No céu acontece uma liturgia (Sermo XXVIII)

NO CÉU ACONTECE UMA LITURGIA

Recordo que há alguns anos atrás, quando participei de um curso avançado sobre o Apocalipse, na Costa Rica, uma das tantas coisas que me surpreendeu ao ler os relatos espirituais do vidente de Patmos, foi saber que no céu acontece uma liturgia que, pelo seu caráter de eternidade, não teve começo nem terá fim. O Antigo Testamento refere-se ao coro de anjos que contempla a face de Deus, adorando-o e glorificando-o, eternamente:

... eu vi o Senhor sentado num trono alto e elevado. A barra do

seu manto enchia o templo. De pé, acima dele, estavam serafins,

cada um com seis asas; com duas cobriam o rosto, com duas

cobriam os pés, e com duas voavam. Eles clamavam uns para os

outros: “Santo, Santo é Javé dos exércitos, a sua glória enche

toda a terra” (Is 6, 1ss).

A liturgia do céu também se revela na plenitude dos tempos messiânicos. Quando Jesus nasce, em Belém, um anjo do Senhor vai anunciar a Boa Notícia privilegiadamente aos pobres, aos pastores. O júbilo pela encarnação é tão grande, que a liturgia do céu transcende e se faz sentir na terra. Esse conjunto de atos litúrgicos, levados a efeito no céu e na terra nos dá uma idéia daquilo que mais tarde se transformaria em um “artigo de fé”: a comunhão dos santos.

De repente, juntou-se ao anjo uma grande multidão de anjos.

Cantavam louvores a Deus, dizendo “Glória a Deus no mais alto

dos céus, e paz na terra aos homens por ele amados!”

(Lc 2, 11).

A liturgia que acontece no céu, narrada no livro do Apocalipse, é uma celebração de alegria, de glória a Deus e de júbilo pela vitória dos justos, que venceram a grande tribulação. Os textos do último livro do Novo Testamento servem para orientar o místico, o orante, o teólogo, o artista sacro, o liturgista, o catequista e o cristão em geral. A esposa do Cordeiro (a Igreja) celebra uma liturgia de espera (cf. Ap 21, 9), preparada, enfeitada para seu esposo (cf. 21, 2), para uma vida plena, quando Deus fará sua morada com os homens (cf. 21, 3). Inserida no conjunto da segunda visão (4, 1 – 5,14), vê-se a corte celeste celebrando uma liturgia:

Depois de escrever as cartas às Igrejas, eu, João, tive uma

visão. Havia uma porta aberta no céu, e a primeira voz, que eu

tinha ouvido falar-me como trombeta, disse: “Suba até aqui

para que eu lhe mostre as coisas que devem acontecer depois

dessas”. Imediatamente o Espírito tomou conta de mim. Havia

no céu um trono e, no trono, alguém sentado. Aquele que

estava sentado parecia uma pedra de jaspe e cornalina; um

arco-íris envolvia o trono com reflexos de esmeralda. Ao redor

desse trono outros vinte e quatro; e neles, vinte e quatro

Anciãos, que estavam sentados, todos vestidos de branco e

com uma coroa de ouro na cabeça. Do trono saíam relâmpagos,

vozes e trovões. Diante do trono estavam acesas sete

lâmpadas de fogo, que são os sete Espíritos de Deus. Na frente

do trono, havia como que um mar de vidro, como cristal. No

meio do trono e ao redor estavam quatro Seres Vivos, cheios de

olhos pela frente e por detrás. O primeiro Ser Vivo parece um

leão; o segundo parece um touro; o terceiro tem rosto de

homem; o quarto parece uma águia em pleno vôo. Cada um dos

quatro Seres Vivos tem seis asas e são cheios de olhos, ao redor

e por dentro. Dia e noite, sem parar, eles proclamam: “Santo!

Santo! Santo! Senhor Deus Todo-poderoso! Aquele-que-é, que-

era e que-vem!”. Os Seres Vivos dão glória, honra e ação de

graças ao que está sentado no trono e que vive para sempre. E

a cada vez que os Seres Vivos fazem isso, os vinte e quatro

Anciãos se ajoelham diante daquele que está sentado no trono,

para adorar aquele que vive para sempre. Cada Ancião tira a

coroa da cabeça e a coloca diante do trono de Deus. E todos

eles proclamam: “Senhor, nosso Deus, tu és digno de receber a

glória, a honra e o poder. Porque tu criaste todas as coisas. Pela

tua vontade elas começaram a existir e foram criadas”

(Ap 4, 1-11).

