No mundo encantado dos corpos
Lúcio Alves de Barros*
Não deve causar espanto a procura desesperada que hoje assistimos em relação ao corpo perfeito. Penso que a discussão chega a ser ridícula, mas é incontestável que boa parte das pessoas tem o sonho, o desejo e tentam de tudo para frear o tempo e, por extensão, a finitude da estrutura corporal.
É claro que esta empreitada não passa de um grande engano, afinal duas coisas são inexoráveis: (1) caminhamos para morte e (2) nosso corpo jamais será como de outrora. Como qualquer ser vivo, nascemos, amadurecemos, damos frutos e morremos. Este é o grande espetáculo da vida. Este é o grande segredo de Deus, caso realmente Ele exista. É impossível chegar a 120, 130 ou mais anos. E vamos supor que esta obra de arte poderia ser feita. Viveríamos entre monstros, com cabelos fracos e caídos, peles secas, olhos ofuscados e órgãos a desejar. Não, nosso corpo foi programado para um determinado tempo, nossa cadeia evolutiva nos legou algo entre 70 e 80 anos. Alguns chegam a 90 e poucos ou mesmo a 100, o que já é muito bom. Alcançar a serenidade na envelhescência gozando de lucidez e boa saúde é o que realmente interessa.
Obviamente, não é o que acontece, o culto ao corpo, a corpolatria que vigora - principalmente entre as mulheres - é no mínimo alienante. Homens e mulheres, que carregam a duras penas os seus 40, 50 ou mesmo 60 anos, andam puxando tudo, tudo mesmo. E nesse puxa prá cá e para lá acreditam visceralmente que podem estar um pouco mais novos, com uma pele melhor, mais corada, uma "bundinha" mais lisa ou um sorriso e uma boca “melhor trabalhada”. É o fim do bom senso. Na luta pela eterna juventude, até porque não existe o desejo de voltar a ser criança, tudo indica que os humanos querem permanecer jovens e, para isso, vale tudo: de botox a cocô de galinha pelo rosto à fora o importante é aparecer “estar bonito”, nem que por dentro continue tal como o lugar que as galinhas dormem.
A busca da inexistente perfeição pode até ser compreensível para aqueles que fazem da estética o seu ganho pão. O mesmo para aqueles que por má sorte nasceram com deficiência. Mas creio que existe um claro exagero na onda de ajeitamento do corpo. Nessa procura frenética, alguns corpos estão ficando na mesa dos hospitais, outros tem aparecido com um nariz meio torto, boca encurvada, sobrancelha exaltada e perfil de máscara. Muitos chegam a repetir a dose por vezes, pois sempre acham o que tirar, haja vista a existência da lei da gravidade. Mas o fato é que não somos perfeitos e não nos cumpre fazer o tempo parar. O que está latente, na sociedade do consumo do próprio corpo, é uma aparência falsa, mercantilizada, “de massa”, injusta, pois é forjada e todos sabem como a "coitada" ou o “coitado” foram puxados. Mais que isso, é notório que tanto homens como as mulheres perderam a referência do próprio corpo, apesar de acreditarem morar dentro dele. Explico-me melhor, é duvidoso que o indivíduo não entre numa forte espiral de autoengano e pense que está em uma época e em uma fase que não é a dele. Homens e mulheres, neste sentido, perdem a referência, a historicidade corporal, a noção do espaço, a experiência adquirida e, inconsciente, ou conscientemente operam em uma frequência que não é a deles. Deve ser justamente por isso que aumentam os encontros de casais de gerações diferentes e de valores controversos. A perda da própria história de vida deve ser uma experiência angustiante diante do espelho, mesmo que demore um pouco para cair o resto que foi levantado.
A questão é que na sociedade do consumo, o famigerado consumidor não se contenta somente em ter, ele deseja aparecer. E aparecer significa “estar bem”, “mostrar-se o tempo todo”, “saber fazer o marketing pessoal”, “ficar em evidência”, em uma vergonhosa e histriônica rede de relações sociais. O corpo torna-se uma mercadoria e, como tal, deve ser vendida. Vender melhor a estrutura corporal é estar apto a entrar de nova cara na cultura da estética midiatizada e “em massa”, por isso é crucial “trabalhar o produto”, seja ele o rosto, as pernas, os braços, uma barriga, ou uma... não interessa, o mundo da corpolatria é o da esfera do poder da barganha e da mercadoria recauchutada: é o mundo das relações do “semi-novo”, “pouco usado”, “do novinho”, que "rodou muito, mas ainda está bem", “que agora está durinho”, “tem quarenta, mas cara de dezoito” e hipocritamente, “ficou mais jovem 20 anos”.
Vamos ser claros esse conflito entre o “velho” e o “novo” pode ser complexo e delicado, mas é por demais desnecessário. O leitor pode argumentar sobre o direito do ser humano sobre o próprio corpo, inclusive, o de fazer o que bem entender com ele. A discussão é tão interessante que sempre existe aquele ou aquele quem diz “claro que aquilo é dela (e), foi ela (e) quem pagou”. Risível para não dizer outra coisa, porque é difícil (ou fácil, depois da plástica) não abrir os olhos para o exacerbado culto ao corpo, o qual, por natureza merece ser envelhecido, maturado e encantado pelo sabor da poesia, do respeito, da dignidade e da experiência. Infelizmente, estamos perdendo as referências daqueles que caminharam no tempo e no espaço, do exemplo a ser seguido e do mundo tal como ele nos apresenta em rugas, vozes rocas, passos lentos, cicatrizes, hematomas, olheiras, cabelos brancos, raízes tortas e pele com mancha e seca. Optamos pelo autoengano e já não causa surpresa quando vemos a criança chamando a avó de mãe e a mãe de irmã, mesmo sabendo que trata-se uma grande mentira.
* é professor, mestre em sociologia e doutor em ciências humanas pela UFMG.