A Resistência Palestina

um direito legítimo e um dever moral

Samah Jabr*

Aquelas poucas pessoas que chegam a refletir sobre os aspectos morais, políticos e estratégicos da nossa luta, vêem-se confrontadas com a falta de perspectivas e os desgastes que o conflito causa à razão e à consciência.

Como avaliar a Resistência Palestina com o respeito e a justiça que lhe são devidos no quadro da longa história do conflito palestino-israelense?

A ocupação da Palestina tem por fundamento uma ideologia do século XIX que nega a existência de um povo. Ela seguiu uma agenda colonial fazendo valer certos "direitos divinos a uma terra sem povo".

Em resposta a esta agressão teo-colonial, a Resistência Palestina adotou a estratégia da guerra de um povo a fim de impor o reconhecimento da Palestina como uma nação desapossada, ao invés da qualidade de "nação não existente".

Ainda hoje os palestinos continuam a viver sem dispor de um Estado, nem de forças armadas. Nossos ocupantes submetem-nos a toque de recolher, a expulsões, a demolições de casas, a tortura legalizada, e a toda uma panóplia altamente elaborada de violações dos direitos do homem.

Nada pode justificar a comparação entre o nível de responsabilidade oficial à qual os palestinos estão adstritos pelas ações de alguns indivíduos, com a responsabilidade de violência sistemática e intensa contra uma população inteira, praticada com toda a impunidade pelo Estado judeu.

A imprensa americanoa chama "terrorismo" à nossa busca de liberdade, e assim o palestino é tido como o protótipo internacional do terrorista. Esta política moldou a opinião pública ocidental tendo por conseqüência, uma tomada da posição internacional concretizada na tendência a descrever as violências cometidas contra civis palestinos com uma linguagem neutra. As vítimas palestinas ficam reduzidas a simples estatísticas anônimas, ao passo que as vítimas israelenses são pintadas com palavras e imagens fortes. Esta distorção sobre a Resistência Palestina abafou qualquer diálogo razoável.

Muitos dos nossos esforços para desafiar o cruel domínio do ocupante, são reduzidos a "ameaça do terrorismo", como se devêssemos desculpar-nos permanentemente, e nós próprios condenarmos a nossa legítima Resistência; e isso apesar da ausência de definição correta do termo "terrorismo", e do fato de que o direito à autodeterminação pela luta armada é previsto e autorizado pelo artigo 51 da Carta das Nações Unidas, referente à autodefesa.

Como é possível que a palavra "terrorismo" seja aplicada tão à vontade contra os indivíduos ou grupos que utilizam bombas artesanais, e não aos Estados que empregam armas nucleares (urânio empobrecido) e outras armas proibidas, assegurando a continuada dominação do opressor?

Israel, EUA e Grã-Bretanha encontrar-se-iam, obviamente, à cabeça da lista dos Estados exportadores de terrorismo, devido às suas agressões militares contra a população civil na Palestina, no Iraque, no Sudão e alhures.

Mas "terrorismo" é um termo político de que se serve o usurpador colonialista para desacreditar aqueles que resistem, do mesmo modo que os afrikanners e os nazistas qualificavam de "terroristas" os combatentes negros sul-africanos e os partisans da Resistência francesa.

Também há a tendência junto àqueles que se opõem à Resistência Palestina de utilizar o termo Jihad como sinônimo de "terrorismo". De fato, eles reduzem o significado dessa palavra à noção de morte. Jihad é um conceito muito mais rico, e que significa lutar contra nossos baixos instintos, nos esforçarmos por fazer boas ações, lutar ativamente contra a injustiça e demonstrar paciência em períodos difíceis. Jihad não significa fazer uso de violência contra as criaturas de Deus, nem a coragem de morrer defendendo os direitos das criaturas de Deus. Entretanto, a violência pode ser um meio de defesa de um ser humano racional. É assim, por exemplo, quando uma mulher reage violentamente a uma ameaça de violação: isto é uma forma de Jihad. Além disso, a Jihad é um valor islâmico, e nem todos os combatentes palestinos são muçulmanos.

A verdadeira razão pela qual jovens palestinos, sinceros e generosos, se fazem explodir, é um segredo que eles levam consigo. Talvez seja o fruto misterioso da vingança lavrando no solo fértil da opressão e da ocupação, ou a profunda maneira de protestar contra a crueldade impiedosa, ou até a tentativa desesperada de atingir a igualdade com os israelenses na morte, visto como lhes é impossível em vida.

As pessoas que vivem em condições desumanas durante toda a vida são, infelizmente, capazes de atos desumanos. O que resta aos milhares de desabrigados de Rafah, senão a Resistência? Não se trata do Islã, trata-se da natureza humana, comum a homens e mulheres, religiosos, seculares e agnósticos.

