O Clássico Acossado
Um novo tratamento lingüístico e temático: montagem sincopada, cenas dinâmicas e ágeis, mas com espaço para reflexão. Ainda que excessivamente curto e objetivo, o período anterior é capaz de resumir Acossado (À Bout de Souffle, 1959), a obra de Jean-Luc Godard que inaugura o movimento cinematográfico francês conhecido como nouvelle vague – que influenciou, inclusive, o cinema novo brasileiro. Godard era um dos críticos da famosa revista Cahiers du Cinema.
Com Jean Paul Belmondo e Jean Seberg, e roteiro a quatro mãos com o não menos ilustre escritor-crítico-cineasta François Truffaut, Acossado foi o primeiro longa-metragem de Godard, mas o mais lembrado e festejado, provavelmente por ser o primeiro a conter realizados os ideais compartilhados com seus companheiros de Cahiers e da nouvelle vague.
Esta escola cinematográfica representou uma verdadeira revolução no modo de fazer cinema até então vigente, a começar pelo sistema de produção dos filmes. A idéia era filmar – assim como no neo-realismo italiano – com poucos recursos, com o máximo de liberdade para o cineasta, que podia, assim, fugir da ditadura das produtoras. A liberdade do realizador, aliás, era o preceito mais importante para este movimento, que superestimava a figura do “cineasta autor”.
Todavia, além do assim chamado autor, existem o “estilista” e o “artesão” e não se pode dizer que um cineasta autor é necessariamente mais artístico ou mais competente que outro, pelo simples fato de ser autor; há também excelentes estilistas e ótimos artesãos, assim como autores ruins. O que dá qualidade a um cineasta é, antes de qualquer outra coisa, seu controle sobre a linguagem própria do cinema e não seu modo peculiar de ver e fazer cinema.
Continuando, após essa breve e necessária digressão, o passo seguinte à libertação do cineasta era subverter a linguagem então predominante no cinema clássico francês. Faz-se necessária uma ênfase no adjetivo “francês”, pois os participantes deste movimento – notoriamente o já citado François Truffaut – tinham grande apreço pelo cinema clássico americano. Sim, o cinema hollywoodiano, tão satanizado por pseudo-intelectuais que endeusam os cinemas europeu e asiático de um modo geral. Godard, então, consegue chocar – mesmo atualmente – com a radicalização lingüística proposta em Acossado. O rebelde intelectual francês, com sua câmera ágil, promove uma ruptura com a narrativa tradicional, construindo uma nova, descontínua e, ao mesmo tempo, dinâmica.
Um dos aspectos mais marcantes da inovação lingüística do filme é a ausência de sincronia entre imagem exibida e diálogos correspondentes. Os cortes não seguem o fluxo dos diálogos, desrespeitando a cartilha dos tradicionais campo e contra-campo. A edição de Acossado efetua cortes inusitados, dentro de um mesmo plano, de uma mesma ação, como que fragmentando uma tomada em vários pedaços. Uma cena ou um trecho de cena que, tradicionalmente, seriam constituídos por uma única tomada, são formados por várias, curtas e rápidas. Tal modo de montar a película, longe de se mostrar como desnecessário capricho vanguardista, tem um objetivo com resultados claros dentro da progressão narrativa do filme. Godard consegue, por exemplo, deixar a longuíssima seqüência do diálogo entre Michel (Belmondo) e Patrícia (Seberg) dentro do apartamento dela, dinâmica e ativa, sem qualquer ameaça de enveredar para a monotonia. Já a seqüência do assassinato cometido por Michel contra o policial rodoviário pode ser bem qualificada como “telegráfica”; numa breve tomada vemos, em plano fechado, a arma disparando, seguido pelo plano, rápido como um flash, do corpo do policial caído, para vermos, em seguida, num plano aberto, o assassino correndo freneticamente em fuga pelo campo aberto.
