Educinematofomia do silêncio

Educinematofomia do silêncio

“O Cinema Novo é um projeto que se realiza na política da

fome, e sofre, por isto mesmo todas as fraquezas conseqüentes da sua existência”.

Glauber Rocha

Desde as pinturas em cavernas às diversas formas de expressão do homem contemporâneo, a liberdade artística tem sido um meio pelo qual o indivíduo tem se afirmado diante dos limites culturais impostos e até dos padrões de comunicação mais unânimes.

O homem, este trágico e incansável esteta, apropria-se da arte e abre passagens para suas vontades e desejos de expressão. Neste sentido, ele torna-se capaz de ampliar as percepções a cerca dos acontecimentos ao seu redor.

A arte recria as experiências humanas, sejam suas adaptações ou desequilíbrios. Neste sentido, a educação “se propõe à reflexão, por ser autêntica, sobre os homens em suas relações com o mundo. Relações entre consciência e mundo se dão simultaneamente”. (Freire, Paulo, 1987, p.70). Esses terrenos se encontram, muitas vezes, em vertentes limítrofes e cada vez mais expressivos, na medida em que convergem e opinam sobre disposições semelhantes.

Na medida em que a educação como prática da liberdade implica a necessidade do indivíduo presente, concreto e “sujeito”, a arte é a expressão das fomes humanas, bem como dos silêncios, por isso muitas vezes violenta e transgressora, ela se manifesta, excita e poetiza os temas, as discussões e os saberes das épocas. Reitera, portanto, o mundo como uma realidade presente dos homens.

Trazendo a potencialidade da arte para o contexto social e político, enveredamos pela pertinência com a qual o cinema novo reúne militância, poesia, engajamento, religiosidade, cultura e imagem de forma tão inovadora e simbólica. O cinema novo¹, no seu aspecto discursivo e poético, esmiuça os acontecimentos políticos e sociais de forma a enraizar e ratificar toda sua amplitude como expressão artística revolucionária, descrevendo e delineando uma sociedade colonizada em todo seu potencial criativo, original e histórico.

As produções do cinema novo atingem, por sua vez, o cenário político e social de toda a América Latina, em especial no Brasil, e abre-se para abordagens onde a sociedade capitalista e colonialista que se desenvolve nos pólos de influência sócio-econômica e cultural em meados do século XX aparece questionada. Os contextos, personagens e enredos narrados por filmes como “Terra em Transe, O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro ou Ganga Zumba e o também eterno “Vidas Secas” são filmes que possuem o cerne da criação artística enquanto diálogos políticos, sociais e revolucionários. Propõem discussões históricas sobre os processos civilizatórios e os questiona enquanto formadores de sociedades livres, pensantes e desenvolvidas intelectualmente dentro dos próprios processos de formação ideológica de cada cultura, de cada povo.

Os enredos e formatos das produções exploram, compreendem, poetizam e investigam a contribuição dos símbolos e mitos culturais, trazendo reflexões importantes sobre as estruturas de dominação intelectual e política da época.

Desta forma, o cinema novo forneceu um diálogo entre terceiro-mundo, culturas primitivas, Política, sociedade além de versar sobre a formação e auto-afirmação do intelectual terceiro-mundista, na tentativa de transformá-lo em independente, participativo e imerso na reflexão e na ação libertadora, pois se funda na ação do homem sobre sua realidade, buscando autenticar-se dentro da sua transformação criadora.

Dentro da roupagem ideológica deste cinema, “os processos de criação do mundo subdesenvolvido só interessam ao colonizador na medida em que satisfazem sua nostalgia do primitivismo, e este primitivismo se apresenta disfarçado sob tardias heranças do mundo civilizado, mal compreendidas porque impostas pelo condicionamento colonialista”. (Glauber Rocha, A Estétika da Fome).

Os filmes do cinema novo trazem para o cinema das décadas de 60 e 70 os temas da fome intelectual, da propriedade da terra, a valorização das raízes mitológicas das culturas locais, o misticismo, o sincretismo, o silêncio político e o determinismo social, a opressão, a mendicância cultural, etc. Temas que certamente passariam incólumes pelo cinema da época, atento à opulência, ao cômico e aos objetivos industriais. A desmistificação política, por exemplo, estampada nos filmes do cinema novo critica os interesses antinacionais e os mitos populistas, que em diversos filmes aparecem descortinados, rendidos pela sagacidade das lentes flagrantes e inflamadas dos diretores do cinema novo.

