INTIMIDADE, SENTIMENTO, INDIVIDUALIDADE
As relações inter-humanas guardam sempre, entre si, uma gradação de intimidade. Não é algo exato, talvez nem sempre mensurável, uma vez que os elementos da intimidade também carregam um caráter qualitativo. É fácil saber que tenho menos intimidade com alguém que apenas vi passar na rua, em relação a um amigo. Mas, se se fala deste em relação a outro amigo, se puder determinar quem é mais íntimo, apenas eu mesmo poderei fazê-lo – e eu não conscientemente contarei elementos, sua intensidade ou suas interações internas, mas farei isso sem perceber, automaticamente. Entretanto, posso simplesmente não saber a ordem de intensidade da intimidade, uma vez que esta não é só diferente em intensidade, mas também em tipo.
A intensidade e tipo de intimidade têm a ver com o caráter das relações humanas. Para cada relação humana, a intimidade é dinâmica, mudando inclusive, por esta razão, o caráter da relação sempre. Ou seja, minha relação com outra pessoa muda com a mudança da nossa intimidade. E a intimidade muda a todo momento, até nos quais não estou em contato com aquela pessoa – p.ex., a distância ou tempo podem fazer ir sumindo determinado tipo de intimidade. Essa alteração – ampliação, retração, interação, nascimento constantes – faz de cada relação humana única. De forma que, os “rótulos”, como colega, amigo, namorado, são uma visão errada das relações humanas, quando pretendem mostrar uma afinidade grande entre as relações de certo rótulo ou mostrar qualquer visão menos dinâmica que a mudança necessária e eterna.
Não é verdade, porém, que uma relação é tanto mais forte quanto mais a intimidade é superior. E isso é evidente quando nos atentamos às maneiras pelas quais se dão as relações que parecem inverter isso. Uma pessoa que conheço no local de trabalho é, de forma geral, inicialmente íntima e vai sendo cada vez mais íntima, caso depois nos consideremos namorados. Ao longo do tempo, vou conhecendo ainda mais aquela outra pessoa. Todavia, minha disposição em me aproximar dela pode ter sido estimulada justamente pelo desconhecimento – ou um pseudoconhecimento. A que chamo de fetiche, aqui. Podemos chamá-lo “pseudoconhecimento”, porque ele é uma idéia que eu tenho da outra pessoa no que diz respeito ao que ela me pode prover de felicidade.
É sempre bom reforçar a idéia de felicidade. Sou feliz quando me afirmo, quando me é suprida certa vontade ou necessidade. A felicidade também é sujeita a alterações, mas em função das maneiras, número, intensidade e interações entre os prazeres. De forma que sou feliz sim quando acredito, baseado no pseudoconhecimento de uma pessoa, que posso/devo protegê-la, servir-lhe, coisas que aparentemente me “tiram”, e não me “somam” nada. Acabei de descrever um fetiche; o fetiche carrega necessidades às quais a realização da relação humana me trará felicidade. Mas como, por que e até que ponto?
O fetiche se expressa em necessidades cujo suprimento é atribuído a certa pessoa ou objeto; e, pelo que disse, traz felicidade. É, além de biológico (inclusive psicológico), antes de tudo uma formação cultural. O que nos vem do mundo é o que nos forma o entendimento, os pensamentos, a consciência e a razão. Os sentimentos, entretanto, têm suas peças fundamentais já pré-dispostas biologicamente. A vivência só compõe em nosso pensamento essas peças e expressa a composição nas relações concretas. De tal sorte, que existem sentimentos diversos, mas formados pelas mãos das influências externas a trabalhar sobre as peças fundamentais – que especulo serem antagônicas: uma que afirma o ser, outra que o nega (Spinoza).
A vontade de comer, ao contrário da fome, é um sentimento moldado pelas influências internas. A fome é uma necessidade. Comer algo me dá um prazer tal que continuo a comer, ainda que me tenha saciado a fome, é agir em prol da minha existência, e, portanto, me traz felicidade. Qualquer alimento mata minha fome, mas não são todos que suprem a minha vontade. Disto, há uma dessemelhança entre prazeres e tristezas tal que, evidentemente, uma mulher triste não sorri só por ter comido um pastel. A tristeza que lhe abate pode superar a felicidade do prazer em degustar ou se alimentar. E nos humanos isso é normal, pois muito se afasta, por razão da cultura, de suas necessidades e vontades naturais.
