O IDOSO NO DISCURSO DO DICIONÁRIO BRASILEIRO

Baseando-nos na semiótica francesa, apresentamos a visão do idoso construída no discurso do dicionário de Aurélio Buarque de Hollanda Ferreira, constatando-se aí fórmulas estereotipadas e “perversas” aplicadas pela cultura burguesa aos membros mais velhos da sociedade ocidental.

O embasamento teórico mencionado viabilizou-nos o enfeixamento dos enunciados dispersos sob a forma de verbetes de dicionário[1] – portanto, de unidades discretas – num percurso coerente de geração do sentido, estruturado em patamares sucessivos de investimento semântico-sintático, configurando-se, assim, um continuum discursivo, passível de leitura e de análise.[2]

Salientamos, a princípio, que, paralelamente ao que ocorre no contexto sócio-histórico,[3] enquanto minoria social, o idoso é praticamente silenciado no discurso lexicográfico, seja por expedientes ligados à macroestrutura do dicionário – como a escolha das palavras a constituírem entradas –, seja por expedientes relacionados à microestrutura – como número reduzido de exemplos e de citações referindo-se a idoso. Esse fato corrobora o entendimento de que o sujeito da enunciação atribui aos atores idosos os papéis que, na estrutura narrativa, correspondem ao do sujeito que não pode-ser. E por que não pode-ser?

Reconhecemos, na oposição dominação vs. subordinação, a oposição fundamental do percurso gerativo do sentido do discurso lexicográfico.[4] Essa oposição se evidencia sob formas diversas no dicionário, por exemplo, nos verbetes abaixo, há alusões explícitas ou implícitas à dominação e/ou à subordinação: [5]

Benevolência. 2. def. Complacência com inferiores.

Amizade. 7. ex. Todos tratavam o velhinho com amizade [= bondade, benevolência].

Forte. 25. cit. Pessoa que tem fortaleza de ânimo, que é forte (3): “A vida é combate, / Que os fracos abate, / Que os fortes, os bravos, / Só pode exaltar.”

Energia. 3. ex. Com a idade, perdeu a energia. [= vigor, força]

Obtemperar. 2. ex. Obedecer, assentir, aquiescer, sujeitar-se, submeter-se: Obtempera aos superiores.

Tartamudear. 3. cit. “adiantava-se pela sala, quase roçando o tapete com os cabelos brancos, tartamudeando adulações” [= proferir gaguejando]

Ao devir do discurso, as categorias semânticas dominação e subordinação são axiologizadas, isto é, recebem um investimento tímico que as torna, respectivamente, eufórica ou disfórica, estabelecendo-se, virtualmente, dois percursos distintos e inversos entre os termos da oposição fundamental. Nos verbetes a seguir, correlacionados – ou seja, tomados no nível da estrutura narrativa, em que os valores virtuais convertem-se em objetos-valor, em conjunção ou disjunção com um sujeito –, observam-se esses dois percursos:

subordinação > não-subordinação > dominação

Nulo. 4. ex. Inepto, incapaz: Não contes com ele, é um indivíduo nulo.

Desentorpecer. 4. ex. Sair da inércia; mostrar atividade ou energia: Desentorpeceu, afinal: está trabalhando com afinco.

Galgar. 10. ex. Chegar em pouco tempo a uma posição elevada: De servente galgou a diretor.

dominação > não-dominação > subordinação

Neve. 5. cit. “desceu os degraus do anfiteatro, seguro e resoluto como se as neves de setenta anos lhe não branqueassem a cabeça.” [= cãs]

Caquexia. cit. “para o exercício da magistratura ou sacerdócio paternal era necessária uma energia incompatível com a caquexia da senectude.”

Pedinchar. cit. “Tinha por todas as crianças a mesma ternura: eram entes fracos que não se sabiam defender, como os velhinhos que tremem no vão das portas pedinchando esmolas.”

No discurso lexicográfico em exame, predomina a axiologização eufórica dos termos relacionados ao pólo dominação e a axiologização negativa dos termos ligados à subordinação. Essa operação se evidencia nos verbetes, ora sob a forma de descrição metalingüística, na qual se surpreende a aposição explícita de conotação positiva ou negativa ao termo da definição lexicográfica;[6] ora através de expediente menos explícito, de atribuição de valor ao termo por adjetivação;[7] ora por intermédio de estratégia de implicitação do valor do termo em torneios que envolvem a definição lexicográfica e o exemplo ou a citação, ou que se aplicam só ao exemplo ou à citação – o que ocorre na maioria dos verbetes analisados.[8]

Como se pode depreender dos verbetes-exemplo a seguir, correlaciona-se a velhice ao pólo disfórico, da subordinação. Assim, está relacionada a insanidade mental, rispidez, fraqueza moral, debilidade física, má aparência e pobreza:

insanidade mental

Caducar. 3. def. Perder parcialmente a razão, o tino, por senilidade.