Nossas mulheres kamikazes certamente não morrem na esperança de se reunirem às setenta virgens que as esperam no Paraíso.

Outro fator decisivo na Resistência Palestina, é a história aflitiva das sucessivas negociações de paz, e a ausência de apoio internacional.

As negociações com Israel não trouxeram senão promessas de autonomia sobre o nosso empobrecimento, sempre reforçando a vontade do poderoso, e consolidando as desigualdades como bases de uma ocupação concebida para durar. A ausência de um mediador honesto nas negociações de paz, é a coisa mais flagrante.

As Nações Unidas foram incapazes de tomar medidas para defender os direitos dos palestinos. O mundo inteiro não foi capaz de propor qualquer remédio para as inúmeras feridas que afligem os palestinos. Em muitas ocasiões Washington utilizou o seu direito de veto no Conselho de Segurança para se opor ao consenso mundial que pedia a presença de observadores internacionais na Cisjordânia e em Gaza.

A negação implacável dos nossos direitos, junto à ausência de solução internacional eficaz, levou-nos a tomar consciência de que a autodefesa era a nossa única esperança.

O direito internacional concede a qualquer população combatendo uma ocupação ilegal, o direito de utilizar "todos os meios à sua disposição" para se libertar, e os povos ocupados "têm o direito de procurar e de receber apoio" (cito aqui várias resoluções da ONU).

A Resistência armada foi posta em prática pela revolução americana, pela Resistência afegã contra a União Soviética, pela Resistência francesa contra os nazistas, e pelos judeus resistentes nos campos de concentração, nomeadamente no afamado gueto de Varsóvia. Da mesma forma, a Resistência Palestina é o resultado de uma situação de ocupação ilegal, e de opressão de um povo em seu conjunto. O grau de violência pode variar, pode acontecer mesmo que a Resistência seja essencialmente não violenta.

Apesar de todas as injustiças de que são objeto, os palestinos continuam resolutamente a viver, a estudar, a orar, e a cultivar as suas terras num país ocupado. Em alguns casos, eles resistem ativamente e recorrem a atos violentos. Esta Resistência violenta pode ser, ou defensiva (e portanto, no meu íntimo, moralmente correto) como a defesa por exemplo, no campo de refugiados de Jenin pelos combatentes, face ao avanço das máquinas da morte israelenses; ou tomar a forma de atos ofensivos inaceitáveis, tal como o bombardeamento de civis israelenses a festejarem a páscoa judia.

Contudo, em ambos os casos, são indivíduos que escolhem a forma de Resistência, e a escolha que eles fazem não é obrigatoriamente aquela do conjunto do povo palestino. Entretanto, como já constatamos, quer a Resistência seja violenta, ou não violenta, ela é igualmente respondida por uma deliberada e brutal violência de Estado, por parte do democrático governo israelense e do seu exército. A morte da militante pacifista americana Rachel Corrie é a prova evidente.

"Onde está o Gandhi palestino?", perguntam-se alguns. Os nossos "Gandhis" estão ou na prisão, ou no exílio, ou enterrados. Nós não somos centenas de milhões. Um povo de 3,3 milhões e sem armas, fica vulnerável face aos 6 milhões de israelenses, todos virtualmente soldados ou reservistas. Não se trata de uma colonização econômica, os israelenses praticam a depuração étnica a fim de se apossar da terra dos palestinos para o único proveito dos judeus.

É irônico constatar que poucas pessoas, entre aquelas que exortam os palestinos a imitar Gandhi, falam sobre o sionismo, a causa primária da invasão e ocupação da Palestina.

Entretanto, já em 1938 Gandhi contestava e repudiava os argumentos do sionismo: "Minha simpatia não me faz esquecer a necessidade de justiça; o pedido por um lar nacional para os judeus não me convence; o argumento para este lar, é baseado na Bíblia, e na cobiça com que os judeus postulam o seu retorno à Palestina; por que não podem eles, como os demais povos da terra, estabelecer o seu lar no país onde nasceram e onde ganham a sua vida?".

Gandhi repudiou claramente a idéia de um Estado judeu sobre a "terra prometida", fazendo notar que "a Palestina na concepção bíblica não é um tratado geográfico".

A Resistência violenta é o resultado de uma ocupação militar desumana que inflige arbitrariamente castigos cotidianos; que nega a possibilidade da própria existência dos meios de subsistência, e que destrói sistematicamente toda a perspectiva de futuro do povo palestino.

Os palestinos não foram à terra de um outro povo para destruí-lo, ou despojá-lo dos seus bens.

O nosso desejo não é nos fazermos explodir para aterrorizar os outros. Nós queremos que as pessoas possam ter, por direito, uma vida decente sobre a nossa terra natal.

