A César o que é de César*

Terminada a Revolução Cubana, em 1959, os governantes cubanos fizeram inserir na Constituição daquele país uma definição de Estado aparentemente harmônica com os princípios comunistas: Cuba, a partir de então, seria um Estado ateu.

O que os revolucionários cubanos não notaram é que estávamos em pleno século XX, período da história ao qual revoluções anteriores não autorizavam esse entendimento sobre o Estado. Para isso contribuíram a revolução religiosa, de Martinho Lutero, iniciada na Alemanha em 1517; a revolução industrial, esta de cunho econômico, à altura dos anos 1770; a revolução francesa, de 1789, na esfera política; e, por fim, a Revolução Copernicana, epistemológica, no âmbito dos saberes, na Alemanha, ao longo do movimento iluminista, e que teve no filósofo Immanuel Kant um de seus destacados representantes.

Todas essas transformações garantiam que, dentre outras coisas, o Estado já não deveria mais ser concebido sob a marca da religião. Ao contrário, suas características seriam as da laicidade, pluralidade e democracia, exatamente para, atendendo aos ditames da razão, respeitar os direitos elementares da cidadania, entre eles os da igualdade e os da liberdade.

Quando religiosos brasileiros tomaram conhecimento do absurdo que a

Constituição cubana trazia ao afirmar Cuba como um Estado ateu, fizeram chegar a Fidel Castro a informação de que a Idade Média havia ficado para trás, e que definir Cuba como Estado ateu seria dar-lhe uma marca religiosa, coisa que há muito a história tinha negado a essa instituição-mor que nos controla e disciplina por meio do monopólio da violência e das técnicas de convencimento

ideológico.

Até onde estou informado, Fidel Castro reconheceu a gafe e alterou a

Constituição cubana. Sem dúvida, um gesto de humildade do todo-poderoso da Ilha. Essa humildade, parece-me, anda faltando a certos seguimentos religiosos que pontificam em nossa sociedade.

Ao contrário de Fidel Castro, esses religiosos, embasados no poder da fé,

jamais desistem de querer controlar tudo, disciplinar todos e perpetrar a força simbólica da fé contra aqueles que se lhes opõem opiniões, inclusive se valendo do aparato estatal. Ao contrário, o que eles querem é convencer o céu e o inferno de que a verdade dogmática que impunham tem suficiente legitimidade para dar os contornos existenciais à nossa vida.

Uma pena. Seria tão bom se esses religiosos compreendessem que religião pertence ao âmbito privado da vida e que nenhum de seus instrumentos devem ser mobilizados para tentar moldar a sociedade civil, que deve ser aberta e plural.

A dimensão pública da vida em sociedade, predominantemente gerida pelo Estado, laico sempre, deve ser democrático para respeitar nossas diferenças de modo racional. No espaço público, senhores, quem deve pontificar é a nossa liberdade. Como o próprio Cristo um dia ensinou, “A César o que é de César”; a nós, nossos direitos de cidadania.

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*Artogo publicado no Diário da Manhã, dia 19/03/2009, p. 20.