POLÍCIA e ETNICIDADE
POLÍCIA e ETNICIDADE
1. A ESCRAVIDÃO PERSISTE
Um dos maiores defeito do ser humano é a mentira. Pior do que mentir é aproveita-se do anonimato. Fazer críticas sem, no entanto, assumir suas responsabilidades e conseqüências é uma omissão de coragem. Produzir de forma velada e perversa o racismo é um retrocesso da própria existência.
Partindo dessa lógica para entender o cerne da questão racial, há de se passar por particularidades e analisar cada ponto, lugar, tempo, sociedade, circunstâncias, movimentos, cada raça e seus devidos cruzamentos, miscigenação.
Um longo processo histórico que permeia os séculos XV e XVI especifica esse adendo com o descobrimento do continente africano, suas relações mercantilistas, sua colonização, sua escravatura. Nesse contexto, tribos rivais se opunham, aprisionavam seus próprios irmãos com a mesma pigmentação escura. Eram seqüestrados e arrancados de suas raízes, conduzidos em navios negreiros sem o mínimo de condições humanas para países que tinham a predominância de pigmentação clara. Assim, é o prelúdio da identidade negra, nesse sentido, forçado pela crença da superioridade intelectual dos brancos, pelo menos uma nova identidade longínqua de seu passado.
Na época não foi diferente para o Brasil. A recepção hostil de seres humanos de cor escura, os quais se tornavam escravos, pois até então eram considerados capturados e aprisionados. A palavra escravo remete a uma submissão imposta pela força física ou moral, uma prática social que um ser humano tem direitos de propriedade sobre o outro, ou seja, tratados como mercadorias.
Não cabe ao momento deste trabalho esclarecer certos comentários de ordem diversa, mas é sabido que por motivos diversos, esse servilismo não foi da mesma maneira aceito pelos “gentios” (índios nativos), considerados poucos aptos ao trabalho forçado ou simplesmente a não sujeição da subordinação, levam a sofrer perseguições e extermínio, imposições religiosas e algo mais. Por essa esteira reforça a identidade negra. Há uma conexão de forma direta a essa situação, ou seja, o Brasil colônia precisava de mão-de-obra para a lavoura canavieira, apesar de não ser tão barata, seria uma alternativa de custo-benefício já que se tratava de objeto, não de “pessoas”.
Os escravos negros eram torturados fisicamente e psicologicamente, os senhores proprietários de terras buscavam destruir os valores do negro e forçá-lo a aceitar a ideia, como dito, da superioridade da raça branca. Além de todos esses castigos havia uma máscara que impedia os escravos de beberem e fumarem deixando os vícios; essa máscara era chamada de "máscara de folha de flandres”. Desta forma apagava-se aos poucos sua percepção do mundo que haviam forçadamente deixados para trás, suas linguísticas, religiosidades, alteridades e divindades.
Como no passado, a escravidão no Brasil torna-se presente, porém de forma latente. Extirpar essa cultura impregnada em nossos costumes não é de nenhuma forma tarefa fácil. Há dispositivos legais, até mesmo constitucionais que avocam a essa vertente. Como foi dito pela expressão do sociólogo Florestan Fernandes: “Preconceito de ter preconceito. Temos medo de falar de racismo”. Quando não se fala, nega-se a própria socialização, a devida cidadania. A ausência de conflito racial leva a uma silenciosa convivência social e passa-se a viver envoltos de omissão e mentiras.
Não é nessa conjuntura que se deve abandonar a cordialidade do convívio, mas sim abandonar o anonimato, a falsidade. Deixar que se tire a máscara de flandres e que cada um assuma sua própria identidade. Não é um convite a segregação racial nua e crua, é um alento em aceitar realmente a abolição da escravatura.
