O Diabo e Bertrand Russel

“Que o diabo te proteja", murmurou a senhora por não lhe ter dado o trocado que me pedira na calçada da grande avenida.

Veio-me à recordação o anjo caído, e com ela os tempos da infância, o colégio dos padres, as missas, as confissões, as rezas, os sermões na paróquia da Aclimação naquele período distante quando imperava a pedagogia do medo. E vi-me transportado de uma calçada à outra da avenida da vida por onde fluía o sangue nervoso da cidade no final do ano, concluindo um período agitado e crítico. O fantasma de então não era a inflação, senão o desemprego, a recessão. O mesmo terror de sempre imposto aos que não querem pensar por própria conta.

Já se disse que os homens são livres, mas não o sabem; nascem livres e vão perdendo a liberdade que lhes fazia sentir imortais, verdadeiros super-homens no formidável universo infantil. Este seria o tão bem-guardado segredo dos tiranos, dos déspotas: o fato de saber que os homens são, em princípio, livres, mas não o sabem.

A liberdade, como tudo o que se recebe ao chegar neste mundo, é um dom que se não utilizado pode se desvanecer, da mesma forma que a inteligência e a sensibilidade humanas.

É comum ouvir-se dizer que o ser humano usa quase nada de sua capacidade mental; que uma mente preparada poderia realizar verdadeiros prodígios. Por que isto acontece? Por que a mente é subutilizada? Quais as causas desta deficiência? O que fazer para tornar a mente mais eficiente?

A falta de liberdade é como um cárcere mental cujos barrotes são o temor de pensar, os preconceitos, a ignorância sobre si e as Leis que regem o Universo.

Todos querem a liberdade e trazem-na dentro de si como algo que não se realiza. Todos sabem que o homem não deve se curvar perante poderes quaisquer. Se ele, como diziam os gregos, é a medida de todas as coisas, por que vive tão esquecido de si? Por que tão ausente e entretido com o que não é essencial por ser passageiro, efêmero?

A verdadeira liberdade é a de pensar. É assim como o espírito humano respira, pensando com liberdade, que é o mesmo que criar, ter um domínio sobre os pensamentos que habitam a mente ou perambulam por aí fazendo os estragos que todos sabem quais são.

Ser livre é usar com liberdade a inteligência, e não somente a memória e a imaginação como nos têm pretendido impor aqueles que nos querem manter atados às rédeas da submissão e da imposição.

Os tiranos, os ditadores, os inimigos da liberdade não querem que o homem pense porque tal grito de liberdade, tal oposição às imposições, é a ameaça ao onímodo poder que as ânsias de domínio desenham em suas mentes doentias.

Pensar, observar, raciocinar, refletir, combinar e julgar são algumas faculdades da inteligência que não têm sido muito exigidas e desenvolvidas pelo ser humano que pode, num grito de liberdade, deixar de ser joguete e escravo de pensamentos alheios que nada têm a ver com a felicidade almejada pelos que sonham com a liberdade.

E enquanto a mulher se afastava com seu pequeno deus te proteja para os que cedessem às suas súplicas teatrais, prossegui refletindo com os diabinhos, as experiências que se vive na ignorância e acabam por causar queimaduras, algumas difíceis de serem curadas e que podem tornar a vida um verdadeiro inferno. Elas são inevitáveis, mas precisam ser controladas. As adversidades não são mais que estas chamas que deverão ser enfrentadas e vencidas, fortalecendo com seu calor a têmpera pessoal. Controlar este fogo exige conhecimento, inteligência e boa vontade. Domar o Lúcifer pessoal, a natureza inferior do ser humano com arroubos de épocas primitivas, faz parte de uma grande experiência de vida que se pode realizar.

A ignorância queima. O conhecimento cura. A esmola vicia e paralisa; é uma ajuda que algumas poucas vezes é justificável, mas, em geral, morre ali, não tem continuidade. A verdadeira generosidade é ampla, um sentimento guiado pela inteligência que faz com que o ajudado transmita o bem recebido para outras pessoas e não morra em si egoistamente. Mais do que ensinar a pescar, que é sempre melhor que dar o peixe, é necessário ensinar a pensar, criar soluções para os problemas de toda a ordem que surgem no dia-a-dia, criar pensamentos que sejam úteis e que sobrevivam aos curtos anos da vida terrestre.

A velha senhora me fizera recordar que a busca da felicidade com base em crenças falsas não é nem muito nobre e nem muito grandiosa, e que a tirania do medo destrói a luz do dia e mantém os homens humilhados e cruéis. Nenhum homem está livre se não ousar ver qual é o seu lugar no mundo. Nenhum homem pode atingir a grandeza do que é capaz até que se tenha permitido ver a sua pequenez, como muito bem ponderou o pensador inglês Bertrand Russel (1872-1970) que defendia um mundo onde educação e liberdade fossem privilegiadas, ao invés do encarceramento do espírito na rígida armadura dos dogmas, da intolerância opressora. Um mundo que necessitaria conhecimento, bondade e coragem, e não seguir palavras ditas há muito tempo por homens de formação duvidosa; que a vida humana pudesse se transformar através da razão.

O pensador inglês se considerava um cético, mas julgava que a vida do homem poderia se transformar através da razão. Ponderava que o ser humano deveria encarar e demolir as próprias crenças que deveriam ser substituídas por convicções profundas, frutos de conhecimentos; foi um pacifista, matemático e filósofo, tendo recebido o Prêmio Nobel de Literatura em 1950. Era um racionalista, na linha de David Hume.

E à velha senhora que me encomendara ao diabo, não pude mais que me descobrir reverente pela oportunidade da reflexão.

Nagib Anderáos Neto

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