1968... UM EPISÓDIO OBSCURO
Você já ouviu falar do capitão paraquedista Sérgio Ribeiro Miranda de Carvalho, um militar considerado sem motivação ideológica ou partido político?
Se já ouviu, muito provavelmente não deve se lembrar quem foi ele e da importância que teve na história do Brasil, principalmente na história do Rio de Janeiro naquele ano histórico de 1968.
O ato do capitão Sérgio levou o lendário brigadeiro de linha moderada Eduardo Gomes a escrever uma carta ao ex-presidente Ernesto Geisel dizendo: “O capitão Sérgio tem o mérito de haver-se oposto ao plano diabólico e hediondo do brigadeiro João Paulo Burnier, que, em síntese, se consumaria através da execução de atos de terrorismo”. Em outra ocasião escreveu: “Foi a admirável ação de um simples capitão, verdadeiramente inspirado por Deus, que evitou outros rumos para a história do Brasil”.
Se houve um ano em que a violência militar explodiu no Rio de Janeiro, este ano foi 1968. Manifestações, passeatas estudantis, envolvimento de artistas, padres e intelectuais, prisões, assassinatos, revolta popular, torturas psicológicas, chantagens e tudo de ruim que se possa imaginar. O Rio tornou-se uma cidade sitiada na época do governo militar de Arthur da Costa e Silva, de 1967 a 1969. Não vou me aprofundar no que significou o seu governo para o país, pois tudo leva a crer que o episódio que inspira este texto aconteceu sem o seu conhecimento prévio. E um dos motivos para que eu acredite nisso foi o fato de um de nossos personagens, o brigadeiro Burnier, ter-se referido a ele como “Bosta e Silva”, justamente num dos momentos em que transcorriam os planos para que se concretizasse o episódio em questão.
Os principais envolvidos na ação seriam os pára-quedistas de uma unidade da Aeronáutica conhecida como Para-Sar, especializada em socorro e salvamento, principalmente na selva. O plano engendrado por alguns oficiais da própria Aeronáutica, além de outras ações, previa o sequestro de pelo menos quarenta líderes políticos, que seriam lançados de avião a quarenta quilômetros da costa, em pleno oceano. A denúncia teria sido feita no dia 1 de outubro, na Câmara, pelo deputado pernambucano do MDB, Maurílio Ferreira Lima.
Outra denúncia, essa do jornal carioca “Correio da Manhã”, dizia que no dia 4 de abril o Para-Sar já havia sido convocado a participar no trabalho de cobertura da “Operação Mata Estudante”, sem o conhecimento da Diretoria de Rotas Aéreas, comandada pelo major-brigadeiro Itamar Rocha. Estavam à paisana e sem identificação, porém todos armados. O jornalista Pery Cotta assinava a matéria, o que posteriormente lhe custaria uma prisão.
Além disso, a operação previa também a explosão de um gasômetro no início da avenida Brasil, às 18 horas – hora do rush – causando a morte estimada de 100 mil pessoas, além da destruição de uma represa. Estava assim começando a ser desvendado naquele início de outubro de 1968, um dos mais sinistros e diabólicos planos terroristas da nossa história contemporânea. E a responsabilidade por todos os atentados seria atribuída aos comunistas.
O ponto alto dessa peça de horror aconteceu às 13 horas do dia 14 de junho, em uma reunião realizada no prédio do então Ministério da Aeronáutica, no Rio. No centro da questão, o brigadeiro João Paulo Burnier, chefe de gabinete do ministro da Aeronáutica.
Ele informava aos presentes (mais de quarenta pessoas) quais seriam as novas funções do Para-Sar. E entre essas novas funções constava que, mesmo no caso de paz, mas em agitações de rua, o Para-Sar deveria eliminar os indesejáveis. E, entre outras atribuições grotescas, aquela que mais revoltou o capitão Sérgio: elementos indesejáveis seriam lançados ao mar, de navio, ou avião, a quarenta quilômetros da costa.
Ao final de sua explanação, Burnier dirigiu-se a alguns oficiais puxa-sacos (para não dizer canalhas) perguntando-lhes se estavam de acordo. Todos concordaram plenamente com o brigadeiro, menos capitão Sérgio. Na sua vez, respondeu olhando fixamente para Burnier: “Não concordo com essa hipótese, que considero imoral, inadmissível a um militar de carreira. Enquanto eu estiver vivo isso não acontecerá neste país”. Burnier, ensandecido, ordenou a capitão Sérgio que não se estendesse em considerações e que calasse a boca. Este lhe respondeu no mesmo tom de voz: “Não me calo e o ministro será sabedor desses fatos”.
O ministro da Aeronáutica era o brigadeiro Délio Jardim de Matos, do qual o capitão Sérgio havia sido assessor durante cinco anos. Ao saber do ocorrido pelo próprio capitão, o ministro declarou:
― Isso é muito grave. Só um homem pode segurar esse abacaxi: o velho Eduardo Gomes (brigadeiro).
O capitão Sérgio havia feito um relatório sobre a reunião de 14 de junho e todos os participantes – membros do Para-Sar – tiveram que responder a um interrogatório sobre a tal reunião. E, dos 41 participantes, 37 confirmaram a versão do capitão. Eduardo Gomes pediu imediatamente a abertura de uma sindicância.
