“O jardineiro fiel", drama, suspense e denúncia social
“O jardineiro fiel”,
drama, suspense e denúncia social
Terezinha Pereira
Em maio de 2002, dentro de uma sala de aula, ouvi um depoimento de um aluno, que havia sido convidado pela turma para falar dos costumes, da geografia e do povo de Guiné-Bissau, país cuja língua oficial é o português. Este jovem de Guiné-Bissau faz parte de um grupo de estudantes que participam de um projeto de intercâmbio da UFMG com países da África. No início de sua fala, ele comentou sobre o regime ditatorial que ainda domina em diversos países africanos, das lutas entre as tribos de nativos que moram em cada país, cada uma falando uma língua. Estas tribos, em geral, não se entendem, não apenas por causa da diversidade de língua, mas principalmente por causa da corrupção patrocinada pelas grandes potências estrangeiras. Segundo ele, existe lá uma corrupção tão arraigada e poderosa, que corrói toda esperança de uma vida mais digna para os habitantes do continente, no presente e no futuro.
Em determinado momento, a fala dele, antes serena, tornou-se tensa e mais baixa, como se revelasse um segredo, com medo de ser ouvido. Ele comentou sobre a AIDS na África. Disse ele que lá, entre as pessoas que têm o privilégio de poder estudar na escola de segundo grau e mesmo na faculdade, era tido como certo de que o vírus HIV havia sido introduzido na África pelos grandes laboratórios americanos, para que os remédios contra essa doença pudessem ser testados com baixo custo financeiro. Alguns dizem que, as primeiras experimentações com o vírus foram feitas em macacos. Acontece que lá, alguns povos se alimentam de carne de macaco, daí a disseminação do vírus pelo continente inteiro. Afinal, o povo africano é extremamente pobre, sem instrução e sem voz, que vive sob o jugo do poder econômico estrangeiro, uma vez que os chefes de tribos e dos governos oficiais de Estado trocam qualquer empreendimento ou benefício que vem de fora por um carro luxuoso ou mesmo valores vultuosos para a própria conta bancária. A respeito do uso experimental de medicamentos, ele falou que esses são testados nas pessoas doentes, sem a mínima preocupação com os possíveis efeitos colaterais. Ele chegou a dizer que há uma estimativa de que, nos países africanos, morrem mais pessoas por mês do que a quantidade de pessoas que morreram no ataque às torres nos Estados Unidos em 2001 e que estas mortes, quase em sua maioria, são causadas pela AIDS e por doenças decorrentes e também por causa do efeito paralelo dos diversos medicamentos usados para testes. Nem preciso dizer que, no final deste depoimento, a sala inteira ficou muda, professores e alunos apavorados. Ouvir alguns rumores a respeito de coisa tão abominável através da imprensa, poderia nos deixar imaginando que talvez não fosse verdade. Porém, ouvir de alguém que vive no meio do problema foi de arrepiar!
Ontem vi um filme que me impressionou. Trata-se de “O jardineiro fiel”. Primeiro gostaria de falar sobre a qualidade visual e estética deste filme inglês, dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. É um filme muito bem conduzido em uma estrutura não linear, que sustenta o estado de tensão da narrativa durante todo o desenrolar da drama. Tem como cenário alguns pontos da África, em especial, o Quênia. A fotografia, em cores fortes, é belíssima como também é belíssima a música. Se eu fosse um crítico de cinema, teria as palavras adequadas para fazer um comentário digno da grandiosidade desta fita. Com o pouco que entendo, posso dizer que este filme é uma emocionante e trágica história de amor, com final nada feliz. Ao mesmo tempo, é um filme de suspense e também é quase um documentário de denúncia social, que mostra, de maneira contundente, a condição de vida de um continente em que seu povo é submetido a todo tipo de abuso pelas grandes potências do mundo: doenças, falta de comida e de condições mínimas de higiene, falta de educação escolar, de meios de comunicação e transportes, enfim, uma falta de tudo e ainda serve de cobaia para experimentos científicos. No Quênia, o tema AIDS tornou-se uma doença comum e lá não existe ninguém que não tenha um caso desta doença na família. Na trama deste filme é mostrado que testes ilegais de um medicamento contra tuberculose estavam sendo realizados por uma empresa farmacêutica com africanos portadores do vírus HIV, sem o conhecimento dos mesmos. E, lógico, com a conivência dos governos queniano e britânico que não exercem nenhum tipo de fiscalização nas empresas estrangeiras. O que muito me impressionou foi a maneira crua e sem embaraços, pela qual foi demonstrada a ação da indústria farmacêutica no continente africano. Uma frase dita em dado momento do filme, quando alguém tenta “justificar” a razão das ações da indústria farmacêutica, não sai de meu pensamento: “é que de uma forma ou de outra, aquelas pessoas morreriam de todo jeito”! Pode? E o pior, além desses poderosos organismos atuarem corrompendo as autoridades, não levando em consideração a vida daqueles seres humanos, ainda se ocupam em destruir ou assassinar cada pessoa que se propõe a lutar para revelar verdades. Não vou contar mais do filme. Porém, quero dizer, que enquanto assistia ao filme, a imagem do estudante africano que havia contado sobre como os países africanos são usados, explorados e desrespeitados pelas grandes potências, foi surgindo no rosto de cada personagem, de cada figurante do filme. Tudo aquilo que ele havia dito em maio de 2002, vi repetido na tela, com cores e movimentos. A única diferença é que, no filme, fala-se de laboratório britânicos e não há uma afirmação clara de que o vírus HIV foi introduzido lá, propositalmente. Contudo, deixa bem evidente que os africanos servem de cobaia para testes de medicamentos novos justamente pela razão de que experiências em laboratórios são altamente dispendiosas e quando feitas em pessoas carentes de bens e de voz são de custo muito baixo. É. “Com tanta pobreza, tanta falta de higiene,tanta falta de tudo, aquelas pessoas morreriam de todo jeito........”