O CRIME DA GUERRA

De acordo com a literatura apocalíptica, as quatro piores pragas da humanidade são: a guerra, a fome, a peste e a morte. Por isto, o maior esforço da civilização sempre foi superar os sofrimentos que acompanham estas pragas. Entre estas pragas, a mais terrível, certamente, é a guerra, pois ela sempre desencadeia, com maior intensidade, as outras três.

Ao final do século XX esperava-se, ansiosamente, que o século XXI fosse um século de paz, uma era de espiritualidade, de solidariedade, de tolerância. Confiava-se que a humanidade tivesse chegado a um nível de civilização em que resolvesse seus conflitos pelo diálogo, pela diplomacia, e não precisasse mais destroçar seus adversários com todo tipo de armas. Mas, o que vemos? Em menos de dez anos deste novo século, violências e guerras explodindo em diversas partes da terra. A humanidade praticando crimes contra a humanidade. Por que a humanidade não consegue resolver seus conflitos, usando o que o homem possui de mais característico: a razão e a palavra? Esta questão está envolta em um certo mistério. Filósofos, juristas, políticos, teólogos e intelectuais de toda ordem já emitiram suas opiniões. Talvez um dia consigamos construir uma civilização de paz. Neste sentido, é interessante um livro, escrito em l870 pelo filósofo e jurista argentino Juan Bautista Alberdi, sobre “O Crime da Guerra”. Se Alberdi tivesse sido europeu, provavelmente seu livro estaria entre os clássicos do Direito Internacional. Mas como era latino-americano, não teve o impacto merecido.

Alberdi, já no início de seu livro, condena o Direito Romano como culpado pelo que denomina de “direito da guerra”. Para Alberdi não existe “direito de guerra”, mas apenas “crime de guerra”, pois toda guerra autoriza homicídios, saques, incêndios, devastações no maior grau possível. Se não ocorressem tais fatos, a guerra não seria guerra. Tudo isto é crime pelas leis de todas as nações civilizadas do mundo. E a guerra legitima tudo isto, transformando tais ações em atos honestos e legais. Por isto, em realidade, a guerra é o direito ao crime, um contra-senso espantoso e sacrílego, um verdadeiro sarcasmo à civilização. Mas isto se explica pela história, pois o direito dos povos, assumido pelo ocidente, é romano, assim como nossa civilização é romana. E o “direito das gentes” romano se confunde com o direito de conquista, resquício do cesarismo. Por isto, as verdadeiras democracias não se enganam, quando manifestam uma aversão instintiva a este cesarismo. É a antipatia da razão contra o uso da força, como princípio da autoridade.

Todo o livro de Alberdi é contra qualquer classe de guerra. Não admite, como Hugo Grócio, a guerra justa. Para Alberdi, o conceito de guerra justa é um contra-senso selvagem. Seria o mesmo que dizer: crime justo, crime santo, crime legal. Não existe guerra justa, porque não existe guerra com juízo. A guerra é a perda temporária do juízo. É a alienação mental, uma espécie de loucura ou monomania. Na guerra os homens nada fazem que não seja loucura, nada que não seja mau, feio, indigno do homem bom. O homem em guerra não merece a estima do homem em paz. Guerra civilizada não passa de um barbarismo equivalente a barbárie civilizada. Por isto, os melhores soldados para qualquer guerra seriam os marginais, os bárbaros, pois é impossível admitir que uma guerra possa ter fins civilizados. Muito lamentável, para Alberdi, é o fato de povos cristãos se envolverem em guerras. Pois, para ele, a guerra é um crime para a moral cristã. O cristão é uma pessoa de paz, ou não é cristão. Pois, desde que Cristo disse: “apresentai a outra face a quem voz bofeteia”, a vitória mudou de natureza. Desde então, a glória não está mais do lado das armas, mas próxima aos mártires. E a paz já não resulta simplesmente dos tratados ou das leis internacionais, mas da disposição pacífica no interior de cada homem.

Alberdi está consciente de que não é simples abolir as guerras, por isto indica caminhos para reduzi-las. E um destes caminhos é retirar o poder de violência das mãos dos beligerantes, e entregá-lo à humanidade. É interessante este profetismo de Alberdi em 1870, pois ele propõe o que hoje se espera de qualquer declaração de guerra: que apenas possa ser autorizada pela ONU. O que justamente não aconteceu nesta guerra Estados Unidos/Inglaterra – Iraque, nem nas guerras de Israel contra o Hisbollah, contra o Hamas, e vice-versa. Se isto fosse respeitado, as guerras se purificariam de mil práticas, pois ninguém se aventuraria a voluntariosamente declarar guerra, pois seria considerado criminoso e responsável por qualquer injustiça que acontecesse durante o conflito. Para Alberdi, a única forma de diminuir as guerras é levar os “criminosos de guerra” aos tribunais internacionais. Pois, enquanto os principais atores dos crimes de guerra gozarem de impunidade, as guerras se repetirão. Concordando com Alberdi, esperamos que, depois das atuais guerras, os tribunais internacionais tenham coragem de julgar os responsáveis pelos crimes que se estão cometendo.

Inácio Strieder é professor de Filosofia na UFPE.