Caduco. 2. def. e ex. Que perdeu as forças, ou o viço ou a capacidade mental; decrépito: velho caduco.

Gagá. def. Decrépito e/ou caduco.

Idade. 5. def. e ex. Velhice (1): São achaques da idade.

Mamar. ¨ De mamando a caducando. def. Da meninice até a velhice; da infância à idade madura.

Senil. 2. cit. “O pai com seu egoísmo de velho achacado e raiva senil às sensuais brejeirices do filho, chegava-se pouco ao catre onde o febricitante esperneava.”

Senilidade. 1. def. Qualidade ou estado de senil, decrepitude. 3. def. Fraqueza intelectual resultante da velhice.

Treler. 3. ex. Pobre velhinho: está trelendo. [= não saber o que diz nem o que faz]

rispidez e/ou fraqueza moral

Blasfemar. 1. ex. Velho e nervoso, só faz resmungar e blasfemar.

Brandir. 2. ex. O velho furioso brandia o guarda-chuva.

Desmentir. 1. ex. Embora soubesse falsa a declaração do velho, não teve coragem de o desmentir.

Impaciente. 4. ex. É um velho impaciente com todos. [= impertinente, rabugento]

Irritabilidade. cit. “A velha, com o sumiço de Macambira, tornou-se de uma irritabilidade frenética.”

Purgar. 4. cit. “Diziam as velhas mexeriqueiras ... que ao bater da meia-noite via-se vagar pelas ruas a alma do pernambucano, a purgar culpas passadas.”

Rabugice. 2. def. e ex. Mau-humor permanente de pessoa rabugenta, ranzinza: rabugice de velho.

Sessentão. cit. “Homem sessentão, cheio de rabugens, pigarros e mais macacoas da velhice.”

Velhice. 5. def. Rabugice ou disparate próprio de velho.

debilidade física

Compadecer. 3. ex. Sua idade avançada não compadecerá [= suportar, agüentar] os rigores do inverno.

Cuidar. 5. cit. “A velha tapuia Rosa já não podia cuidar da lavoura que lhe deixara o marido.”

Curvar. 5. ex. Curvou com a idade. [= envergar-se]

Esbofar. 2. cit. “O velho que dirigia o caminhão se esbofou escada acima, sob o peso dos colchões.”

Pigarrear. cit. “Passam velhos, lentos, encurvados, tossindo e pigarreando.”

Senectude. def. e cit. Decrepitude, senilidade, velhice: vestindo o cabeção e terçando da bengala de carrasco, duma bela cor de vinho velho, a que arrimava a trêmula senectude, meteu terreiro fora para a igreja.”

má aparência

Como. ¨ Como quê. cit. “velhote pardavasco, baixo, calvo, desconfiado como quê.”

Deformar. 3. ex. Seu rosto deformou-se com a velhice.

Embaciar. 1. ex. A velhice embaciava-lhe os olhos.

Encardido. 2. def. Diz-se da pele que, por doença, velhice ou falta de asseio, perdeu o aspecto saudável.

Enevoar. 3. ex. A idade enevoa-lhe os olhos. [= embaciar]

Rarear. 3. cit. “Os cabelos brancos rareavam devassando a fronte.”

Tartaruga. 5. def. Pessoa velha e feia.

pobreza

Ancião. cit. “Perguntei certa vez a um velho negro que idade tinha. O negro ancião sorriu com indiferença: nunca tivera idade.”

Escarcela. 1. cit. “As caras terrosas e os cabelos embranquecidos, na cinta a escarcela [= bolsa de couro] vazia de dinheiro e de punhal.”

Mandalete. 3. def. Pessoa (geralmente criança ou velho) que trabalha numa estância, em serviços leves ou na transmissão de recados ou ordens.

Noite. ¨ Não ter senão a noite e o dia. cit. “ – Pouco ou muito ele trouxesse, tudo é riqueza, disse a velha, para quem não tem senão a noite e o dia.”

No patamar da estrutura narrativa, os sujeitos, em conformidade com um programa de base, são manipulados por outros sujeitos (geralmente a sociedade) para que adquiram a competência necessária à realização da perfórmance que estes (os destinadores-manipuladores) esperam daqueles (os destinatários). Se os sujeitos conseguem realizar a perfórmance, são sancionados positivamente pelos destinadores-julgadores (geralmente a sociedade); em caso diverso, esses sujeitos são sancionados negativamente. Justamente o sujeito idoso, enquanto aquele que não pode-ser, é liminarmente impossibilitado de realizar qualquer perfórmance. E a contrapartida disso é a sanção negativa que recebe, conforme exemplificam os verbetes a seguir, nos quais é alvo de zombaria e/ou violência, ou vive infeliz:

alvo de zombaria e/ou violência

Barata1. 2. def. Mulher velha; carocha.

Capoeirão. def. Diz-se de, ou homem idoso que, por efeito da idade, é pacato.

Cerne. 6. def. Pessoa velha, que não morre facilmente.

Enforcar. 2. ex. O assaltante enforcou o velho com um cachecol.

