Qual passado nos interessa revelar?

QUAL PASSADO NOS INTERESSA REVELAR?

A questão da abertura dos arquivos da repressão é tratada hoje por parte das elites brasileiras de forma perfunctória. Prova disso é a seqüência de matérias publicadas nos últimos dias pelo jornal carioca O Globo sobre os “arquivos da abertura”.

Em um instigante artigo o jornalista Maurício Thuswohl lembra que a Justiça uruguaia condenou (a 25 anos de prisão) oito militares, em fins de março, por participação na Operação Condor, a tristemente célebre ação conjunta perpetrada pelos governos militares da América do Sul para caçar e assassinar seus opositores por todo o continente. Eles foram condenadas por seqüestro e assassinato de diversos dissidentes políticos uruguaios que haviam conseguido refúgio na Argentina. Presos em Buenos Aires com a ajuda do exército argentino, os dissidentes foram levados à força para Montevidéu por militares uruguaios, e lá, desapareceram.

Com coragem, o Uruguai decidiu trilhar o mesmo caminho do Chile. A maior parte dos chilenos, desde a queda de Pinochet, demonstra firme vontade de encarar o passado, reconhecendo, julgando e, se for o caso, punindo. Trezentos ex-integrantes da ditadura militar chilena já foram processados e 200 condenados por crimes contra a humanidade.

Primeiro a prender Pinochet, o juiz Juan Guzmán Tapia esteve no Fórum Social Mundial, realizado em Belém, em janeiro. Durante sua intervenção, Tapia ressaltou quão importante foi para o Chile abolir os inúmeros acordos e “leis do perdão” forjados pela ditadura militar agonizante para defender a si mesma de futuras punições pelos três mil assassinatos e 1.200 desaparecimentos. Foi lamentada a pouquíssima colaboração das autoridades brasileiras para a elucidação de crimes cometidos no âmbito da Operação Condor.

Enquanto os parceiros do Mercosul avançam, o Brasil segue em sua posição acovardada frente à possibilidade de reconhecer, julgar e punir os criminosos da ditadura. Ministros comprometidos com a abertura dos arquivos do regime militar, como Tarso Genro (Justiça), Paulo Vannucchi (Direitos Humanos) e Nelson Jobim (Defesa), sofrem forte pressão contrária na mídia, dos circulos miolitares e dentro do próprio governo.

O Supremo Tribunal Federal permanece sentado sobre as tentativas de se abrir uma discussão revogatória da Lei da Anistia, fato que reflete a compulsão do Judiciário brasileiro em perdoar crimes cometidos por poderosos.

A Lei da Anistia é unilateral. Enquanto os subversivos são lelmbrados como terroristas, assasinos e assaltantes de banco, os torturadores e assassinos são perdoados. Os subversivos foram punidos (morte, tortura, prisão,m expurgo). E os torturadores? Nâo estaria pendente a punição deles?

A questão da abertura dos arquivos da repressão é tratada hoje de forma parcimoniosa. Prova disso é a seqüência de matérias publicadas nos últimos dias por O Globo sobre os “arquivos da abertura”, documentos do extinto Serviço Nacional de Informações (SNI), somente agora revelados, relativos ao período posterior à volta dos exilados ao Brasil.

Na falta de assunto mais interessante, o jornal parece se divertir em realizar um levantamento de todas as acusações feitas pelos militares a respeito de Leonel Brizola que teria suborno de empresas de ônibus e teria feito acordos com bicheiros e traficantes.

A divulgação desse tipo de informação prosaica pode ocasionalmente interessar aos grandes veículos de mídia e a seus donos, mas ir fundo em documentos realmente reveladores, nem pensar. Para quê? Afinal, como andam dizendo, o que aconteceu aqui foi uma ditabranda.

O fato é que, enquanto nos outros países do mundo os criminosos, torturadores e violadores dos direitos humanos são indigitados nominalmente, aqui são protegidos por uma impessoalidade, que fala em ditadura, repressão, anos-de-chumbo, sem dar nome aos bois.

Qual o passado nos interessa revelar? A quem convem o esquecimento?

Escritor, filósofo e Doutor em Teologia Moral.

Autor, entre outros, do livro "Crise da Ética", Ed. Vozes, 4a. edição.