Moral e Politca
Moral e Política
Eurico de Andrade Neves Borba, ex-Presidente do IBGE, ex-secretario executivo da Associação de Mantenedoras de Escolas Católicas, foi Conselheiro do Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, ex professor e ex Vice Reitor da PUC RIO.
Confrontado com a afirmação de um renomado professor de filosofia de que – “moral e política não se misturam” – não posso silenciar sem tentar uma resposta à agressão ao bem pensar.
Creio que qualquer político, professor, religioso, artista, sindicalista, ao se pronunciar, publicamente, sobre questão tão central nos tempos atuais, qual seja as implicações morais do exercício da política, precisa esclarecer, de início e de forma muito clara, qual o pressuposto maior sobre o qual fundamenta seu pensamento. Nos temas enfocados, ética e moral, acredito, como tantos outros especialistas na matéria, que o ponto central e primeiro é: acredita-se ou não na transcendência da pessoa humana?
Não acreditando, não há porque se falar em ética. O objeto do estudo desta ciência, que examina as ações humanas na perspectiva de qualificá-las em relação a valores tais como o bem, o mal, a justiça, a caridade, a solidariedade, só adquire sua significância se se puder estabelecer comparações com o bem maior e permanente, com a fonte da verdade única e definitiva, com o amor/caridade infinito – DEUS. Sem a perspectiva de um Deus Criador que gerou a pessoa humana “a sua imagem e semelhança”, a sua criatura a mais querida, como ensina a tradição cristã, teríamos de falar, apenas, na eficácia das relações sociais organizadas, na perspectiva da maximização dos resultados alcançados, necessários para a satisfação das necessidades e dos desejos físicos dos cidadãos.
Ao contrário, caso se acredite no destino transcendente da pessoa, na existência de um Deus Criador, aí sim se pode falar em ética. Neste caso é imediato o reconhecimento de uma dignidade essencial a todos os seres humanos, sujeito de direitos inatos e inalienáveis, uma vez que somos uma centelha muito especial e misteriosa do amor de Deus. Esta mensagem ética é, na história, a grande novidade da mensagem cristã, que, recuperando a tradição greco-judaica, tornou possível a civilização ocidental, responsável pelas maravilhosas conquistas da humanidade, ao mesmo tempo que gerou, ao lado de extraordinárias conquistas para milhões de trabalhadores, a mais abjeta dominação política e econômica, aspectos trágicos da nossa história, até hoje não resolvidos, para bilhões de seres humanos.
Afirma o pensador que me chamou a atenção:“Antes deixe-me resgatar o sentido da ética na política. Senão, vamos imaginar que todos os políticos são santos e que a política é uma espécie de continuação dos atos morais. ...... O universo da política permite e tolera uma certa imoralidade”. A uma pergunta do repórter, “quem é o juiz da moralidade?”, responde: “É o político com relação à opinião publica. E conforme a opinião publica vai tendo parâmetros de tolerância, vai exigindo mais ou menos. .....”. O ilustre professor reafirma suas palavras e acrescenta mais um exemplo do que pensa: - simulando uma partida de futebol, diz que compreende e aceita pequenos deslizes, usou a expressão “catimbas”, de um jogador, que de posse da bola, puxe o adversário pela camisa para fazer um gol, objetivo maior do seu time. Pelo seu exemplo, o autor é um adepto do princípio “o fim justifica os meios”.
Em primeiro lugar, me parece conveniente que se faça a necessária distinção entre ética e moral. Aprendi, com consagrados autores, Tomaz de Aquino, Jacques Maritam e o nosso saudoso Franco Montoro, por exemplo, que a ética é uma reflexão filosófica, uma ciência, que trata da conduta humana na perspectiva de uma justificativa racional para os juízos de valor sobre a moralidade. A moral, por sua vez, é outra ciência, normativa, que, nutrindo-se da inspiração ética, com seus conceitos estáveis e gerais, procura estabelecer normas de conduta adequadas ao tempo histórico e à civilização específica, intentando esclarecer o agir humano na busca da promoção da individualidade de cada um e da promoção integral da sua natureza racional, livre e social.