Convidado a subir, o vidente (identificado provavelmente com João evangelista) é agraciado com uma visão da corte celeste onde, com glórias, louvores e adorações, o céu rende graças a Deus. É a grande liturgia celeste, eterna, sem começo, meio ou fim. A visão tem uma característica pedagógica a respeito de como é o céu. O vidente é chamado a ver e a transmitir à sua posteridade. A visão é uma lição, como que uma permanente reconstrução da consciência comunitária, e pode ser estudada em três movimentos:

• ver e orar;

• louvar;

• transformar, segundo Deus, as realidades humanas.

Nessa liturgia há dois elementos fundamentais: a porta aberta no céu e o trono de Deus. O convite para subir e visitar, “vem, eu mostrarei...” significa colocar o humano por dentro do mistério de Deus, com fins místicos e pedagógicos, com vistas à conversão e à salvação. Trata-se de um arrebatamento, onde a força de Deus conduz o homem ao céu.

O trono de Deus, capaz de governar e julgar com justiça é o ponto central da celebração que ali ocorre. A doxologia (ato de glorificação) que começa com o “Santo, Santo, Santo” (4, 8-11) se funde e repete o coro angelical de Is 6, 3 e começa a revelar o mistério de Deus. Dentro dessa liturgia celeste, os anciãos ajoelham-se aos pés de Deus e depositam as coroas que traziam em suas cabeças, aos pés deste.

Há nessa liturgia a menção de um “canto novo” (5, 9-12), prenúncio das coisas novas que o Senhor vai fazer (cf. Sl 98, 1s), um novo céu e uma nova terra (cf. Is 65, 17; Ap 21, 1-5). O júbilo ecoa por todo o universo porque as coisas antigas vão desaparecer, e todo o mal será desfeito e esquecido. É isto que o céu celebra. Há várias menções desse júbilo litúrgico, que pervaga todo o livro do Apocalipse (cf. 4, 8. 11; 5, 9s; 12, 10ss). Tudo culmina com a epiclese (vem Senhor!) final (22, 17-20).

No capítulo 22 encontramos o “rio de água viva”, brilhante como cristal, que brotava do trono de Deus e do Cordeiro. Por “água viva”, a mesma prometida à mulher samaritana (cf. Jo 4, 10), entende-se a graça de Deus, o poder curador, refrescante que brota dos dons divinos. O sacramento do Batismo é tipo bíblico dessa água.

Dos textos acima podemos depreender a existência de uma ligação entre a liturgia que os anjos fazem no céu e aquela que realizamos em nossas Igrejas. É por esta razão que os liturgistas são rigorosos em suas exigências de adoração, louvor, glória e espiritualidade de nossos atos solenes.

Temos que revesti-los com a mesma importância e dignidade que os anjos do céu dedicam à liturgia celeste. Aqui, a Igreja peregrina participa, através das celebrações terrenas, da liturgia que ocorre no céu, na Jerusalém Celeste, onde Cristo está sentado à direita de Deus, como ministro do santuário verdadeiro (cf. Ap 21, 2; Cl 3, 1; Hb 8, 2).

Com todos os anjos vamos entoar um hino de glória ao Senhor e, honrando a memória dos santos, desejar, um dia, participar com eles do banquete na casa do Pai, numa liturgia que nunca terá fim. Por fim, enquanto celebramos aqui nossas liturgias, suspiramos por Jesus, nosso Salvador, até que ele se manifeste, e nós possamos segui-lo no caminho da glória.

A liturgia que celebramos na terra, ainda de forma imperfeita, faz alusão àquela eterna, realizada no céu, desde todo o sempre. Pelo que se viu até agora, adquirimos a certeza de que a liturgia narra, através de ritos, símbolos e sinais o mistério salvífico de Cristo, assim na terra como no céu.

Por onde se anda, paróquias, comunidades, seminários, institutos religiosos, congregações, há um clamor geral no sentido de uma formação litúrgica adequada e atualizada. A formação litúrgica engloba (ou deveria englobar) todas as dimensões da pessoa humana (sociopolítica, sociológica, psicológica, histórica, etc.), assim como fé, oração, inserção comunitária, aporte teológico, etc. A liturgia não pode estar aberta a improvisações.

Desta forma, a formação litúrgica precisa ser mais vivencial e artesanal do que didática ou docente, como ocorre. Assim, a liturgia não pode ser vista como um processo didático, tipo aluno/professor, mas um desafio, onde se distingue aquela experiência celebrativa, que brota da vida comunitária, das práticas pastorais e da qualificação, sempre atualizada, dos agentes.

A liturgia deve passar aos fiéis uma idéia de céu, de Reino de Deus acontecendo aqui, no meio de nós, coisa que nem sempre se nota. Perdoem-me os diretores, mas a formação litúrgica de alguns seminários da América Latina é deficiente, limitada em tempo e espaço, e como tal, ineficaz.

