A VOZ HUMANA: NEOGÊNESE E TERAPIA

A VOZ HUMANA: NEOGÊNESE E TERAPIA

A voz humana é o que pode haver de mais intrínseco e arcaico do ser humano. pensemos nos primórdios do tempo, homens e mulheres, crianças e velhos reunidos ao redor do fogo, aquecidos não apenas pelo calor da fogueira, mas pela voz e presença humanas. As histórias narradas, deviam ser cantadas, ao modo de versos. A transmissão oral ao calor da presença de uns e outros, o corpo social dos pais transmitindo corpo social aos filhos. Sociedades de Ser.

Na primazia da sociedade de Ter, sinto falta de sociedades de Ser; essas são coletivas, e não feitas de indivíduos solitários. Na nostalgia do coletivo, saio para ouvir contadores de histórias, ou poetas cantando seus poemas. Ouvi-los aquece o coração, trata do sentimento de solidão, do isolamento no qual fico trancada quando me esqueço de Ser.

Invisível e material ao mesmo tempo, a voz não é a palavra.

A voz está na palavra modulando-a, ritmando-a e fazendo-a vibrar. O corpo daquele que oralmente expressa o saber adquirido na experiência (consigo mesmo, com o outro e com o mundo) vibra. E vibra o corpo de quem compartilha, escutando, recebendo.

Quando me sento em torno de “uma voz”, ou de um “conjunto de vozes”, ou seja, de uma pessoa, ou de pessoas que contam suas experiências, sinto meu corpo vibrar, ecoar e ressoar com os efeitos do(s) outro(s) em mim. Nessas experiências vivo momentos de me diferenciar, e outros de me identificar. Me separo e me uno: transcendo, vou além de mim.

No território mágico e singelo da voz humana, da narração, o ser e o fazer, o ser e o pensar, o ser e o desejar se correspondem. O afeto circula. Nesse território não há fronteiras rígidas entre a prosa e o verso, ou entre a palavra e a imagem. Sob a magia da voz as fronteiras se diluem, inclusive aquelas entre eu e o outro, entre eu e o mundo.

Nossa voz não foi feita para falar com as paredes, mas para falar com outros humanos. Para circular. Falamos com o outro.

No território da voz, da transmissão oral, há uma memória muito especial. Uma memória sempre em recuo, que se transmite de geração à geração, e sustenta a tradição oral ao longo de séculos. As cantigas de ninar e as de roda, os contos de encantamento são passados de geração para geração, ao calor do corpo e do leite maternos. Trata-se de uma memória sem fatos e sem datas. O surpreendente, porém, é que essa memória sempre em recuo, e permanece viva ao longo de gerações, é ao mesmo tempo, uma memória prospectiva, uma memória futura, um vir-a-ser. Pois, a memória sempre em recuo é novamente criada a cada nova geração. Mesmo pelas gerações que ainda não chegaram, que ainda são devir. Por exemplo, os netos de meus netos.

Crianças, adultos e velhos sentem essa memória ao mesmo tempo como algo estranhamente antigo, evocando vivências que trazem uma espécie de nostalgia sem a gente saber direito do quê, e junto, uma sensação de frescor e renovação.

O território da voz humana cria uma subjetividade que ao mesmo tempo se interioriza e aquece, e se exterioriza, no compartilhamento. É um território de intimidade, coletivo e compartilhado. A voz está sempre "entre", ou seja, nos intervalos. No intervalo entre pelo menos duas pessoas. A voz emana dos corpos, circula entre os corpos que estão presentes; a voz cria reverberações, ecos. A voz cria presença e trás consigo a consciência de presença. O território criado pela voz é o imaginário que compartilhamos com outros, imaginário transmitido através do contato afetivo, emocional e corporal.

Por isso, essa memória sem fatos e sem datas é como uma rã que salta sobre nós _ como disse Garcia Lorca em “Las nanas infantiles”.

Os acontecimentos veiculados pela voz são como pequenos animais vivos que saltam e nos fazem viver algo que vivemos no passado, e que pode se atualizar em certos momentos de nossas vidas. Mais que lembrança, é um viver outras vezes, de outros jeitos. Essa memória é como os perfumes, os cheiros, o gosto, o sabor de uma comida, ou a cor das frutas. Como um doce que se experimenta e faz doer as glândulas salivares das mandíbulas.

Essa memória já se encontra “aí”, quando nascemos. Mas, ao mesmo tempo, se ela não for criada junto comigo, não posso ser capturada por ela. É uma criação simultânea: a do ser humano, e de sua memória trans-geracional.

Muitas vezes é na terapia que o processo de inserção de alguém no território da voz é deflagrado. Embora o imaginário “esteja aí”, como repertório da língua, o imaginário é prospectivo, criado a cada nova geração.

O analista trabalha com as palavras, mas, no que diz respeito à memória, é com essa memória arcaica e prospectiva que ele trabalha no consultório. E ao trabalhar com ela, o analista sai necessariamente de sua individualidade, desmancha várias vezes, diariamente, sua individualidade para entrar em um território coletivo. Território que, por outro lado, precisa ser criado, ajudando o paciente a perceber que, também ele, mais que indivíduo, é processo.