Esse. 4. cit. “levantou a velha, estorcendo-se, atravessada no facão até o esse...”

Gaiteiro. 6. ex. É o tipo do velho gaiteiro.

Grisar. 1. cit. “as estripulias dos barbaças, as quais são as piores, sobretudo quando começa-lhes a grisar o pêlo.”

Mangar. 2. cit. “Havia ... o caso de um que mangou [= zombou] dos olhos remelentos de um velho cego. No outro dia de manhã, seus olhos boiavam na remela”

Octogenário. cit. “Outra infâmia de Virgulino [Lampião] foi surrar ... o octogenário Joaquim José dos Santana”.

Rachar. 5. ex. Rachou o velho, injustamente. [= maltratar com palavras]

Toda. A toda. cit. “Ainda outro dia, eu subia a toda, quando uma velha começou a empalidecer; passei logo para a primeira e a velhinha se aliviou.”

Velhota. cit. “senhoritas pedantes e velhotas gaiatas”

Velhusco. cit. “De quando em vez, ainda encontro a menina rica ... Já está velhusca.”

Versejar. 4. cit. “Velhotes borrachos pinoteiam versejando coisas d’amor animal em toadas monótonas.”

Xoroca. def. Velha ridícula, desfrutável.

infelicidade

Chorar. 3. ex. É uma velha lamurienta: chora dia e noite.

Chusma. 2. cit. “Decerto, para quem já viveu bastante, há uma chusma de tristezas neste mundo.”

Dizer. 13. ex. O rosto envelhecido diz bem o seu sofrimento.

Doer. 6. ex. Velho, doía-se [= arrepender-se] dos pecados da juventude.

Macróbio. cit. “Macróbios soturnos passam, trôpegos, trêmulos, na morna calma das tardes abrasadoras.”

Mover. 12. cit. “Esta pele refranzida/ Move à piedade e à tristeza.”

Noite. 7. ex. Velho e sozinho, sua vida é eterna noite.

Provecto. 3. cit. “Estas águas (...) ai de mim! representam o fim das coisas em que me deixei consumir até a idade provecta.”

Na instância da sintaxe discursiva é flagrante que o enunciatário-lexicógrafo, diante das virtualidades atinentes à técnica e ao ideário de mundo, atualiza aquelas em que atores idosos são depreciados. Considerando-se que o idoso, como já observamos, é praticamente silenciado no dicionário, qual intenção subjaz ao arrolamento de verbetes tais quais os enumerados acima, especialmente, barata, capoeirão, cerne, velhota e xoroca?

Da mesma forma, sob o ângulo da semântica discursiva, as isotopias figurativas relacionadas a atores idosos não poderiam apresentar imagens mais aviltantes do que as colocadas em discurso: fraco, trêmulo, pele feia, olhos opacos, feio, irascível, rabugento, caduco, triste (se não é: assanhado) , cego, enrugado, gago, pigarrento, desdentado, cabelos brancos, calvo, arrependido mexeriqueira, bajulador, egoísta, incapaz, digno de piedade, vítima de violência, ridículo, tartaruga.

________________________________________

[1] Analisamos a primeira edição do Novo dicionário da língua portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1975), procedendo ao levantamento de um total de 76 verbetes referentes a idoso.

[2] Uma visão menos desenvolvida do tema deste artigo encontra-se em nossa tese de doutorado, A moral burguesa e o projeto de vida burguês no discurso do dicionário brasileiro. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1996. p. 101-5.

[3] A propósito, veja-se o artigo O idoso na mídia, de Guita Grin Debert, em Com Ciência [online]. Disponível em:

< www.comciencia.br/reportagens/envelhecimento/texto/env12.htm > Acesso em 26 de novembro de 2008. Velhice, nº 36, out. 2002, SBPC/Labjor, Brasil.

[4] Para um aprofundamento desse tópico, veja-se a tese citada na nota 3, acima.

[5] Adotamos as seguintes abreviaturas para os verbetes-exemplo: cit. (citação), def. (definição) e ex. (exemplo).

[6] Por exemplo, Velhice. 5. def. Rabugice ou disparate próprio de velho.

[7] Por exemplo, Grisar. 1. cit. “as estripulias dos barbaças, as quais são as piores, sobretudo quando começa-lhes a grisar o pêlo.”

[8] Por exemplo, Caduco. 2. def. e ex. Que perdeu as forças, ou o viço ou a capacidade mental; decrépito: velho caduco.

Texto originalmente publicado na revista Linguasagem - Revista Eletrônica de Popularização em Ciências da Linguagem. 5 ed., Departamento de Letras da Universidade Federal de São Carlos (UFScar), fev. 2009. Disponível em:

< www.letras.ufscar.br/linguasagem/edicao05 >

Obs.: Vale a pena conhecer essa revista, inclusive nas edições anteriores, em que há reflexões muito pertinentes sobre língua e discurso - incluindo-se o debate sobre a nova ortografia.