Essa deficiência nesse processo cognitivo, se observa, não é uma característica só dos institutos de formação, faculdades teológicas e seminários. O processo de aquisição intelectual das pessoas ou dos grupos reflete o zeitgeist de cada tempo. A figura do formador, a extensão dos conteúdos, a pouca ênfase à praticidade, a noção do serviço e as concepções hodiernas sobre religião, muito têm influído na formação, seja universitária, seja religiosa.

No contexto teológico, liturgia é a ação comunitária por excelência, e é vista como a escola e a expressão da mais alta comunhão, tornando-se, deste modo, sinal e instrumento da graça divina, que se desenvolve na celebração da Palavra, da Eucaristia e dos demais sacramentos.

Deste modo é preciso enxergar a espiritualidade como a forma de vivermos nossa vida cristã. Cada pessoa, de acordo com seu estado, possui uma forma própria de viver sua espiritualidade, ou seja, de relacionar-se com Deus. A liturgia possui uma história, uma dinâmica (que veremos amanhã) assim como um fundamento, uma razão de ser, eminentemente espiritual. É sobre isto que vamos tratar neste capítulo. Para tanto, começamos pela conceituação da palavra liturgia.

Etimologicamente, a palavra liturgia vem de leitourguia, que se refere primeiramente a função ou serviço. Na antiga Grécia referia-se ao “serviço público”. A partir do cristianismo primitivo, passou a englobar o culto divino. Na verdade, o vocábulo leitourguia deriva do verbo leitourghéin, que decomposto nos leva ao verbete ático leós (do laós, jônico), povo. A isso se soma a expressão ergon (obra ou trabalho).

Deste modo, liturgia indica um serviço prestado ao povo. A liturgia, como se verá no decorrer deste trabalho, possui uma parte imutável (instituição divina) à qual se agregam partes suscetíveis de transformação (atividade humana). Essas modificações podem e devem acontecer.

A liturgia é prioritariamente um culto a Deus. Desde o judaísmo, se estabelece esse tipo de culto, com base numa tradição histórica. O cristianismo instaura outro tipo de celebração, não mais ligada exclusivamente a uma libertação política (do Egito), mas a obra de salvação que Jesus comprou para nós, ao preço de seu sangue. O culto de Moisés é tradicional; o cristão é parenético e salvífico.

Para uma visão mais ampla dos presentes, vou relacionar aqui alguns conceitos fundamentais, para que até o final do curso, unindo idéias e juízos, vocês possam efetuar sua própria definição: “A liturgia é uma celebração que pertence indistintamente a todo corpo da Igreja” (SC 28 – Vaticano II) ou “é ação sagrada por excelência” (SC 7)

A liturgia é também definida como “culto santificante da Igreja”. É a oração oficial da Igreja, isto é, o conjunto de celebrações estabelecidas por ela para o culto comunitário. Seu centro e ápice estão na celebração da Eucaristia. Liturgia são os sacramentos, a liturgia das horas, as bênçãos etc. É celebrar, festejar, co-memorar.

Celebrar, sabemos, é comemorar; é tornar célebre. Quem age deste modo, está buscando ressaltar o significado e o valor de determinados acontecimentos. A imaginação e a criatividade das pessoas devem aproveitar certos fatos da vida humana (nascimentos, aniversários, datas temáticas, formaturas, conquistas individuais, e até vitórias esportivas), para celebrar. No campo da liturgia, a criatividade não visa um novo rito, mas fazer de uma forma nova, coisas antigas, com sadia criatividade, alegria, inculturação e sobretudo iniciativa.

Na liturgia dos sacramentos há uma ponderável riqueza teológica. Os sete sacramentos estão contidos dentro das realidades mistagógicas da Igreja. Se é verdade que o verbete sacramento vem do sacramentum latino, também é verdade que sua idéia deriva do misthérion grego.

Cada sacramento tem seu contexto impregnado de mistério, na composição teológica e litúrgica. No aspecto teológico vemos a ação da graça de Deus agindo naquele que busca o mistério sacramental. Do ponto de vista da liturgia, vemos o rito sacramental, que aponta materialmente para uma realidade sobrenatural.

Sacramento, de acordo com os conceitos mais modernos e estáveis, é um conjunto de sinais visíveis, instituídos por Cristo, confiados à Igreja, que significam e conferem graça. Nesse particular, sacramento é sinal da graça de Deus. Os sacramentos dão “pistas”, sinais de Deus, onde o homem pode refugiar-se do mal, organizando sua vida. Sacramento é o significado de um significante maior.