2. A FORMAÇÃO DOS PERSEGUIDOS.
A escravidão no Brasil foi abolida de direito em 1888, pois já vinha de um processo abolicionista que culminou a liberdade definitiva. É esse o limbo que separa a liberdade de direito e a de fato. Ao quebrarem os grilhões, os agora ex-escravos não possuíam a qualificação e os conhecimentos necessários para caminhar com suas próprias pernas. Estariam a partir daquele momento à espreita de uma sociedade esbranquiçada que lhes atiravam às suas próprias sortes e destinos. Não tinham mais identidade, muito menos eira nem beira. Muitos permaneceram ou voltaram a “servidão”, pois é o que sabiam fazer desde os meados do séc XVI.
Esse resgate histórico é defendido por sociólogos, antropólogos e parte da atual sociedade como uma dívida a ser paga aos negros, mas é de tamanha magnitude que não se contempla tal ação, pois o Brasil por ser um país continente, multifacetado não abarca tal conjectura. Há neste país diversas formas de discriminação não apenas a racial, mas também regional. O que dizer dos nordestinos que foram “contemplados” pela natureza seca e árida de seus lares?
Esses nordestinos apesar de não serem capturados e aprisionados fisicamente, mas o eram moralmente e, aparentemente, ainda é. Abandonavam também seus passados e identidades. Passavam a popular e construir grandes centros urbanos com sua mão-de-obra calejada e sua pele curtida pelo sol sertanejo que os castigavam. Tinham as necessidades maiores de um ser humano, a água farta e comida, a satisfazer sua sede de viver. Dizer que o anonimato e a dissimulação social estão envoltos apenas aos negros é omitir-se de redundância. A dívida deve ser paga aos que sofreram tal agressão de sua própria segregação. Se é que deve ser paga. O governo de hoje, em esfera federal, entende bem essa dívida e todos nós a pagamos de forma diversa como a pretendida pela classe “cotista”.
3. OS PERSEGUIDORES
Essas duas identidades ora expostas, pode-se incluir sem melindres também os pobres os quais evitam comentários. Não são as únicas a sofrerem as mazelas de seus passados, mas são consideradas o cerne da discriminação social no Brasil. O ser humano, infelizmente, sempre quis ter superioridade sobre outro, dominar, mostrar poder. A história relatar isso por meios de guerras e conquistas; sujeição e superioridade.
A cidadania pleiteada por essa parcela da população brasileira esbarra-se pela animosidade da própria classe dominante. Dizer que existe aversão de um negro bem sucedido financeiramente, morador de um bairro classe alta, num grande centro urbano perante a um nordestino que fora contratado para reformar sua residência, não seria deveras incomum. Não obstante se a situação fosse inversa. O negro batesse à empresa de um nordestino bem sucedido em busca de trabalho, qual seria oferecido?
Essas histórias fictícias que seriam um prenúncio de esboço de folhetim ou uma nova novela (ou vale a pena ver de novo), podem existir de fato, não se sabe. Porém, o que se tem de conhecimento, e isso não se pode negar, é o veladismo inserido no seio de cada um de nós. O chamando dar o troco. Trazer todo seu passado de repressão e sofrimento, auscultar o silêncio estridente suportado por décadas, séculos e aplicar também a discriminação é, destarte, da mesma forma medíocre e abarcado de uma insensatez mostro da natureza infeliz do ser humano.
A própria sociedade ajuda na perseguição da etnicidade de um passado recente e cobra e reflete na segurança pública mantenedora da paz e ordem social. Apesar de não se ter evidência de que nos últimos anos, aos passos do processo de transmutação democrática, a polícia tenha defenestrado métodos persuasivos e violentos de repressão à criminalidade. Uma coisa há de concreto o alvo principal é essa sociedade que teve seu passado rasgado e hoje se pretende resgatá-lo.
A polícia de atrito (polícias militares e civis), aquela que às vezes se confunde com a população menos assistida, que está em contato no cotidiano local, desde sua formação, não soube impor sua autoridade perante as elites. Essa polícia possui uma visão diferente nos bairros prósperos cometendo menos abusos nestes do que naqueles onde moram e vivem os não-brancos e populações pobres.
Para reduzir esse desconforto paradoxal seria necessário um investimento em pessoal dessa polícia, associada ao assistencialismo dessa população desregrada. A Educação seria uma das principais alternativas para atingir esse fim. Não somente uma educação em salas de aulas, mas uma aprendizado de civilidade que reflete em cidadania, respeito ao próximo.