Colabora e concorda desta forma, com o fato de que “Nenhuma pedagogia realmente libertadora pode ficar distante dos oprimidos, quer dizer, pode fazer dos oprimidos seres desditados, objetos de um treinamento humanitarista, para tentar, através dos exemplos retirados dos opressores, modelos para sua “promoção”. Os oprimidos hão de ser modelos para si mesmos, na luta por sua redenção”. (Freire, Pedagogia do oprimido, pág 41, 1987).

A ação cultural proposta pelo cinema novo é justamente a de denunciar a vulnerabilidade e a inocência política, conscientizar o povo, revelar os mecanismos de exploração do trabalho a dependência e mendicância ideológica proposta por situações de dominação histórica e sociológica.

O cinema novo retrata as situações e os determinismos históricos utilizando os símbolos culturais relevantes para a auto-descoberta em potencial das identidades nacionais e políticas, relutando contra o silêncio intelectual das massas. Associado a isto, as análises e estudos produzidos pelos grandes pensadores da educação libertadora propõem que se “tem no homem o selo do ato cognoscente e desvelador da realidade na medida em que, a educação problematizadora servindo à libertação, se funda na criatividade e estimula a reflexão e a ação verdadeiras dos homens sobre a realidade”. (Freire, Pedagogia do Oprimido, pág 72).

Nesta perspectiva, ao trazer os fenômenos de subdesenvolvimento das sociedades em seus processos de libertação cultural e política, o cinema novo delineia e assume um forte e expressivo cenário capaz de desafiar as sociedades a atuarem sobre suas condições espaço-temporais e dar-lhes, diante das interpretações obtidas neste processo, a condição de sujeitos que geram e executam suas dinâmicas sociais, pois “é na luta comum por uma consciência da realidade e uma consciência de si que fazem desta procura o ponto de partida do processo de educação e da ação cultural de tipo libertador. (Freire, Conscientização, pág 33).

Os status de dependência e as imposições ideológicas da “invasão cultural” (Freire, pág 63) das quais o cinema novo se ocupa e pretende externar e compreender são retratados muitas vezes sobre a perspectiva do documentário, também associado às desconstruções e recriações estéticas, fossem a nível da poesia e ficção caricatural e contrastante. Os planos e a câmera refletem uma imagem-ação sem meios tons, dotada de uma extensividade e profundidade marcante.

A absorção da mentalidade do ser “invadido” e silenciado diante do processo alienante é o que permite à linguagem do cinema novo potencializar o caráter ambíguo, contraditório e compor assim, um universo de caricaturas, ao tratar todo o aspecto burlesco como trágico, carregando suas ações de sentido mítico, o que lhe garante uma essencialidade, mas nem por isso primitivo, como se pensa, e sim dotado da sua “lei”, da sua arte revolucionária, com o qual garante a sua força, os seus limites, seus espaços e se faz visto perante o outro. Assim, o seu potencial de identificação é reforçado à medida que há produção de sentido nesse aspecto.

O espectador, por sua vez, vivencia a “fome” trazida pelos personagens que “comem, engolem e lutam pela terra, mas não menos pela compreensão, libertação, aceitação, pelo ato de sujeito-ação. A relação entre violência e fome é oferecida como condição para a mudança, para a conquista da realidade de sujeito-ação. E ao mesmo tempo análoga à reflexão sobre tais mazelas.

Da mesma forma, os silêncios impostos pelas estruturas de poder e pelas relações de dependência que o impedem de ser “sujeito” das próprias ações são afirmados durante todo o tempo nas histórias e pelos personagens. Eles querem dizer: Eu sou sujeito do meio mundo, do meu lugar, do lugar de onde nasci. “Eu posso transformá-lo. Esse interlocutor possivelmente se coloca como sujeito e busca o aprendizado bem como uma maneira de educar-se nos contextos que ocupa.

1-Movimento cinematográfico brasileiro, influencidado pelo Neo-realismo italiano e pela Novelle Vague. francesa. Em plena década de 60 rompeu com a vinculação à ideologia vigente. Produção de cinema independente, sem preocupações com os acabamentos formais que caracterizavam a produção do tipo industrial.

MJ Minos
Enviado por MJ Minos em 09/03/2009
Código do texto: T1477234
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