A DOUTRINA DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE

O Direito Agrário Brasileiro, tendo como lei básica o Estatuto da Terra, encontra seu embasamento na função social da propriedade, doutrina que tem sua gênese na sociologia.

Essa doutrina da "função social da propriedade" não tem outro fim senão o de dar sentido mais amplo ao conceito econômico de propriedade, encarando-a como uma riqueza que se destina à produção de bens que satisfaçam as necessidades sociais.

Para São Tomás de Aquino o conceito de propriedade privada é visto em três planos distintos na ordem de valores. Em um primeiro lugar, o homem: em razão de sua natureza específica (animal racional), tem um direito natural ao apossamento dos bens materiais. Num segundo, contempla o problema da apropriação dos bens, qual resulta, em última instância, no direito de propriedade propriamente dito. Por fim, num terceiro plano, São Tomás de Aquino permite o condicionamento da propriedade ao momento histórico de cada povo, desde que não se chegue ao extremo de negá-la.

As encíclicas papais, por sua vez, abordando questões sociais, enfocam o problema sob o prisma tomista. A autencidade cristã do direito de propriedade privada está reafirmado nas encíclicas "Rerum Novarum", de Lei XIII, e "Mater et Magistra", de João XXIII, embora não deixasse de se fazer menção ao condicionamento representado pelo bom uso da propriedade, como se vê, também, na "Quadragésimo Ano", de Pio XI.

"Ao direito de propriedade privada sobre os bens estará intrinscecamente inerente uma função social" (Mater et Magistra). A essa limitação do direito de propriedade, responde Francisco Vito com o argumento de que esse princípio "longe de enfraquecer o instituto da propriedade privada, reforça-o porque um regime em que ele satisfaz à função social, torna-o cada vez menos criticável em nome do princípio da justiça social." (Francisco Vito, "A Encíclica Mater et Magistra e a hodierna questão social.", trad. Brasileira, Edições Paulinas).

Pode-se sintetizar tudo na realização do bem comum, entendido como o bem da comunidade. Quer isso dizer que o Estado, ao ter como seu objetivo precípuo o bem comum, jamais deverá sacrificar nenhum dos direitos considerados fundamentais do ser humano.

Para Antônio C. Vivanco, a função social da propriedade representaria nada mais nada menos que o reconhecimento de todo titular do domínio, de que por ser um membro da comunidade tem direitos e obrigações com relação aos demais membros, de maneira que se ele pode chegar a ser titular do domínio, tem a obrigação de cumprir com o direito dos demais sujeitos, que consiste em não realizar ato algum que possa impedir ou obstaculizar o bem de ditos sujeitos, ou seja, da comunidade.

Ainda para Vivanco, em sua obra "Teoria del Derecho Agrário" , o direito à coisa se manifesta concretamente no poder de usá-la e usufruí-la. O dever que importa ou comporta a obrigação que se tem com os demais sujeitos se traduz na necessidade de cuidá-la a fim de que não perca sua capacidade produtiva e que produza frutos em benefício do titular e, indiretamente, para satisfação das necessidades dos demais sujeitos da comunidade.

Assim, para o agrarista argentino, o direito do titular implica o poder de usar livremente a coisa, porém por sua vez supõe o dever de utilizá-la de maneira que não se desnaturalize. Isso em razão de que sua capacidade produtiva interessa por igual a todos os sujeitos da comunidade e de que os elementos essenciais para a vida humana, como a alimentação, provêm de elementos agrários como a terra ou os animais.

Para Paulo Torminn Borges, em seu livro, "Institutos Básicos do Direito Agrário", a função social da terra é conceito que pode ser visto sob ângulos diferentes:

- "Alguns a consideram pelo prisma dos positivistas, como aconteceu no México, em 1917". - "Tal concepção põe o direito de propriedade excessivamente sob o arbítrio do Estado, que pode, inclusive, chegar ao ponto de devorá-lo." - "Melhor responde aos anseios do homem a concepção cristã, na linguagem tomista". - "De nossa parte, revelando convicção, entendemos que a legislação agrária brasileira optou por esta última diretriz, que está na linha de nossa tradição, toda ela embasada no cristianismo."

Concluindo, assevera Torminn Borges que no direito agrário, quanto ao imóvel rural, sentimos ser o direito de propriedade a faculdade que a pessoa tem de possuí-lo como próprio, com o dever correlato de utilizá-lo conforme o exigir o bem-estar da comunidade.

Lembra Washington de Barros Monteiro que entre os romanos, o exercício do direito de propriedade era subordinado às exigências do bem comum.

