UM PASTOR DA PAZ E DA TERNURA

Vim me dar conta da importância religiosa, política e social de Dom Hélder Câmara (1909-1999), pela vez primeira, lá no distante ano de 1966. Concluía o Curso Clássico, no histórico e glorioso Liceu do Ceará, em Fortaleza, e as duas turmas concludentes, por aclamação, após uma votação unânime, em segundo turno, elegeram como nosso paraninfo o então arcebispo de Olinda e Recife, aqui, em sua própria terra, quase um brasileiro anônimo. Como diz o ditado bíblico e popular, “ninguém é rei em sua terra”.

A primeira escolha das turmas do Clássico recaiu sobre o nome do jornalista e escritor carioca Carlos Heitor Cony, que despontava na mídia da época como um intelectual progressista e contrário ao status quo. Vale dizer que o nome de Heitor Cony foi boicotado por fontes da ditadura. Ele não pôde vir à nossa colação de grau, já que se opunha ao regime que nos fora imposto pela dita “quartelada de 1964”. Como D. Hélder ainda tinha certo trânsito livre nos meios de comunicação social, então ele pôde nos paraninfar sem problema. Depois, a partir do AI-5, em 68, o cerco que lhe fizeram foi cerrado. A mera citação de seu nome, em qualquer jornal ou revista, era vetada.

Esse movimento dos quartéis, que começou a viger oriundo de um levante à revelia do Estado de Direito, convencionou-se, também, por indução da propaganda militarista, chamar-se de “gloriosa Revolução de 31 de março”, na verdade um golpe de Estado consumado em 1º de abril, cujas consequências desastrosas se alastraram por mais de vinte anos.

D. Hélder, um cearense nascido em Fortaleza, num dia 07 de fevereiro, de princípio fez-se notório ainda nos trabalhos das Comunidades Eclesiais de Base, militando brava e heroicamente na enorme cidade favelada da Rocinha, no Rio de Janeiro. Aí ele era ouvido e admirado por todos, e suas lições de vida, de humanidade e de solidariedade bem que lhe podem imprimir, mesmo agora, o epíteto de um pastor da paz e da ternura. Conserva sempre a alegria no patamar do rosto, e sua fala branda e pausada davam-lhe a majestade de um grande líder social e espiritual.

Naquele meio adverso e cheio de dramas humanos da favela da Rocinha, como, por exemplo, a proliferação do uso das drogas, da prostituição, do abandono público e do pauperismo, o manso pastor de fala suave acasalava sempre os sentimentos de respeito aos Direitos Humanos ao terno e fraterno lirismo poético de um Dom Quixote, sonhando grande, investindo e acreditando na melhoria das pessoas.

Influiu e contribuiu bastante, no Rio de Janeiro. Fundou a Cruzada São Sebastião, com o fim de dar moradia decente para os favelados, criou institutos e o Banco da Providência, este para atender a pessoas em condições miseráveis. Ainda no Rio, dirigiu uma instituição pedagógico-religiosa e foi um dos principais ideólogos da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Também criou e inaugurou a hoje famosa e sólida Campanha da Fraternidade.

Talvez já por ser incômodo aos altos poderes ligados ao regime de exceção, D. Hélder, cada vez mais quixotesco, assim é que foi dar em Pernambuco, tornando-se, lá, a partir de sua chegada, o queridíssimo e venerando arcebispo e depois cardeal de Olinda e Recife. Duvido que nestas duas cidades alguém o ignorasse, desde o ancião à criança pequena. De batina quase rota, a pé ou de ônibus, metia-se por todos os guetos das duas urbes, e sua palavra de fé soava como um canto de acalanto aos ouvidos dos pobres sem voz, dos oprimidos e dos grupos minoritários.

A voz mansa de D. Hélder era uma partitura musical e de simplicidade, embora o intelectual que nele morava escrevesse crônicas e poemas da mais excelsa qualidade, enfocando a temática diária dos dramas comunitários, além dos grandes problemas sociais e políticos nacionais. Tais textos eram lidos, à tardinha, na rádio FM da diocese de Olinda, e a popularidade do pastor era tanta que aquele horário radiofônico tornou-se ponto de encontro em audiência até onde as ondas hertzianas eram tidas como possíveis de ser captadas: Paulista, Abreu e Lima, Jaboatão dos Guararapes, Porto de Galinhas, Limoeiro, etc., etc.