Deve-se oferecer uma lente multifocal para os integrantes dessa polícia de atrito, pois quando os poderosos das camadas sociais mais altas e médias praticam crimes, estes são ocultos aos seus olhares sem àquelas lentes. Pois a miopia a impede de ver além do alcance por estar embaçada pelos crimes a olhos vistos quais sejam agressões físicas, assaltos, estupros, homicídios, assim sendo, um verdadeiro passeio nas delinqüências mais hostis.
Já os crimes quando cometidos pelos “doutores”, “coronéis”, “senhores” e até “madames”, são na maioria das vezes não envoltos de violência, no lugar de estupro, pedofilia; de furto/roubo, peculato ou desvio de verbas públicas (outros usam de eufemismo: cleptomania. Pode); agressão por discriminação social-racial, perseguição político-institucional. Em fim, enquanto os mais abastardo se valem do ardil, as camadas populares empregam a força física e brutal.
Uma pessoa que venha a morrer, vítima de homicídio, principalmente apresentada com as cores fortes da mídia, repercute na sociedade muito mais que aquele desvio de dinheiro público que seria empregado na construção e manutenção de hospitais ou de investimento em infra-setrutura. Mas não se mensurar nessa contabilidade quantos morrem por esse estreito e contínuo ralo monstruoso, imperceptível e invisível aos não usuários daquelas lentes multifocal.
A Polícia Federal a qual não anda no dia-a-dia com seu habitual uniforme preto, não se expõe. Foge a esse conceito de proximidade, contato, atrito. Trabalha com a Inteligência em busca de informações importantes e se gaba em dizer que várias operações foram realizadas e presos diversas pessoas sem ocorrência de troca de tiros. Também pudera só vão “na boa”.
A essa polícia que era, até pouco tempo, ladeada de policiais com nível escolar secundário, violentos, despreparados profissionalmente, corruptos, entre outras imperfeições. Sofre uma reestrutura, guina-se com profissionais de nível superior, melhores salários e uma preparação adequada e condizente com a realidade de exercer exclusivamente a polícia judiciária da União. Cortou-se na própria carne. Atingiu aceitação popular e persiste em confiança.
A essa polícia labuta veladamente e colhe resultados. Os crimes perquiridos são mais, digamos, sofisticados. Desvios de verbas públicas, estelionato e fraude contra o INSS, corrupção envolvendo integrantes de altos escalões do governo, sonegação e evasão fiscal a nível federal. Entre outras sabotagem do aparelhamento estatal. Crimes do “colarinho branco”
Os investigados e por vezes enclausurados dessa polícia são normalmente pessoas com nível de escolaridade superior, ocupam cargos de chefias em estatais ou em escalões próximos e gozam de “prestígio” perante a sociedade. São normalmente brancos. Esses policiais aprenderam a usar as lentes multifocais para o bem da sociedade. Destarte, não se comprometem com a comunidade, não há situação de hiper convivência com a violência, não há fricção.
4. CONCLUSÃO
Tratar os injustos independentemente do delito que cometeu, pois crime é crime em qualquer lugar, realizado por qualquer pessoa, seja cometido pelas camadas mais altas ou menos privilegiadas, não se contesta. Há a devida dosimetria para isso, mas as agências de controle social – polícia, judiciário, penitenciaria – apresentam uma desigualdade em aplicar tal sanção, observam a vida pregressa, cor da pele, situação social, origem regional, ou seja, argumentos manipuladores das tomadas de decisão, associadas por fontes discriminatórias.
Como se vê, a polícia em todas as suas facetas define a etnicidade aplicando previamente sanções e prejulgamentos. A sociedade também por si só passa a ser ao mesmo tempo “sancionadora” e vitimatizada de sua própria cor de pele, sua origens, atitudes e seus cotidianos. Essa simbiose entre polícia e etnicidade de se tornar um círculo vertiginoso é grande e, manifestadamente, difícil de se romper.
Ednilson Trajano