O mais perturbador, no que se refere às criticas expressas contra a nossa Resistência, é a maneira com que fazem pouco caso dos nossos sofrimentos, como diminuem a importância do que nos foi usurpado, e da constante violação dos nossos direitos mais elementares.

Quando somos assassinados, estes críticos permanecem insensíveis. Nossa luta pacífica, cotidiana, para levar uma vida normal, permanece amplamente ignorada. Quando alguns dentre nós sucumbem ao impulso da represália e da vingança, a indignação e a condenação caem sobre todo o conjunto da nossa sociedade.

A segurança israelense é julgada mais importante do que os nossos direitos elementares de existência; as crianças israelenses são consideradas mais humanas do que as nossas; e a dor israelense mais inaceitável do que a nossa.

Quando nos rebelamos contra as condições desumanas que nos esmagam, nossos críticos comparam-nos a terroristas, inimigos da vida e da civilização.

Mas não é para apaziguá-los que devemos reavaliar a nossa Resistência. É porque nós nos preocupamos com o ânimo dos palestinos e do seu moral.

As leis internacionais e os precedentes históricos de numerosas nações, reconhecem o direito de uma população, quando ela se encontra sob o jugo de uma opressão colonial, a tomar armas na sua luta de libertação. Por quê a situação seria diferente no caso dos palestinos? Se é uma regra do direito internacional, não é portanto de aplicação universal?

Os americanos estabeleceram na sua constituição direitos à vida, à liberdade e à busca da felicidade. É essencial que o direito à vida seja mencionado em primeiro lugar. Afinal de contas, sem o direito a permanecer com vida, a proteger-se dos ataques, a defender-se, os outros direitos perderiam o sentido e a razão de ser. A lógica decorrência deste direito, é o direito à autodefesa.

Nós, palestinos, continuamos a enfrentar uma ocupação brutal expondo nossos peitos desarmados, e nossas mãos nuas. Creio no diálogo entre palestinos e israelenses, mas as negociações não bastam por si próprias: elas devem ser acompanhadas pela Resistência contra a ocupação.

Entretanto, enquanto os israelenses nos acenam com o diálogo, continuam a construir assentamentos para aqueles "colonos", e a erguer uma muralha que nos encerrará e violará ainda mais os nossos direitos.

Por quê deveríamos abandonar o nosso direito de resistir? Para continuarmos a viver sob o absurdo domínio do usurpador assassino?

Viver sob a opressão e submeter-se à injustiça, é incompatível com a saúde psicológica. A Resistência não é só um direito e um dever, é também como um remédio para os oprimidos.

Independentemente de qualquer opção estratégica ou pragmática, na Resistência reside a expressão da nossa dignidade humana.

A Resistência violenta deve ser sempre defensiva e utilizada em última instância. Entretanto, é importante distinguir os alvos aceitáveis (militares) dos alvos inaceitáveis (civis) e estabelecer limites ao uso das nossas armas. O colonialista opressor, por sua vez, não deve ficar isento destes mesmos princípios.

A história da nossa Resistência deve ser olhada e avaliada do ponto de vista do direito internacional, da moralidade, da experiência e do aspecto político, tendo em conta acontecimentos cronológicos e contextuais, concedendo o seu justo lugar aos direitos do homem, às regras internacionais, e às normas de comportamento amplamente admitidas pela comunidade internacional.

Os palestinos devem procurar alternativas não violentas e eficazes como forma de Resistência. Elas poderão persuadir os progressistas de todo o mundo a juntarem-se ao nosso combate.

Afinal de contas, a força do palestino reside na sua moralidade, nas suas virtudes humanas; cabe a nós encontrar recursos morais e humanitários a fim de proteger esta força.

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Samah Jabr é médica palestina e vive na Jerusalém ocupada. Filha de um professor universitário e de uma diretora de colégio, foi cronista do Palestine Report de 1.999 a 2.000, com a rubrica Fingerprints. Desde o princípio da Intifada contribui regularmente com o Washington Report on Middle East Affairs e com Palestine Times de Londres. Além disso recebeu o prêmio do Media Monitor's Network pela sua contribuição sobre a Intifada, e alguns dos seus artigos foram publicados no International Herald Tribune, Philadephia Inquirer, Australian Options, The New Internationalists e outras publicações. A autora deu várias conferências no estrangeiro, nomeadamente na Universidade Fordham e no St. Peter's College de Nova York, em Helsinque e em várias universidades, mesquitas e igrejas na África do Sul.

Carlos Henrique Marques
Enviado por Carlos Henrique Marques em 16/01/2009
Reeditado em 16/01/2009
Código do texto: T1387226