Marido bem traído (Ou, Indigna exigência)
As duas conversavam enquanto saboreavam suas laranjas, após o almoço. Eu sempre achei interessante tentar prestar atenção aonde o rumo da prosa envereda para outra prosa , sem vírgula, sem ponto e vírgula. Num fôlego só. A gente sabe que falou sobre isso, aquilo ou aquilo outro, mas o momento em que se deu a transição acho difícil. E elas falavam e eu, vendo o telejornal da tarde, ouvia sem dar muita atenção. Até que o assunto enveredou par aos tempos de recém casadas e os costumes da época. Minha intuição me mandou “assuntar” as duas. E foi o que fiz. Eu não imaginava que, mesmo lá pelos anos quarenta, em pleno século vinte o machismo e a discriminação atingissem níveis que chicoteassem publicamente a dignidade da mulher. Talvez eu até duvidasse se não estivesse ouvindo da boca de duas mulheres que sei, não mentem. Falavam de costuras, de como eram as máquinas de costura da época e da novidade que a Singer lançava. Da máquina de costura passaram rapidamente aos fogões, de como era sacrificante cozinhar naqueles fogões “jacaré” a querosene. Para fazer uma feijoada era preciso começar a cozinhar na noite anterior; além de demorar ainda enegreciam as paredes das cozinhas com a fumaça do querosene. Minha tia resolveu comprar um fogão a gás e foi ao centro da cidade . Numa das lojas foi informada de que para adquirir o fogão, teria que, além de apresentar os documentos pessoais, apresentar também uma autorização de compra devidamente assinada pelo marido. O sangue português falou alto e ela saiu da loja em silêncio e só parou de procurar quando encontrou uma loja que não exigia tal absurdo. Comprou o fogão que deveria ser entregue em dois dias. Ao chegar em casa contou ao marido da exigência da autorização e se ela a daria. Ele disse que não, que não precisavam de um fogão a gás. Tarde demais o fogão já estava a caminho.