Foram as confusões e incompetências religiosas, acadêmicas e políticas que, no decorrer da história, fizeram com que os valores éticos fossem traduzidos, pervertidamente, em normas morais. Conceder, ceder é cada vez mais sedutor e simpático do que afirmar verdades eternas, atitude que isola os que assim procedem. É incrível como boa parte da população aceita e proclama que os valores éticos são passíveis de escrutínios populares, confundindo a forma superior de convivência democrática a que se chegou numa sociedade, com a defesa de valores eternos, que continuarão a existir mesmo que sucessivas votações sejam contrárias ao que afirmam. Por exemplo, para os cristãos, o direito à vida plena e digna, desde o momento da concepção, continuará a ser um valor ético permanente a ser defendido e proclamado, mesmo que multidões votem contrariamente a este princípio. Pelos tempos à fora valerá ao diretriz ética que proclama, de acordo com a lei natural, que tudo o que concorre para a promoção da natureza humana é bom, e tudo o que prejudica esta promoção é um mal a ser evitado. Um homem ético, digno, o é 24 horas por dia, 365 dias por ano. No seu relacionamento moral com os demais não cede 1 milímetro em suas convicções. Evidentemente erra, cede a tentações, peca. Mas a cosmovisão cristã confia na redenção do Cristo, Redentor dos Homens. Remidos pelo mistério da morte e ressurreição de Jesus, os cidadãos e cidadãs éticos, sempre procurarão testemunhar uma vida moral, mormente na política, em todas as épocas históricas, segundo uma mesma Lei Natural, fonte e inspiração permanente e estável da reflexão ética.
De outra parte é preciso lembrar que a “opinião publica” não pode ser padrão de referência moral para ninguém honestamente comprometido com a promoção de valores éticos como o bem comum, a justiça, a liberdade e a democracia. A palavra opinião significa um estado de espírito entre a certeza e a duvida – diz-se ter uma opinião... Mesmo no caso da “opinião publica”, que, em alguns momentos, pode reverter-se de aspectos de certa permanência no tempo, caso seja alimentada por hábeis políticos e eficiente propaganda, seu caráter essencial é da transitoriedade. Ora, o relacionamento entre as pessoas não pode ficar ao arbítrio das normas morais estabelecidas, temporariamente, a cada eleição, pelos partidos políticos de plantão nos palácios governamentais ou no Congresso Nacional, assessorados pelos melhores e mais hábeis marqueteiros. A democracia, a liberdade, a justiça, o bem comum, exigem paradigmas estáveis – a lei natural – fundados que são na concepção da dignidade da pessoa humana e na obrigação solidária, de todos, de promovê-la, a cada momento da história da humanidade. Não há como defender um relativismo moral, mesmo que se pretenda justificá-lo sobre o falso e demagógico argumento de respeito à mutável opinião publica.
O direito positivo dos povos, as instituições democráticas, precisam ser fundadas sobre alicerces sólidos, não só como respeito à lógica, à inteligência, à verdade, mas como princípio administrativo que permita que as relações, os negócios de uma sociedade funcionem, confiantes em alguma permanência, no tempo, das “regras do jogo”, imprescindíveis para o viver coletivo. O contrário seria o caos social, por conta das contínuas mudanças das regras de convivência, comandadas pelas alterações do humor da população, que pode e é manipulado pela mídia, pela propaganda, pelas leis votadas pelos políticos amorais e imorais. A pessoa humana com um ser social, por depender para a sua realização individual de todas as demais pessoas, não pode desrespeitar seus concidadãos com atitudes imorais ou amorais, esquecendo-se da lei natural, dos princípios éticos que devem reger a conduta humana. A pessoa humana tem na sua natureza a vocação incontornável da solidariedade, princípio ético que se traduz em normas morais de convivência.
Durante anos, passando de ônibus pela Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, lia num dos seus monumentos esta frase: “A sã política é filha da moral e da razão”. Não sei quem a escreveu. Certamente tem ares dos positivistas que fundaram a nossa Republica, mas ela está correta. Escolho para finalizar este já longo artigo, dentre tantos outros documentos do Magistério da Igreja Católica, “mãe e mestra”, “perita em humanidade”, num ensinamento do saudoso e querido Papa João XXIII, o “bom Papa João”, que assim falava sobre o tema que estamos a tratar, em 1963, na sua Encíclica Pacem in Terris: “A ordem que há de vigorar na sociedade humana é de natureza moral. Com efeito, é uma ordem que se funda na verdade, que há de realizar-se segundo a justiça, que há de animar-se e consumar-se no amor, que há de recompor-se sempre na liberdade, mas sempre também em novo equilíbrio cada vez mais humano,( 37)”.