A esperança de um mundo novo
A ESPERANÇA DE UM MUNDO NOVO
Meus leitores conhecem minha posição crítica com relação ao judiciário brasileiro, tendente, sob minha ótica, a um certo elitismo e marasmo. Tan-to assim que adotei como minha uma sentença alheia que, referindo-se à justiça brasileira, afirma que “a justiça é como as cobras, só morde quem anda de pé no chão”.
Pois para contrariar muitos pessimistas, o artigo de um juiz do Espírito Santo, publicado no ano passado em um jornal de grande circulação nacional, é de causar emoção nas almas mais insensíveis, ao mesmo tempo que serve para mostrar que há muita gente que faz justiça, ainda que ao arrepio de uma lei às vezes caótica, engendrada por um Legislativo que de há muito perdeu toda a compostura e credibilidade.
Claro, que sempre vão aparecer os "boi-cornetas" capazes de dizer que é assim ou assado, que o magistrado deveria agir desse ou daquele jeito, e que o lugar de delinqüente é atrás da grades. Se fosse, não haveria grades que chegue... O artigo diz o seguinte:
“Indaga-me, jovem amigo, se as sentenças podem ter alma e paixão. O es-quema legal da sentença não proíbe que tenha alma, que nela pulsem vida e emoção, conforme o caso. Na minha própria vida de juiz senti muitas vezes que era preciso dar sangue e alma às sentenças. Como devolver, por exemplo, a liberdade a uma mulher grávida, presa porque trazia consigo algumas gramas de maconha, sem penetrar na sua sensibilidade, na sua condição de pessoa humana? Foi o que tentei fazer ao libertar Edna, uma pobre mulher que estava presa há oito meses, prestes a dar à luz, com o despacho que a seguir transcrevo: A acusada é multiplicadamente margi-nalizada: Por ser mulher, numa sociedade machista; por ser pobre, cujo latifúndio são os sete palmos de terra dos versos imortais do poeta; por ser prostituta, desconsiderada pelos homens, mas amada por um Nazareno que certa vez passou por este mundo; por não ter saúde; por estar grá-vida, santificada pelo feto que tem dentro de si. Mulher diante da qual este juiz deveria se ajoelhar numa homenagem à maternidade, porém que, na nossa estrutura social, em vez de estar recebendo cuidados pré-natais, espera pelo filho na cadeia. É uma dupla liberdade a que concedo neste despacho: liberdade para Edna e liberdade para o filho de Edna que, se do ventre da mãe puder ouvir o som da palavra humana, sinta o calor e o amor da palavra que lhe dirijo, para que venha a este mundo, com forças para lutar, sofrer e sobreviver. Quando tanta gente foge da maternidade... Quando pílulas anti-concepcionais, pagas por instituições estrangeiras, são distribuídas de graça e sem qualquer critério ao povo brasileiro... Quando milhares de brasileiras, mesmo jovens e sem discernimento, são esterilizadas... Quando se deve afirmar ao mundo que os seres têm direito à vida, que é preciso distribuir melhor os bens da terra e não reduzir os comen-sais... Quando, por motivo de conforto ou até mesmo por motivos fúteis, mulheres se privam de gerar, Edna engrandece hoje este Fórum, com o feto que traz dentro de si. Este juiz renegaria todo o seu credo, rasgaria todos os seus princípios, trairia a memória de sua mãe, se permitisse sair Edna deste Fórum sob prisão. Saia livre, saia abençoada por Deus... Saia com seu filho, traga seu filho à luz... Porque cada choro de uma criança que nasce é a esperança de um mundo novo, mais fraterno, mais puro, e algum dia cristão... Expeça-se incontinenti o Alvará de Soltura”.
O artigo vem assinado por João Batista Herkenhoff, meritíssimo juiz de direito no Espírito Santo e livre-docente da Universidade Federal do Espí-rito Santo. Acho que aí cabe bem uma frase lapidar de um juiz gaúcho, conhecido meu, combatido por suas sentenças perfiladas ao “direito alter-nativo” que diz que “a justiça deve ser cega, mas o juiz não”.