; corta os víveres aos adversários e abre uma estrada de modo que os cortejos dos víveres possam chegar seguros a ti e às tuas legiões. Põe-te à obra, é urgente; encontra, inventa,; rápido, acha um expediente quentinho, quentinho, graças ao qual o que se viu não se viu, o que aconteceu não aconteceu. (Ao público) Está-se iniciando uma grande tarefa. (A Palestrião) Garante-te, assume sozinho essa empreitada; há grandes esperanças de que possas embaralhar os adversários.
Pa: Eu me garanto: assumo sozinho o encargo.
Pe: E eu garanto que obterás o que desejas.
Pa: Então, que Júpiter te seja propício.
Pe: Te desagradaria pôr-me a par da descoberta?
Pa: Se ficas um pouco em silêncio, enquanto te introduzo no domínio dos meus estratagemas, saberás tanto quanto eu os meus planos.
Pe: Saberei guardar segredo.
Muito representativo, também, é o monólogo de Psêudolo que não resistimos mostrar aqui, porque é um outro exemplo da atuação do escravo empenhado em resgatar um bem para o seu patrãozinho querido, a amada Fenício, em poder do leno Balião. Neste monólogo podemos observar que Plauto lança mão do recurso da metalinguagem para falar da sua arte. É um dos momentos mais belos da poesia de Plauto, que bem ilustra o seu indiscutível talento artístico.
Psêudolo: Agora que ele se foi, estás aqui sozinho, Psêudolo. Então, como pretendes agir, depois de fazer generosas promessas ao teu patrãozinho? Sobre que coisas estão fundadas as tuas promessas? Não há nada pronto, nem mesmo a sombra de um plano seguro, nem um pouquinho de dinheiro... - tenho uma idéia do que devo fazer! - Não sabes de que ponto começar a tua teia, nem sabes com certeza onde terminarás de tecê-la... - Sim, mas como o poeta, tomadas as tabuletas, procuras o que não existe em nenhuma parte do mundo e todavia encontra, fazendo tornar verossímil o que é mentira. Assim o farei: tornar-me-ei poeta e as vinte minas que hoje não existem em nenhuma parte do mundo, acabarei por encontrá-las.
Psêudolo, depois dirigindo-se à platéia se confunde com o próprio criador da obra:
página 36
Estou suspeitando que agora vós suspeitais que eu vos prometo semelhantes empresas para vos divertir, a fim de levar ao término esta comédia, e que eu não seja capaz de fazer o que havia prometido. Não me retratarei. Por outro lado, que eu saiba, quanto ao modo pelo qual eu possa satisfazer-vos, não sei nada ainda de novo; sei apenas que a coisa me surgirá. Quem se apresenta sobre o palco deve levar, de modo novo, algum achado novo. Se não é capaz disso, deixe o lugar para quem é capaz. Tenho vontade de ir para casa um instante, o tempo de reunir na minha cabeça as fileiras das minhas intrigas. Mas voltarei logo, não vos farei esperar. Nesse ínterim o nosso flautista vos entreterá... (Entra em casa).
Como pudemos observar nesses monólogos, o escravo na comédia de Plauto é a figura central, o protagonista-maestro que rege completamente a cena; um arquiteto astuto, enganador que faz "tornar verossímil o que é mentira.", como o próprio teatro, o poeta, o artista, enfim. O escravo é a força que viabiliza o resgate do bem com justiça na trama. Tem como aliada a tychê que pode explicar o fato de tudo estar no lugar certo e na hora certo, quando o herói precisa:
"-Céus! Tenho ou não tenho sempre a ajuda da deusa Oportunidade?!", é o que Palestrião diz quando avista "(...).Aqueles que tanto desejava ver".(1135-126)
Em suas Báquidas, Plauto mostra para todos nós, através de uma adolescente romana, que um escravo não tinha nenhum valor. Até mesmo um pedagogo, que era refinado, porém parte deste quadro diverso de escravos, não tinha o menor prestígio:
-"Sou teu escravo ou és meu?"
E de fato a história conta que os meninos não respeitavam os seus professores. Julgavam-se acima deles.
Talvez deva existir uma teoria que possa explicar o porquê dessa fixação do teatro antigo num tipo social considerado desprezível pelos nobres. Para entender as razões de Plauto, seria preciso entender as razões da Grécia, raiz primeira do teatro latino, que já usava esse tipo.
Jô Soares, em uma entrevista na Revista Veja, diz que fazer piada com desgraças é "uma forma de exorcizar a tragédia". Diz também que "a primeira arma para desmoralizar um político é não respeitá-lo" e exacerbar o ridículo de suas canalhices. Isso talvez explique a atuação do escravo Palestrião na comédia Miles Gloriosus, de Plauto, um personagem que atua mais como intelectual do que como um reles subalterno. Nesta peça, o engenhoso arquiteto se destaca em cena e subjuga o fanfarrão Pirgopolinices, membro da classe dominante romana. E nada pode ser mais ridículo e humilhante para um representante das cúpulas do que perder para alguém de uma classe tão desfavorecida, como é o caso de um simples escravo.
