Na era da individualidade máxima, telefones e computadores substituem a boa e velha relação sexual

O sexo em vias de extinção - (Preserve o sexo antes que ele acabe)

Solidão sexual é um tema antigo, mas nem tanto. Foi preciso primeiro criar a história e a cultura para depois surgir a solidão sexual. Prometeu, por exemplo, acorrentado por ordem de Zeus, no alto de uma montanha, foi um dos primeiros solitários de que se tem notícia desde que o mundo passou a ter história. Ainda por cima, era obrigado a aturar aquele urubuzão que vinha, todos os dias, devorar um naco do seu fígado. E tudo por causa de uma reles caixa de fósforo -- também chamada de fogo divino -- que Prometeu ousou surrupiar ao grande deus do Olimpo. Além da dor física, o pobre herói, na flor da idade e com os hormônios fervilhando no corpo, tinha de suportar também uma solidão medonha. Dá para imaginar o jovem e belo Prometeu, ali, pelo milésimo dia de suplício e carência sexual, olhando já com certo interesse lúbrico para o abutre divino. Tipo “não tem tu, vai tu mesmo”.

Antes de Prometeu e sua horrível solidão, o que havia eram humanídeos peludos aglomerados numa caverna, tremendo de medo da natureza, tentando inventar o fogo e a roda e desenhando aqueles bisontes e cervos que iriam garantir o emprego e a aposentadoria dos futuros arqueólogos. Alí, na pré-história, pelo que consta, não existia solidão e se copulava à vontade. Era só chegar, roçar e mandar ver. Talvez nem fosse preciso roçar. Machos e fêmeas não faziam questão de beleza nem de posição social por parte do parceiro. Muito menos de inteligência. Se houve algo parecido com o paraíso, foi aquilo.

Carência, mesmo, veio depois da Queda. Ou seja, com a expulsão do paraíso. Foi quando os macacões finalmente aprenderam a falar. Viraram humanos. Alguns, como era previsível, só falavam besteira, revelando-se uns chatos de galocha e sendo por isso marginalizados e até expulsos da tribo. Tornaram-se solitários do tipo “ninguém me ama, ninguém me quer, ninguém me chama de Baudelaire....”, como se auto-gozava o autor desse clássico da fossa popular brasileira, o compositor e cronista Antônio Maria. Era ele quem afirmava que a única vantagem da solidão é a pessoa poder sentar no trono de porcelana com a porta do banheiro aberta. No mais, solidão só dá metafísica e samba-canção.

Plugado

Acontece que a solidão, especialmente a sexual, está deixando de ser um problema. Ao contrário, está sendo valorizada, o que é péssima notícia para os psicanalistas, que poderão ver seus consultórios se esvaziarem do dia para a noite. Uma pesquisa recente nos Estados Unidos (claro), revelou que a família ideal é hoje composta de um solitário, um animal de estimação e um computador multimídia, plugado na Internet.

Em torno desse núcleo gravita toda uma constelação de parentes-entre-parênteses: microondas e congelados, TV a cabo e DVD, celular, fax, livros (poucos), revistas (muitas), som, sauna doméstica, armas, aparelhos de ginástica, móveis inteligentes (há uma cama programada para colocar a pessoa de pé, suavemente, de manhã) e tudo o mais ao alcance de um sólido cartão de crédito.

O sexo interativo-não-virtual (leia-se a boa e velha relação sexual) vai se tornando uma curiosidade do passado. Só hippies embalsamados, índios e parte do proletariado ainda se entusiasmam com a idéia de praticar sexo. Entre os adolescentes também se nota algum interesse sexual, mas nada que um bom par de patins on-line não resolva com facilidade.

Libido

O fato é este: o não-sexo é o que há em matéria de comportamento moderno. Basta olhar em volta. O adultério (lembram-se dele?) está para ser desclassificado como crime no Código Penal Brasileiro, talvez por falta de adeptos. A libido? Esta se fixou de vez no aparelho auditivo, como atesta a proliferação incontrolável de sexo por telefone. E não é à toa que a cocaína, droga que reduz a zero os sinais vitais do organismo, vem conquistando insidiosamente a classe média. A pessoa perde a fome, o sono e o desejo, gastando toda a energia num blablablá sem fim, ao qual ninguém presta a menor atenção.

Vamos abrir os olhos e reconhecer: o sexo está em vias de extinção, como o mico-leão e o peixe-boi, e não há Ibama que venha socorrê-lo. Também, pudera! Dos anos 80 para cá, o sexo acabou sendo associado a pragas como a Aids, herpes, hepatite C, papiloma e gravidez indesejada, entre outros estorvos e ameaças à vida. O discurso clínico tenta tirar o sexo do motel para confiná-lo num hospital. Os resultados disso não se fizeram esperar.

O machão contemporâneo, por exemplo, se gaba das mil mulheres maravilhosas que heroicamente não levou ao leito e de sua fabulosa coleção de camisinhas estrangeiras (tem até uma que toca um cocoricó de galo na hora H), todas elas intactas dentro do invólucro. E tamanho do pênis também não é mais documento (como, aliás, nunca foi). Documento, mesmo, é um atestado anti-HIV negativo com data recentíssima para se pendurar na parede da alcova. Sem contar a criminalização da paquera, rebatizada de “assédio sexual”, que em vez de cama dá cana, como já observou mais de um Mike Tyson da vida.

Castidade

Sintomas de dessexualiazação progressiva do cotidiano pipocaram por toda parte. Na Espanha solerosa, existe um Clube de Castidade, com rápidas e extensas ramificações internacionais. O castor-mor é um físico chamado Marcos Gutierrez, que, pelo visto, de físico mesmo não tem nada. O Clube de Castidade defende a abistinência ostensiva do sexo antes, durante e depois do casamento. Os noivos exibem com orgulho o lençol branco, virginal, na manhã seguinte à noite de núpcias, indicando que sobre ele não se passou nada de interessante.

A maioria dos neocastos, porém, continua evitando a proximidade de outros corpos humanos. Estes, ao contrário de Caetano Veloso, não têm ódio a Grahan Bell e só se comunicam por telefone. Quem viu o delicioso filme do americano Hal Salwen, Denise está chamando, sabe do que se trata. Ali, um grupo de nova-iorquinos se vale do telefone e da secretária eletrônica para simular um convívio que prescinde por completo da presença física. O único casal que procria o faz anonimamente, através de um banco de esperma, sem que o homem e a mulher jamais se vejam cara a cara. Paira, latente, a idéia de que a humanidade pode perfeitamente se reproduzir sem que ninguém precise abrir mão da própria solidão.

Enfim, o que Leonardo da Vinci disse sobre a arte vale também para o sexo: é coisa mental. O corpo é para produzir; a mente que se vire sozinha com suas ridículas fantasias. De todo modo, não falta muito para a ciência nos transformar em um conjunto de próteses cambiáveis, sem desejos nem necessidades que possam se auto-satisfazer. Livres da carne e seus desejos e carências, seremos todos compulsoriamente felizes na mais completa solidão.

O tédio será a principal causa mortis desse futuro anunciado. As publicações de informática ocuparão todo o espaço das revistas de “mulher pelada” nas bancas -- o que, aliás, já é uma tendência observável. O bom da história é que a autora desta matéria assistirá a tudo isso lá do céu, onde estará de visita como bolsista a pesquisar o sexo dos anjos.

Fonte internet: http://www.dm.com.br/capa/dmrevista

*Esse artigo foi publicado no DMRevista, uma espécie de caderno dois do jornal Diário da Manhã, de Goiânia, Goiás, em 28 de junho de 1998. Foi muito bem recebido pela crítica especializada.