As inovações de Acossado não estão apenas no campo da narrativa cinematográfica. Vale lembrar também o uso – não exatamente usual no cinema – da metalinguagem, quando Michel Poicard expõe seus comentários e pensamentos ao espectador, enquanto dirige perigosamente em uma estrada, pouco antes de assassinar o policial que o fez parar o carro. E, claro, há de ser ressaltada, a revolução temática promovida por Godard em sua singular obra inaugural. Acossado aborda temas, até então, considerados tabus; ou seja, nesse sentido também, pode-se dizer que Godard fez um filme moderno, pois além de fazer uso de uma linguagem vanguardista, aborda temas modernos sem as amarras do pudor. Entre outros temas, o filme, através dos bem escritos diálogos entre Michel e Patrícia e da impagável entrevista ao escritor (Jean Pierre Melville), fala abertamente sobre sexo e os conflito entre homens e mulheres. Há também, como lembra José Lino Grunewald, um novo modo de atuação dos intérpretes. Os personagens não são compostos a partir de regras predeterminadas; conhecemos os personagens, que são ambíguos, com o desenrolar da película, e não, a partir de conceitos prévios ou rótulos. O mesmo Grunewald, no entanto, quando dissertando acerca da importância dos diálogos em Acossado, exagera ao assinalar a “perfeita funcionalidade (e não apenas o fator imprescindível) do diálogo no cinema”. Obviamente, os diálogos constituem peça importantíssima em Acossado, assim como em outros grandes filmes. Deve-se lembrar, contudo, que durante certo tempo, o cinema não era ainda sonorizado e foram realizadas grandes obras mudas durante esse período. Pode-se argumentar contra isso, que havia as legendas que interviam em algumas cenas, mas eram poucas, nem de longe comparáveis ao grande volume de falas e narrações da maioria dos filmes sonoros. O acréscimo do som e a conseqüente efetivação do diálogo ao cinema constituíram-se como uma contribuição, mas não se pode esquecer que se trata de um elemento não-específico à linguagem cinematográfica.
Marcante também é a seqüência final, tanto por seu aspecto formal, quanto temático. O desfecho do filme consolida de uma vez a ambigüidade em que os protagonistas estão mergulhados; Michel, após todo seu esforço para fugir e obter dinheiro, inesperadamente recusa a ajuda para se esconder, oferecida insistentemente por um amigo e acaba por se ver acossado pela polícia. Quanto a Patrícia, ela mesma – de forma aparentemente contraditória – se encarregou de entregar seu perigoso e procurado amante à polícia. Michel é então, inadvertidamente, baleado por um policial e sai cambaleando pela rua, seguido pela câmera em travelling – desta vez sem cortes –, até tombar ao chão, mortalmente ferido. A câmera então fecha em close no rosto de Michel, que faz suas caretas características e diz a Patrícia, prostrada sobre seu corpo: “Você é uma nojenta”. Uma brincadeira com a amante americana que não entendeu, por não dominar totalmente o francês. Uma pergunta então fica pairando após o fim da projeção: por que Patrícia entregou o homem por quem demonstrava estar apaixonada, indo depois, amorosamente, ao encontro desse mesmo homem baleado e capturado? Essa indagação apenas reforça a tese de Grunewald que nos lembra a inconstância e ambigüidade dos personagens, cujos perfis não estão previstos por algum conceito, rótulo ou tipificação; por mais que possamos pensar que já os conhecemos, eles nos surpreendem, o que é bem ilustrado pela atitude de Patrícia. Tentando, porém, invadir a psicologia da personagem, talvez seja válido dizer que ela tenha tomado tal atitude para se livrar do homem que amava, mas que, ao mesmo tempo, era um estorvo em sua vida, pondo-a em conflito e perigo; sem ele por perto, ela não precisaria mais mentir, se esconder, nem sofrer com a dúvida entre sua própria vida e carreira e uma perigosamente incerta fuga para outro país.
Enfim, Acossado é um filme que, em sua estrutura básica, é deveras simples, já que possui um narrativa linear e conta a trajetória de um anti-herói em fuga da polícia. Assistindo ao filme, entretanto, vê-se desde seu início que se trata de muito mais do que isso; é fruto do talento de um homem que, conhecendo a fundo o cinema e sua linguagem, foi capaz de subvertê-la e inová-la com bastante competência e criatividade.