UM FATO E UMA FOTO HISTÓRICA
O dia 28 de março de 1968 ficou marcado para sempre por um assassinato ocorrido no Rio de Janeiro que comoveu a opinião pública e que acabou dando início à revolta que tomaria conta de todo o País. Na época o Rio já fervilhava devido às manifestações estudantis que havia se iniciado ainda em 1967.
E para esse dia estava prevista mais uma passeata estudantil, a ser realizada no centro da cidade, que seria uma manifestação contra as péssimas condições da alimentação oferecida aos universitários.
A preparação para a passeata estava sendo feita no mal arejado, mal cuidado e escuro restaurante estudantil que, por isso mesmo, os estudantes apelidaram de Calabouço.
Sem mais nem menos a Polícia Militar invadiu o local, agindo com uma violência fora de propósito, culminando com um estudante morto a tiros. Seu nome: Edson Luís Lima e Souto, de 17 anos. Dizem que ele “apenas” estava lá, e que não tinha nenhum engajamento político com o que acontecia no País.
Para evitar que a polícia sequestrasse o corpo, seus colegas o levaram para a Santa Casa de Misericórdia, ao lado do Calabouço e, após a confirmação da morte, foram com o cadáver nos braços até a Assembléia, empurrando os policiais pelo caminho.
No livro de Zuenir Ventura, “1968 – O ano que não terminou”, consta o seguinte relato de Elinor Brito, presidente da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço – FUEC:
“Eles queriam tomar o corpo da gente e impedir a entrada na Assembléia. A gente disse: Tá morto, a gente bate com a cabeça do Edson na barriga dos policiais e eles vão recuando”. E eles foram dando para trás.
Durante aquela semana até a missa de sétimo dia realizada no dia 4 de abril, na Igreja da Candelária no centro do Rio, muita coisa aconteceu. Revolta e agressão popular aos policiais é o mínimo que se pode dizer e, de vez em quando, voavam pedras e outros objetos das janelas dos prédios da Avenida Presidente Vargas (com todas as luzes apagadas) sobre os policiais.
No dia 4 de abril o Rio se transformou, mais uma vez, em verdadeira praça de guerra, que foi a forma como os jornais retrataram a situação. Os seguidos voos rasantes de aviões militares em céu nublado, somados à atuação agressiva dos policiais e agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), criaram um total clima de tensão e medo no centro da cidade. Até um helicóptero do Para-Sar, unidade de paraquedistas dedicada a salvamentos, fez sua aparição sobre o conflito.
O celebrante da missa era o vigário geral do Rio de Janeiro, D. José de Castro Pinto, que contaria com o auxílio de quinze concelebrantes. D. José era uma figura carismática e enigmática, capaz de despertar amor e ódio ao mesmo tempo, principalmente entre os estudantes que desconfiavam de seus esforços em favor do diálogo, alegando que ele fazia o jogo das autoridades. E as autoridades invertiam o argumento dizendo que ele fazia o jogo dos estudantes. Com tudo a favor e tudo contra, D. José acabou se transformando em um dos grandes artífices do ano de 1968 e uma figura que será lembrada para sempre.
Os sinos da Candelária começaram a tocar às 17h:32, dando início à entrada das pessoas. Às 18 horas a igreja já estava lotada. Do lado de fora, aviões da FAB sobrevoavam o local. Até que às 18h:14 o celebrante abriu a missa com a Epístola dos Romanos, de São Paulo, lida do púlpito por um estudante.
No período da manhã já havia sido realizada outra missa de sétimo dia em homenagem a Edson Luís, na mesma igreja da Candelária. E não tinha acabado bem, com a ocorrência de cenas indescritíveis de violência dos cavalarianos contra os estudantes e populares.
Escolados com essa ocorrência da manhã, os padres mandaram um anúncio a todos os presentes. Um jovem padre, conhecido como Guy, deu a ordem:
— Ninguém sai. Deixem que os padres saiam na frente. Vamos todos sair em ordem: primeiro, os padres; em seguida, os que estão de pé; depois, os que estiverem sentados.
Ao chegarem à porta, todos os sacerdotes se deram as mãos, formando duas correntes, no meio das quais iam os estudantes e demais populares.
É essa a foto que publico, junto com este texto, como uma singela homenagem a estes dezesseis sacerdotes que tiveram uma das atitudes mais dignas e corajosas de toda a época do maldito “regime ditatorial”, principalmente durante o “mandato” de Costa e Silva, responsável pela edição do Ato Institucional Número 5, o famigerado AI-5, implantado na noite de 13 de dezembro de 1968 e que iria perdurar até 31 de dezembro de 1978.
Proteção dada aos estudantes pelos padres à saída da Igreja da Candelária, após a missa noturna de sétimo dia em homenagem a Edson Luís Lima e Souto.