A moldação cultural, quando falamos em fetiche, basicamente dita o que suprirá certa necessidade. E esta mesma necessidade, que geralmente está sobre uma necessidade natural básica, é muitas vezes também moldada. Então, voltando à situação já dita, a de eu querer servir e proteger certa pessoa: “servir” e “proteger” são tanto meios como necessidades. Tenho necessidade de servir. Tenho necessidade de proteger. Suprirei essas necessidades ao praticá-las. Se não conseguir objetivar essas necessidades, terei uma tristeza imensa se outro sentimento, situação ou a canalização daquela tristeza não me puder livrar. Mas, se conseguir praticar, serei feliz, durante certo tempo e sob certa forma.
O pseudoconhecimento, num andamento “convencional” de uma relação humana, vai desaparecendo, à medida que a intimidade amplia. Mas esse processo nunca chega ao seu fim, porque a pessoa que melhor alcança a intimidade de outra é esta própria. Eu sou quem mais me conhece. Aquele conhecimento primeiro, que dava motivo ao fetiche, tem tendência a desaparecer, portanto, ao longo do tempo. A idealização se vai em grande parte. De maneira que, não raro, a relação termina... Isso ocorre na medida em que desaparecem muitos dos grandes fetiches que a sustentavam, posto que a felicidade vinha deles mesmos.
O fetiche é uma “circunstância” que elege a felicidade como soma de certo elemento supridor com certa necessidade, ou essas coisas no plural. As necessidades humanas, moldadas culturalmente e na vivência, não deixam de existir, a não ser no sentido de que mudam tão paulatina e constantemente quanto como foram formadas. Por isso, quando descubro que a relação com aquela pessoa não me satisfaz mais, é como se tivesse claro de que aquele objeto (pessoa e prática em relação a ela, como servi-la) não é mais o que supre determinada necessidade (eis o fim do fetiche); e esta forma (superação/saturação de objeto), é mais comum do que a mudança das necessidades, no que diz respeito a cada relação.
As relações propriamente humanas se sustentam principalmente pelo fetiche. Ora, isso é óbvio, afinal o conhecimento que temos a respeito de outro ser humano é sempre um conhecimento incompleto, é sempre um pseudoconhecimento. A relação maternal não é humana por excelência, mas quase universal entre os animais; as variações das paixões amorosas, embora tenham fundamentos biológicos primordiais, são modeladas culturalmente e pelo mundo. É assim que um beijo significa muito para aquelas paixões, mas o prazer desse gesto pode ser perdido logo que deixe de inédito; o prazer de estar com alguém idealizado pode sumir logo que se percebe que ele também é apenas um ser humano.
Diante da moldação cultural e dialética a que se submete as relações humanas, se pudesse dizer “verdadeiro” como sinônimo de “natural”, diria que os objetos verdadeiros que suprem as necessidades verdadeiras são aqueles animalescos, propriamente biológicos – sexuais, alimentícios, de abrigo... Da vivência deles, seus sucessos e frustrações, há felicidade e tristeza, assim como existe nos animais. Todavia, não se deve, para o ser humano, pôr “natural” como sinônimo de “verdadeiro”. Donde que não se deve dizer “falsas” as relações propriamente humanas somente por razão de elas se sustentarem em fetiches; senão, dever-se-ia chamar por falsos toda a cultura, todo o entendimento humano, por fim, tudo que é humano.
Não é que tudo o que é humano seja feito de fetiche, mas que o fetiche traz em si uma construção cotidiana, construção dialética com o mundo que rodeia; e assim também, conforme disse, os sentimentos. Os sentimentos, os fetiches, os pensamentos são, então, particulares em cada ser humano; suas afinidades são decorrentes da aculturação ou da semelhança regional e de vivência. P.ex., o amor no Brasil é uniformizado na monogamia, mas isso a que se chama de amor aqui, nasce em cada pessoa e também fora dela. Ocorre que naturalmente cada um tem uma base sentimental biológica a que se soma o processo interno de recepção do meio e recepção cultural (dos outros). Assim, não há amor; há amores. Cada ser humano se faz diferente dessa maneira.