O cidadão do mundo D. Hélder Câmara deixou, como legado intelectual, mais de vinte livros escritos. Mensagens lindas de paz, de amor, de otimismo, de solidariedade e de puro humanismo. Por causa de suas andanças e pregações pelo exterior, mormente na Europa, tornou-se mais conhecido lá que no Brasil. Seu nome foi lembrado quatro vezes para ser o detentor do Prêmio Nobel da Paz, mas, miseravelmente, era obscurecido e “deletado” pelos seus adversários do regime imposto. O bom pastor era tido por eles, os reacionários, como um aderente ao comunismo. Assim, eles o apelidavam de “o cardeal moscovita”, “o padre vermelho”. E iam por aí as falações que o detratavam. Apenas isto: doutor honoris causa, além de vários outros títulos e prêmios internacionais.

Quando a repressão política era mais intensa, no País, em 1969, em plena vigência do famigerado AI-5, editado pelo ditador Artur da Costa e Silva, o Padre Antônio Henrique Pereira Neto, fiel aos ensinamentos de D. Hélder, após sair de uma reunião em casa familiar, foi sequestrado, torturado, mutilado (castrado) e morto, sendo o seu corpo encontrado num matagal da Cidade Universitária. Obra do então Comando de Caça aos Comunistas (CCC), até hoje na impunidade.

Dava-se o acompanhamento fúnebre do sacerdote, seguido por milhares e milhares de olindenses, recifenses e gente simples, vinda de todas as cidades circunvizinhas, a pé e ao som de delicados cânticos religiosos, ora, também, em profundo silêncio, sem quaisquer palavras de ordem ofensivas. Tudo ordeiramente, pois o séquito era seguido de perto por centenas de viaturas policiais e a guarda da cavalaria.

Num determinado momento, notando aquele estúpido desrespeito ao religioso que fora assassinado friamente pelos mandões do mesmo esquadrão armado que ali estava, a multidão não se conteve e ensaiou um estrondoso “Abaixo a ditadura! Foi então que a tropa de choque a cavalo avançou, célere, sobre a massa humana, assim como quem vai à guerra. D. Hélder, que marchava à frente, capitaneando a procissão, como num passe de mágica, sempre de voz suave, apenas ergueu a mão direita e fez, quebrando seu modo de ser, em alto brado: “– Por Deeeus, paaarem!” E a soldadesca montada recuou de pronto. Como num passe de mágica.

Do ilustre cearense que se notabilizou mais no estrangeiro que em seu país muito ainda se poderia falar. Uma vez, no bairro Benfica, em Recife, numa casa dirigida pelas freiras da Ordem de Jesus Crucificado (minha mulher pertenceu a esta ordem religiosa), soube pela boca da madre superiora que D. Hélder havia sido impedido de ir a Estocolmo receber um prêmio internacional quase tão significativo quanto o Prêmio Nobel. Era comum ele passar por mal-educado e recusar a ser patrono, paraninfo ou dar nome a turmas de formandos, Brasil afora, porque era expressamente proibido pela censura ditatorial de deixar Olinda e Recife.

Agora, sem fazer tragédia num país onde tudo pode acontecer, pasmem as senhoras e senhores que me leem estas mal traçadas linhas. Em Fortaleza, terra de D. Hélder Câmara, aclamado e querido mundialmente, um exímio poeta que falava, ensinava, escrevia, professava e praticava o bem e a paz, que fazia abertamente a defesa dos pobres e dos direitos do homem, justo quando ele iria completar cem anos, se vivo ainda fosse, tem seu nome preterido e retirado de um dos prédios do Tribunal Regional do Trabalho, por sugestão de um insigne desembargador. Com alguns votos contra, o magistrado conseguiu a mudança de nome do prédio para beneficiar o próprio falecido pai, que também era desembargador.

Substitui-se a homenagem que se dava a um universalmente Dom Quixote por um venerando porém desconhecido magistrado... Coisas assim, díspares e esdrúxulas, ocorrem em cidades provincianas, bairristas, egocêntricas, narcisistas e de mentalidade tacanha, sobretudo quando estas pequenezes se arrancham na mente de pessoas falsamente graúdas. D. Hélder, sem favor algum, está a merecer, já e já, deste Estado, quiçá de Pernambuco e do Brasil, agora, em fevereiro, inúmeras honrarias, precisamente quando o pastor da paz e da ternura faria um século de abundante, caridosa, meritória e iluminada existência. Viva D. Hélder Câmara, cabeça-chata ilustre, o folclórico e popularíssimo “padre José” das crônicas e poemas lidos ao microfone da FM de Olinda!

Fortaleza, 25 de janeiro de 2009.

Gomes da Silveira
Enviado por Gomes da Silveira em 25/01/2009
Reeditado em 26/01/2009
Código do texto: T1404151
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