Plauto, grande comediógrafo da Antiguidade, não chegou a revolucionar os costumes romanos com a sua arte. Suas comédias "funcionavam" como as nossas telenovelas hoje, que apenas garantem um bom entretenimento; mas, mantendo o povo estático ante às telas, giram sempre em torno das mesmas temáticas, usando os mesmos tipos, sem alterar o modelo social já fossilizado pelo tempo. Às vezes, chegam até a levantar uma grande questão para polemizar o horário nobre, fingindo estar mobilizando a consciência do telespectador. Questões essas, que acabam desconcentrando a população dos reais problemas do país, embora sejam de fato relevantes, como a Síndrome de Down, o racismo ou qualquer outra questão de cunho social. Contudo, a estrutura desses folhetins ainda é pautada num velho molde que permanece vigente, mas sem muitas condições de transformar e nem de contribuir efetivamente para uma mudança de mentalidades. É irresistível, portanto, não denunciar esta fórmula- mascarada-folhetinesca que só tem em suas entrelinhas a intenção de aumentar o ibope. Vender é preciso. E o telespectador permanece passivo diante da TV, quase adormecido, como se sofresse um efeito paralisante que faz com que ele não veja o que é mais do que berrante no país e se mantenha tranquilamente subnutrido à margem da saúde e da educação, como era o caso daquela platéia infeliz que carregava Roma nas costas todo dia, enquanto os Pirgos teciam suas tramas.
Plauto, embora possamos compreender suas razões, não ousou enfrentar o poder e a sociedade do seu tempo, questionando mais profundamente a condição humilhante e degradante de seres subjugados como os escravos. Se acomodou ao modelo social ao escrever, mantendo-se fiel a alfinetadas e uma clara intenção de entretenimento, como faz em O Soldado Fanfarrão. Nesta comédia, vemos em destaque uma figura da alta sociedade romana numa situação grotesca e ridícula - Pirgopolinices . O efeito cômico é, sem dúvida, estrondoso e certamente exercia uma dormência nos sentidos de expectadores miseráveis e infelizes, exatamente como deveria interessar aos grandes representantes do poder romano.
Infelizmente, os romanos não entraram em sintonia com a Filosofia dos gregos. Preferiram o circo, a barbárie da guerra, porque naturalmente já nasciam no meio de combates e tinham que se ajustar a uma cultura militar muito caracterizante da Antiga Roma. A máxima de sua vã filosofia era "Primeiro viver, depois filosofar". Pode ser que Plauto não gostasse nem um pouco disso, como podemos perceber quando Palestrião, livre para retornar a Atenas, diz a Pirgopolinices:
"Ai de mim! Quando penso em como terei de mudar de costumes! Ter de aprender hábitos de maricas e esquecer os de militar!"
Os estudos da Antiguidade funcionam como uma catapulta que nos arremessam novamente ao nosso próprio tempo. Porque lá encontramos elementos que formam as nossas bases. Então as máscaras de uma nova era, com a sua parafernália tecnológica sofisticada, são detectadas com mais facilidade.
É certo pensar que Plauto não imaginou que Pirgopolinices seria um tipo de personagem de tanta longevidade. Um personagem eternizado em toda a história da comédia, da literatura, como também em nosso convívio até os dias de hoje. Podemos detectá-lo nas cúpulas dos poderes. É o tipo do burguês colecionador de carros do ano, mulheres e roupas de marcas; um apaixonado pelo espelho das academias que costuma frequentar; um tipo, que apesar dos recursos econômicos, não está engajado em nenhum projeto social que possa beneficiar a coletividade.
Dizem que a Democracia, na Grécia, não correspondia aos verdadeiros valores deste sistema que, há milênios, nos promete justiça social. Mas, hoje, diante de favelas e balas perdidas por todo lado, até uma criança pode perceber que aqui, entre nós, a Democracia não passa de uma comédia de intriga repleta de escravos e fanfarrões. A Democracia tem conceitos utópicos e talvez nunca nessa nossa comédia (humana?) tenha realmente existido. Até porque, se sobram Pirgopolinices, nas cúpulas dos poderes, falta um Palestrião que nos resgate das teias de tanta injustiça.
BIBLIOGRAFIA
1. SCHMIDT, Mario Furley. Nova História Crítica. São Paulo, Nova Geração, 1999.
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3. BURNS, Edward McNall. História da Civilização Ocidental. Trad. de Lourival Gomes Machado, Lourdes Santos Machado e Leonell Vallandro.Porto Alegre, Globo, 1970.
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5. PARATORE, Ettore. História da Literatura Latina. Trad. de Manuel Losa. Lisboa,
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8. SOARES, Jô. Revista Veja, N. 44. Rio de Janeiro, ed. 2033, Editora Abril.
9. PLAUTO. O Soldado Fanfarrão.
Postado por Cristina Ribeiro às 12:17 0 comentários