Ainda Washington de Barros, dando notícia histórica do direito de propriedade preleciona que: "Parece que a propriedade, nos primórdios da civilização, começou por ser coletiva, transformando-se, porém, paulatinamente, em propriedade individual. Trata-se, contudo, de ponto obscuro na história do direito e sobre o qual ainda não se disse a última palavra."

A "Declaração dos Povos da América" aprovada na reunião de 1961, em Punta del Este, de que se originou a Aliança para o Progresso, consagrou a limitação do direito da propriedade da terra, defendendo a realização de programas de reforma agrária integral tendente à efetiva transformação, onde for necessária, das estruturas e dos injustos sistemas de posse e exploração da terra.

O conceito de Duguit que se veio ampliando com o tempo, é de franca limitação ao direito de propriedade: A propriedade é protegida pelo direito, mas ela não é um direito, é uma coisa. Uma realidade econômica e não uma realidade jurídica. (Traté de Droit Const.)

No entender de J. Motta Maia, a subordinação do direito de propriedade à utilidade pública verifica-se em acelerada progressão por vários pretextos, seja pela necessidade de ordem social, seja por necessidades militares, construção de edifícios públicos, para garantir o exercício de certas profissões e outros.

Foi na Declaração dos Direitos do Homem, com a Revolução Francesa, que surgiu o princípio da desapropriação por utilidade pública, inserta na Constituição de 1791 e no Código de Napoleão."

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, conquista jurídica da vitória das potências democráticas contra os países de regime autoritário, nazista ou fascista, aprovada a 10 de dezembro de 1948, por iniciativa da ONU, estabelece em seu artigo XVII:

1 - Toda a pessoa tem direito à propriedade, individual e coletivamente.

2 - Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.

A desapropriação por interesse social resulta, é bem de ver, do conceito de função social da propriedade, inserta em constituições modernas, depois da segunda guerra mundial, a mais assinalada delas, a Constituição de Weimar (Alemanha) de 1.919.

Essa função social da propriedade já fora assinalada por Augusto Comte, antes mesmo dos juristas franceses que melhor sustentaram essa teoria, ao condenar os abusos do sistema capitalista de propriedade e ao mesmo tempo as doutrinas socialistas consideradas por ele como utopias ou extravagâncias." (Augusto Comte in "Systeme de Politique Positive" 1851/1854 - Paris).

A função social da terra foi admiravelmente definida por Leon Duguit, ao sustentar que a propriedade não é um direito mas uma função social. O proprietário ou possuidor da riqueza é vinculado a uma função ou dever social. Enquanto ele, detentor da propriedade, cumpre essa missão, seus atos devem ser protegidos. Não o cumprindo ou cumprindo mal ou de forma imperfeita; se não a cultiva ou deixa que sua propriedade se arruine, torna legítima a intervenção do poder público para compeli-lo ao cumprimento de sua função social de proprietário, consiste em assegurar a utilização da riqueza conforme o seu destino. (in "Las Transformaciones generales del Derecho Privado desde el Condigo de Napoleón", trad. Castelhana, Edit, Francisco Beltrán, Buenos Aires).

"...a função social da terra comporta duas concepções opostas sob a invocação do mesmo objetivo: a concepção democrática que defende a reforma agrária pelos meios pacíficos; e a concepção marxista ou marxista-leninista que, em nome do mesmo princípio, propugna pela expropriação pura e simples. Sob tal ponto de vista, vale registrar que as diversas concepções ditam igual número de soluções para a posse da terra: a solução democrática, ou a mais acolhida para os países ocidentais, que considera a função social da propriedade privada, conquanto sujeita à limitações que estabelece com o objetivo de preservar o direito de propriedade, em oposição às concepções socialistas; a solução marxista que considera a terra propriedade do Estado, e que inspirou a reforma russa e a do Código Agrário da China, em 1950, chamada marxista-liberal, porque assegura a propriedade da terra pelos camponeses. Parece ser esta também a solução adotada pela Iugoslávia. A reforma egípcia é um meio termo entre as duas concepções, predominando nesta, certas concessões ao direito individual."

Do exposto, conclui-se que a doutrina da função social da propriedade da terra, motivadora do "Estatuto da Terra" inspirou-se, basicamente, na concepção tomista (doutrina de São Tomás de Aquino), nitidamente democrática, visando o bem comum, sem sacrifício dos direitos fundamentais do homem.

Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas
Enviado por Marco Aurélio Bicalho de Abreu Chagas em 10/01/2005
Código do texto: T1378