Dois dias antes dessa reunião, portanto em 12 de junho, o capitão Sérgio havia sido convocado pelo brigadeiro Burnier a participar de um encontro no gabinete do ministro da Aeronáutica, onde também estava presente o brigadeiro Hipólito Costa.
A coisa era tão suja e tão deprimente que Burnier começou a conversa falando com capitão Sérgio sobre as quatro medalhas por bravura que lhe foram concedidas, e pedindo sua confirmação. E ele, aos 37 anos, já havia mesmo recebido as quatro medalhas, principalmente pelo seu trabalho nas selvas, pacificando tribos e salvando índios. Esse seu trabalho fez dele uma lenda viva dentro do próprio Para-Sar.
Foi quando se chegou ao limite máximo das barbaridades desse plano de horror. Após o capitão Sérgio ter confirmado com um simples “Sim” que já recebera quatro medalhas, Burnier lhe disse com a maior naturalidade:
― Pois a quinta, quem vai colocar no seu peito sou eu.
Foi nesse instante que Burnier perguntou ao capitão Sérgio quantas pessoas morreriam se o gasômetro explodisse às 18 horas. Diante da resposta do capitão – em torno de 100 mil pessoas – veio o patético e terrível comentário do brigadeiro Burnier:
― É, vale a pena para livrar o Brasil do comunismo.
Toda a ação ocorreria na forma de pequenos incidentes prévios até culminar com a explosão fatídica do gasômetro da avenida Brasil. E, como o ato seria atribuído aos comunistas, o capitão Sérgio, além de ser o responsável pela colocação dos explosivos de efeito retardado, surgiria depois da tragédia comandando a equipe de socorro e resgate, tal qual um herói – um herói que iria fazer por merecer uma quinta medalha de bravura.
Burnier continuava divagando sobre o assunto dizendo aos berros:
― Olha Sérgio, eu e o Hipólito aqui vamos pilotar um avião cheio desses comunistas e empurrar todos com um pé na bunda pra dentro d’água. E complementava: “eu queria saber se o cara morre quando bate na água pelo choque ou quando ainda está caindo”.
Sabe-se que cinco personalidades já estavam escolhidas para fazerem parte desse primeiro vôo da morte: Carlos Lacerda, Jânio Quadros, Juscelino Kubitschek, D. Hélder Câmara e o general Olympio Mourão Filho. Os demais seriam anunciados de cinco em cinco.
Diante de tantos absurdos, o capitão Sérgio comentou:
― Brigadeiro, eu acho que os senhores não estão falando a sério. O que torna uma missão legal e moral não é a presença de dois oficiais-generais à frente dela, o que a torna legal é a natureza da missão.
Depois desse encontro foi marcada a tal reunião de 14 de junho de 1968, onde estariam presentes cabos, sargentos e oficiais do Para-Sar, quando seria oficializada a ação assassina dos militares, e na qual aconteceu o “não” do capitão Sérgio.
As consequências para esse militar que disse não à insensatez foram duras. Foi transferido para o Recife, e, após ser julgado e absolvido pelo Superior Tribunal Militar, o capitão Sérgio recusou a anistia que lhe ofereceram, com a mais lógica das justificativas:
― Anistia é concedida a quem cometeu uma falta. Eu não posso ser anistiado pelo crime que evitei.
Quando, em 1970, necessitou de um tratamento da coluna, foi aconselhado a não se internar em um hospital militar de nenhuma das três armas. Sua vida não valeria 10 centavos, disse-lhe um médico da Aeronáutica. Acabou sendo tratado no hospital Miguel Couto, no Rio, com a ajuda – inclusive financeira – de amigos.
Foi chamado de louco por seus inimigos e o brigadeiro Burnier chegou a declarar em 1978 que “tudo não passou de fantasia desse rapaz, tanto que não fui punido” (sic). Além de não ter sido punido pelos seus pares, entrou para a história pela porta dos fundos, como um assassino e emérito torturador do regime militar.
Escrevi este texto movido por um imenso desejo de mostrar à geração de hoje o que a geração de 1968 passou para que se conseguisse chegar à democracia neste país. Parte dessa geração morreu de forma violenta, lutando por ideais verdadeiros, para que hoje tivéssemos um país livre – cheio de problemas e injustiças, é verdade – mas, pelo menos, livre.
Naquele momento em que pessoas insanas ameaçaram fazer do horror algo normal, esse militar estranho no ninho tinha mesmo que ser chamado de louco. E, com muita emoção, eu digo que foi graças ao seu “não” que hoje conto essa história livremente e sem receio, como se tudo não tivesse sido apenas um grande pesadelo na vida de todos nós.
O capitão Sérgio sabia que a sua guerra seria uma guerra perdida e as consequências viriam a galope. Mas, ao recusar a sua quinta medalha de bravura, oferecida por um brigadeiro totalmente insano, o capitão Sérgio tornou-se um herói solitário, um herói ético. Um homem que sempre teve a consciência em paz consigo mesmo e com todos aqueles que não perderam a vida graças à sua honrada atitude naquele ano de 1968.
O Brasil e, principalmente o Rio de Janeiro, lhe agradecem, capitão.
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Fontes de consulta:
Livro “1968 – O ano que não terminou” de Zuenir Ventura – Editora Planeta
Arquivo pessoal do autor do texto