E mesmo com essa proteção bíblica, o massacre ocorrido na missa da manhã quase se repetiu, se não fosse pelo bom senso de um major, que evitou um ataque desmedido contra os estudantes e os populares ali presentes. O oficial da manhã havia sido substituído pelo major Rebouças, este, mais bem preparado para a missão do que seu antecessor. Entretanto, chegou a haver a ameaçadora ordem de “desembainhar”, além dos gritos de “aqui ninguém passa, recuem”. Ouvindo isso, os padres, com os braços levantados, disseram quase ao mesmo tempo: “Em nome de Deus, calma! Isto não é passeata!”.
Vendo e sentindo a reação pacífica dos padres naquela noite, major Rebouças só conseguiu dizer uma pequena e importantíssima frase a seus comandados: “A ordem é dispersar! Vamos dispersar!”.
Foi um alívio geral, pois isso era o que os padres mais queriam naquele momento, permitindo, assim, que seus fiéis pudessem se dirigir incólumes para suas casas. E todos assim o fizeram, mas pelas calçadas, e não pelo meio da rua, que foi a única condição imposta pelos militares. Durante todo o tempo os padres comandaram a retirada, até a passagem da última pessoa das que assistiram à missa, dizendo a todo instante para o rebanho amedrontado: “Devagar, em silêncio, pela calçada!”.
Foi como disseram alguns políticos e intelectuais da época, que assistiram emocionados à toda aquela situação extremamente tensa: “Inesquecível, padres!”.
À medida que iam chegando à Cinelândia, aqueles que haviam sido salvos pelos padres, foram atacados por outros cavalarianos que não estavam sob o comando do major Rebouças. Só não houve um massacre como o da manhã, pois à noite as rotas de fuga favorecem aos inocentes e aos mais fracos, pelo menos em determinados momentos da vida.
Mas isso já seria uma outra história, entre tantas que teríamos a contar e relembrar, de uma época em que a barbárie era marca registrada neste país chamado Brasil.
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Fontes de Consulta
• 1968 – O ano que não terminou – Zuenir Ventura – Editora Planeta do Brasil
• 1968 – Do sonho ao pesadelo – José Alfredo Vidigal Pontes e Maria Lúcia Carneiro - Projeto: “Agência Estado”, “O Estado de S. Paulo” e “Jornal da Tarde”
• Foto – O Estado de S. Paulo
• Documentos constantes do acervo do autor do texto
O dia 28 de março de 1968 ficou marcado para sempre por um assassinato ocorrido no Rio de Janeiro que comoveu a opinião pública e que acabou dando início à revolta que tomaria conta de todo o País. Na época o Rio já fervilhava devido às manifestações estudantis que havia se iniciado ainda em 1967.
E para esse dia estava prevista mais uma passeata estudantil, a ser realizada no centro da cidade, que seria uma manifestação contra as péssimas condições da alimentação oferecida aos universitários.
A preparação para a passeata estava sendo feita no mal arejado, mal cuidado e escuro restaurante estudantil que, por isso mesmo, os estudantes apelidaram de Calabouço.
Sem mais nem menos a Polícia Militar invadiu o local, agindo com uma violência fora de propósito, culminando com um estudante morto a tiros. Seu nome: Edson Luís Lima e Souto, de 17 anos. Dizem que ele “apenas” estava lá, e que não tinha nenhum engajamento político com o que acontecia no País.
Para evitar que a polícia sequestrasse o corpo, seus colegas o levaram para a Santa Casa de Misericórdia, ao lado do Calabouço e, após a confirmação da morte, foram com o cadáver nos braços até a Assembléia, empurrando os policiais pelo caminho.
No livro de Zuenir Ventura, “1968 – O ano que não terminou”, consta o seguinte relato de Elinor Brito, presidente da Frente Unida dos Estudantes do Calabouço – FUEC:
“Eles queriam tomar o corpo da gente e impedir a entrada na Assembléia. A gente disse: Tá morto, a gente bate com a cabeça do Edson na barriga dos policiais e eles vão recuando”. E eles foram dando para trás.
Durante aquela semana até a missa de sétimo dia realizada no dia 4 de abril, na Igreja da Candelária no centro do Rio, muita coisa aconteceu. Revolta e agressão popular aos policiais é o mínimo que se pode dizer e, de vez em quando, voavam pedras e outros objetos das janelas dos prédios da Avenida Presidente Vargas (com todas as luzes apagadas) sobre os policiais.
No dia 4 de abril o Rio se transformou, mais uma vez, em verdadeira praça de guerra, que foi a forma como os jornais retrataram a situação. Os seguidos voos rasantes de aviões militares em céu nublado, somados à atuação agressiva dos policiais e agentes do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social), criaram um total clima de tensão e medo no centro da cidade. Até um helicóptero do Para-Sar, unidade de paraquedistas dedicada a salvamentos, fez sua aparição sobre o conflito.
