QUANDO OS NEURÔNIOS MORREM
Quando as mulheres dos espelhos apareceram, em 2003, a costureira aposentada Edilma de Souza, ficou ainda mais agitada. Muito aflita, ela pedia ajuda à filha, Dione Sampaio. Queria abraçar a mulher do espelho da sala, mas não coseguia. Já a mulher do espelho do banheiro era uma antipatia atroz. " Não gosto dessa camarada, não. Mande ela parar de olhar para mim", resmungava Edilma. A mulher do espelho do quarto, no entanto, era a que lhe causava maior sofrimento. Vaidosíssima até ter ceifada a sua saúde mental, Edilma queria presenteá-la com os sapatos, colares, brincos e pulseiras colecionados ao longo da vida, mas a mulher do espelho se recusava a aceitá-los.
"Por que ela não quer os meus presentes? Ela não gosta de mim?", chorava. Aquelas três mulheres não eram uma alucinação, mas o reflexo dela própria, Edilma, nos diferentes espelhos da casa. Vítima da doença de Alzheimer, ela já não se reconhecia mais. Para aplacar a angústia da mãe, Dione se fez passar pela mulher do espelho do quarto, aceitou os mimos que lhe eram oferecidos e se despediu para sempre. Todos os espelhos da casa foram, então, guardados. Seis anos depois, eles estão de volta aos seus lugares. É que o Alzheimer de Edilma, hoje com 84 anos, se encontra em estado tão avançado, que a alienou completamente do mundo e de si mesma. "Ela é minha mãe, mas eu não sou sua filha", diz Dione. "Ela existe para mim, mas eu não existo para ela." Na realidade, ninguém existe para Edilma, nem ela própria...
Principal causa de demência em pessoas com mais de 60 anos, a doença de Alzheimer afeta 20 milhões de pessoas em todo o mundo, 1 milhão delas no Brasil. O mal foi descrito pela primeira vez em 1906, pelo neuropatologista alemão Alois Alzheimer, mas não despertou muito a atenção de seus colegas médicos. Isso porque, na época, as vítimas da doença eram raras. Foi com o aumento da expectativa de vida que os casos de Alzheimer proliferaram, tornando dramas como o de Edilma, apresentado em nossa construção textual, mais comuns.
Poucas doenças são tão cruéis. No início, ela assume características que tendem a ser confundidas com o processo natural de envelhecimento, confusões de memória, alterações sutis de comportamento e dificuldade de expressão...Na medida em que avança, os neurônios morrem, levando embora datas, nomes, rostos e lembranças. É como se as luzes de uma cidade fossem se apagando gradativamente, até a escuridão total...
O mesmo drama visitou a minha casa. Tive a destinação de presenciar os afloramentos de demência na minha querida mãezinha, desde suas primeiras reações sutis, até o domínio do impiedoso nada absoluto...Meus dias já não eram os mesmos, pois aquele ser gracioso que me acompanhara durante anos no seio familiar, despedia-se de mim aos poucos, dando lugar a um sofrimento inexplicável, e a um silêncio profundo...Para mim e para meu velho, uma sequência existencial de soluços, dificuldades e lágrimas incontestáveis...
Mas a vida caminha de várias formas e em diversos sentidos, fazendo dela própria, um complexo de infinitos destinos....