No aspecto antropológico, vemos que cada sacramento, ligado a um evento da vida humana, ressalta a importância que Deus dá à existência terrena dos homens, criando sinais de amor para suas diversas etapas. Sob esse aspecto, a Igreja contempla, no centro da vida humana, sete eventos marcantes, que a teologia chama de “sete situações de salvação”, em que o projeto de Deus insere-se nas características antropológicas de nossa vida, onde a mediação sacramental enriquece cada fase da vida humana.

Sobre isto voltaremos ainda a falar. Para ressaltar a dimensão participativa da liturgia, é sempre interessante ter em mente que o povo é sujeito (quem faz) e ao mesmo tempo objeto (é feita para ele) de todo o processo litúrgico e, como tal, tem direitos e deveres.

Nunca é demais observar que, para a liturgia convergem todas as atividades da Igreja. É a partir da prática litúrgica que o povo cristão assume seu compromisso na construção aqui-agora do Reino de Deus. Por isto a importância da participação. Participar significa entregar-se, transcender e ultrapassar quaisquer limites superficiais.

A inserção nos mistérios, pela fé, deve corresponder ao exercício da práxis, da parte externa, como cantar, aclamar, ajoelhar, erguer as mãos, etc. Pela parte interna, o fiel é induzido a celebrar e interiorizar a mensagem. A parte externa vai levá-lo a compreender o simbolismo, a rever, mudar, converter-se.

Pela liturgia, organizada, bem feita, participativa, fazemos com que o povo se aproxime do Infinito, compreendendo o mistério da graça (às vezes ignorado ou visto de forma superficial) do Deus que vem ao encontro de seu povo. Na liturgia cria-se no coração daquele que crê um espaço reflexivo, de oração, meditação, enriquecimento da doutrina ensinada, prática comunitária e comunicação, horizontal e vertical.

Esse espaço de reflexão e nidação dos projetos místicos, atua como um contraponto aos erros e problemas do mundo, que geralmente ocorrem, e que prejudicam a interiorização, a prática religiosa e a própria conversão. Como falar de um Deus-amor num mundo que cultiva o ódio? Pela liturgia é possível fazê-lo.

Celebrar a liturgia é adentrar, às vezes sem pressentir, nos mais profundos meandros da teologia cristã. Trata-se de uma contemplação do Absoluto em sua mais pura revelação. É essencialmente teológico o movimento de aproximação dos crentes com o Absoluto, realizado pela liturgia, através de seus atos. Nesse aspecto, ela organiza a vida do povo fiel, centrando-a na grandeza do Deus Uno e Trino.

Existem, infelizmente, ainda hoje, celebrações litúrgicas, autênticas missas-show, que alegram, distraem, o povo se diverte, atraem a mídia, mas não se comprometem com a transformação individual, dos outros e do mundo, pois ficam a dever naquilo que é essência, que é a espiritualidade. Sem o compromisso de conversão e transformação a liturgia é um mero ato mágico, e como tal, alienante.

Nunca é demais relembrar que no céu, desde todo o sempre, é celebrada um liturgia em honra ao Deus Uno e Trino. Essa lembrança deve ser o motor capaz de organizar nossas celebrações. Assim como os anjos e os santos estão sempre ao redor do trono de Deus, louvando-o, adorando-o e servindo-o, do mesmo modo deve funcionar a liturgia da Igreja aqui na terra.

Dentro desse prisma, é preciso que se descubra o valor catequético da liturgia. Uma liturgia bem celebrada, com alegria, criatividade e interiorização, explorando toda a espiritualidade do ato, trabalhando com o mistério, aplicando o simbolismo do rito à prática da vida, é um pedaço do céu aqui na terra, capaz de servir de instrumento para a conversão de muitos.

Um trabalho litúrgico assim desenvolvido equivale a uma vigorosa catequese, capaz de revelar Deus à assembléia. Uma liturgia desse jeito evangeliza. Ora, se descobrimos que no céu acontece uma liturgia, a questão para interiorizar é “nossas liturgias se assemelham a ela? Apontam para o céu?”.

Por seu dinamismo, a liturgia sempre está a requerer uma revisão de rota, uma atualização, uma busca de fazer de novo. Assim como nós precisamos sempre de uma retomada nos caminhos da fé, igualmente nossas liturgias, carecem de revisões profundas e freqüentes. Francisco, o pobrezinho de Assis, um dos maiores santos da Igreja, na hora de sua morte, disse aos companheiros que o seguiam:

“Irmãos, vamos começar de novo; até agora pouco ou

nada fizemos!”.

Meditação levada a efeito no “Seminário Nacional de Liturgia”, realizado em Florianópolis, em 2007, e no curso realizado na Paróquia N.S. da Purificação, em Bom Princípio (RS) em novembro 2006.

Galvão é autor do livro “Liturgia. História, Espiritualidade e Prática”. Ed. Pallotti, 2007.