O celebrante da missa era o vigário geral do Rio de Janeiro, D. José de Castro Pinto, que contaria com o auxílio de quinze concelebrantes. D. José era uma figura carismática e enigmática, capaz de despertar amor e ódio ao mesmo tempo, principalmente entre os estudantes que desconfiavam de seus esforços em favor do diálogo, alegando que ele fazia o jogo das autoridades. E as autoridades invertiam o argumento dizendo que ele fazia o jogo dos estudantes. Com tudo a favor e tudo contra, D. José acabou se transformando em um dos grandes artífices do ano de 1968 e uma figura que será lembrada para sempre.
Os sinos da Candelária começaram a tocar às 17h:32, dando início à entrada das pessoas. Às 18 horas a igreja já estava lotada. Do lado de fora, aviões da FAB sobrevoavam o local. Até que às 18h:14 o celebrante abriu a missa com a Epístola dos Romanos, de São Paulo, lida do púlpito por um estudante.
No período da manhã já havia sido realizada outra missa de sétimo dia em homenagem a Edson Luís, na mesma igreja da Candelária. E não tinha acabado bem, com a ocorrência de cenas indescritíveis de violência dos cavalarianos contra os estudantes e populares.
Escolados com essa ocorrência da manhã, os padres mandaram um anúncio a todos os presentes. Um jovem padre, conhecido como Guy, deu a ordem:
— Ninguém sai. Deixem que os padres saiam na frente. Vamos todos sair em ordem: primeiro, os padres; em seguida, os que estão de pé; depois, os que estiverem sentados.
Ao chegarem à porta, todos os sacerdotes se deram as mãos, formando duas correntes, no meio das quais iam os estudantes e demais populares.
É essa a foto que publico, junto com este texto, como uma singela homenagem a estes dezesseis sacerdotes que tiveram uma das atitudes mais dignas e corajosas de toda a época do maldito “regime ditatorial”, principalmente durante o “mandato” de Costa e Silva, responsável pela edição do Ato Institucional Número 5, o famigerado AI-5, implantado na noite de 13 de dezembro de 1968 e que iria perdurar até 31 de dezembro de 1978.
Proteção dada aos estudantes pelos padres à saída da Igreja da Candelária, após a missa noturna de sétimo dia em homenagem a Edson Luís Lima e Souto.
E mesmo com essa proteção bíblica, o massacre ocorrido na missa da manhã quase se repetiu, se não fosse pelo bom senso de um major, que evitou um ataque desmedido contra os estudantes e os populares ali presentes. O oficial da manhã havia sido substituído pelo major Rebouças, este, mais bem preparado para a missão do que seu antecessor. Entretanto, chegou a haver a ameaçadora ordem de “desembainhar”, além dos gritos de “aqui ninguém passa, recuem”. Ouvindo isso, os padres, com os braços levantados, disseram quase ao mesmo tempo: “Em nome de Deus, calma! Isto não é passeata!”.
Vendo e sentindo a reação pacífica dos padres naquela noite, major Rebouças só conseguiu dizer uma pequena e importantíssima frase a seus comandados: “A ordem é dispersar! Vamos dispersar!”.
Foi um alívio geral, pois isso era o que os padres mais queriam naquele momento, permitindo, assim, que seus fiéis pudessem se dirigir incólumes para suas casas. E todos assim o fizeram, mas pelas calçadas, e não pelo meio da rua, que foi a única condição imposta pelos militares. Durante todo o tempo os padres comandaram a retirada, até a passagem da última pessoa das que assistiram à missa, dizendo a todo instante para o rebanho amedrontado: “Devagar, em silêncio, pela calçada!”.
Foi como disseram alguns políticos e intelectuais da época, que assistiram emocionados à toda aquela situação extremamente tensa: “Inesquecível, padres!”.
À medida que iam chegando à Cinelândia, aqueles que haviam sido salvos pelos padres, foram atacados por outros cavalarianos que não estavam sob o comando do major Rebouças. Só não houve um massacre como o da manhã, pois à noite as rotas de fuga favorecem aos inocentes e aos mais fracos, pelo menos em determinados momentos da vida.
Mas isso já seria uma outra história, entre tantas que teríamos a contar e relembrar, de uma época em que a barbárie era marca registrada neste país chamado Brasil.
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Fontes de Consulta
• 1968 – O ano que não terminou – Zuenir Ventura – Editora Planeta do Brasil
• 1968 – Do sonho ao pesadelo – José Alfredo Vidigal Pontes e Maria Lúcia Carneiro - Projeto: “Agência Estado”, “O Estado de S. Paulo” e “Jornal da Tarde”
• Foto – O Estado de S. Paulo
• Documentos constantes do acervo do autor do texto