O “problema” da pobreza

Se existe um conceito que incomoda os profissionais tanto das ciências humanas como das ciências sociais aplicadas é o conceito de pobreza. Sinceramente tenho grandes dúvidas em torno dos pensamentos que se atrevem em definir esse fenômeno. Em geral, economistas, sociólogos, demógrafos, assistentes sociais se apegam a índices para mencionar se uma determinada pessoa é pobre ou não. Mais que isso, muitos fazem uma espécie de triangulação de dados e informações: visitam o local, contam o número de móveis, imóveis, filhos e fazem, na base da subjetividade, o melhor diagnóstico possível.

A questão é que não há IDH, IPC, IGPM ou observação do PIB per capita que possa medir o que é pobreza. Ser pobre é não possuir uma residência? Ser indigente é não ter carros, imóveis, móveis, emprego fixo e renda estável? Ser pobre é não ter o que comer ou onde dormir? Definitivamente não se sabe. Os mais “à esquerda” vão dizer que é tudo isso. Na verdade somos cúmplices e vítimas assíduas de índices feitos por cientistas que, talvez, sequer passaram por perto do sentimento de fome. Logo, tenho a certeza de um consenso: estamos longe das medições, das prescrições e somente nos é permitido aproximações de uma categoria efêmera que pode, em larga medida, ser experimentada somente na pele. Longe disso, é lícito afirmar que lidamos com o fenômeno de forma incipiente e que as fórmulas podem ser um sério problema para as políticas públicas.

Em recente artigo o jovem consultor econômico Parag Khanna (O Gigante está vulnerável, In: Veja, 31 de dezembro de 2008, p. 184) nos ofereceu boas linhas a esse respeito salientando que “no meu critério, uma pessoa só pode ser considerada acima da linha de pobreza se ela está em patamar seguro em relação a flutuações no preço da comida e das commodities”. A despeito de boas, as linhas e o texto mencionado não se referem a que tipo de commodities e produtos que sofrem a variação de preços própria do mercado. Contudo, vale a idéia dos seres humanos possuírem um “patamar seguro”. Obviamente, dificilmente este será o caso do Brasil, que ainda teima em manter cerca da metade da população no mercado informal e mais da metade percebendo menos do que dois salários mínimos. Pensar em um nível de segurança no qual possamos ficar tranqüilos em relação ao mercado parece piada em solo brasileiro, pois sequer temos uma sólida base de dados e estamos distantes de afirmar a diminuição da distribuição de renda.

Pode-se pensar mais longe, é da natureza do mercado não possuir pessoas seguras no campo econômico, ao mesmo tempo em que possui pessoas mais ou menos seguras e outras que passarão uma vida inteira sem saber o que é segurança. Neste caminho, não avançamos muito no que se entende por pobreza. Além do mais, em tempos de crise econômica poucos têm o privilégio de dizer que estão seguros e livres da indigência. Somam-se a isso, mais uma variante, haja vista que existem pobres que não acham que são indigentes e existem pessoas que estão longe da pobreza, mas preferem ser tratadas como tais. Este imbróglio é assim mesmo, piora quando alguns ficam a comparar o que possui com aqueles que nada têm a oferecer.

O fato é que a pobreza existe e várias vezes batem em nossa porta. É razoável e permissível um patamar seguro em relação as variantes do mercado. Acredito e percebo que realmente este patamar exista, mas ele é para poucos. Em torno deste nível se segurança, estão a história, as gerações, os privilégios e os direitos. Não é indigno ser (ou estar) pobre em país pobre, ou dito de outra forma, ficar próximo ou distante do patamar exigido para uma sobrevivência digna. Todavia, é vergonhoso e humilhante viver em um país relativamente rico e tampouco se aproximar do patamar apontado por Khanna. No caso do Brasil e dos países considerados “emergentes” (de onde tiraram isso?) não é difícil encontrar os que se esforçam por permanecer na linha de segurança. Pode ser que eles se escondam bem e nem falem do assunto, mas em geral, desde que me entendo por gente escuto pessoas reclamando de crises e mais crises. A falta de dinheiro não é exceção, é regra. A saúde, tal como o dinheiro, é para poucos. Em tempos de chuva, é mais do que perceptível que morar em lugar seguro também não é para qualquer um. O mesmo segue a educação de qualidade e o campo da segurança pública.

Como se vê a questão é complexa e a vulnerabilidade do conceito permite muitas divagações. O que acredito é que podemos, em larga medida, garantir um nível de segurança econômica para boa parte das pessoas. Infelizmente, jamais atingiremos a maioria sem uma profunda e revolucionária distribuição de renda. Por outro lado, não vamos deixar de ser pobres. O que muitos não desejam ver é que o sistema de mercado só existe na base da divisão desigual da riqueza e ele persiste somente assentado na exploração dos considerados mais pobres. Na verdade, o mercado só tem espaço no eterno clima de conflito entre opressores e oprimidos. Este fato não diminui a importância de um conceito que vai de lá para cá – “tal como o barquinho em dia de sol no mar” -, mas aponta para a certeza e onipotência das relações de opressão entre nós.