Samba enredo: Glória e agonia de uma arte popular.
Os primeiros desfiles das escolas de samba ocorreram ainda no final dos idos anos 1920, quando o cinema ainda não era falado, os aviões começavam a alçar mais e mais vôos, o mundo ainda era basicamente rural e as cidades iam pouco a pouco tomando vultos inesperados.
Naqueles primeiros desfiles as escolas de samba eram na verdade pequenos agrupamentos que tinham muito mais a função de divertir seus integrantes do que exatamente lutar por títulos e colocações. É certo que pouco a pouco a existência daquelas agremiações passou a ter também um significado político de valorização e aceitação do samba e conseqüentemente da cultura negra então ainda amplamente segregada.
No bojo das transformações ocorridas no país na década de 1930, deu-se então a oficialização das escolas de samba e o primeiro grande momento de controle sobre aquela manifestação cultural popular. Em seu movimento de controlar a tudo e a todos o Estado Novo fez surgir a regra de que as escolas de samba cantassem a História do Brasil, o que naturalmente foi feito com toda a pompa, circunstância, grandiloqüência e exaltação que a época pedia. Findo o Estado Novo, o samba enredo continuou a cantar a História do Brasil, sempre do chamado ponto de vista oficial como não poderia deixar de ser. E assim, como dizia o bolero, se passaram dez anos e mais dez anos e ao final da década de 1950 e começo da seguinte, intelectuais progressistas entenderam que era a hora de o samba se ilustrar e passar a cantar a História de uma forma crítica e verdadeira.
Um fato que se destaca tanto no chamado samba enredo de exaltação pura e simples como naquele de uma visão, digamos assim, mais crítica, é que em ambos os casos grandes sambas enredos foram cantados, e quem atualmente já teve a sorte de ouvir um samba enredo como “Legados de D. João VI”, por exemplo, da Portela, ou então, “Chico Rei”, do Salgueiro, este já na linha da História crítica, há de se encantar com a beleza musical de ambos, com pleno domínio do ritmo, onde o texto segue a vitalidade da melodia e cada frase é um toque de atabaque ou de pandeiro.
Portanto, em ambos os casos citados, a força telúrica do samba predominava e o que para muitos era alienação, crença essa que ficou caricaturada na figura do “crioulo doido” do samba de Sérgio Porto, era na verdade a força viva da cultura popular, utilizando o material disponível para criar alegorias, no caso, musicais, carnavalizando a História oficial com uma força anárquica impensável para muitos.
O tempo passou nas janelas, nas ruas, nas cidades e o samba enredo mudou. Na verdade as escolas de samba e os próprios desfiles mudaram evidentemente, como tudo o mais na aglomeração urbana, seguindo um processo de aceleração. É interessante notar que na segunda metade da década de 1970 muitos sambistas e críticos diziam que o samba enredo morrera devido a esse processo de aceleração, virando marchas, e que as escolas tinham acabado junto com ele. Ironicamente, quando se escuta um disco com os sambas enredo do ano de 1975, por exemplo, nos surpreendemos com a qualidade e a malemolência daqueles sambas. Na verdade, na época ninguém podia imaginar a quanta a coisa toda ainda podia ir.
Agora que o carnaval de 2009 se aproxima podemos finalmente, talvez para gáudio de muitos, constatar que o samba enredo vive seu momento de agonia. Exatamente no instante em que o desfile das escolas de samba se encontra no auge de sua popularidade sendo o ponto central do carnaval carioca, vê-se que a trilha sonora do grande espetáculo está em seus estertores. Nos últimos cinco ou seis anos as escolas de samba se definiram cada qual por seu lado, por uma determinada linha melódica e rítmica e dentro delas os sambas são construídos muitas das vezes com utilização de frases inteiras de outros sambas, versos copiados e reaproveitados. Os enredos por sua vez, são cada vez mais “geniais” e dentro da doce concepção de um cientista louco vai deixando revelar cada vez mais franksteins e monstros horrendos que são saudados pelos entendidos como obras fabulosas.
As frases melódicas e textuais dos sambas enredos se repetem, as colagens se sucedem e muitas das vezes se chega ao final da audição sem se saber sobre o que se estava querendo falar ou narrar. Mas isso pouco importa, o que vale mesmo é que os carnavalescos e os coreógrafos possam mostrar livremente suas criatividades e delírios. E o samba enredo, ora o samba enredo, quem é que precisa disso? O que importa para eles é que os passos marcados das coreografias, o luxo das alegorias, o delírio das plumas e a pintura dos destaques estejam nas telas das TVs depois da novela, entre um comercial e outro.
Dessa forma, de degrau em degrau, o samba enredo desce aos infernos, e quase já não serve párea se sambar, porque quase já não se samba mais durante um desfile, seguem-se os passos ditados pela coreografia marcada e demarcada. Daqui pra frente, o que virá? Não há bola de cristal capaz de dizer. Vítima da própria grandiloqüência as escolas de samba seguem abrilhantando a festa e gerando lucros. Mas a arte popular que as originou está cada vez mais distante especialmente porque não há liberdade para os artistas populares criarem a não ser aquilo que os que comandam dizem que é para criar. Haverá outro caminho?
Em meados dos anos 1970 o sambista Candeia e outros fundaram o Grêmio Recreativo de Arte Negra Quilombos que era para ser uma força de resistência. Mas a idéia não vingou como queriam os seus criadores. Diante desse quadro resta invocar a sabedoria do sambista Nelson Sargento que diz que o “samba, agoniza, mas não morre”, e torcer para que num futuro mais próximo ou menos distante essa genuína arte popular de contar histórias através de sambas que ficou conhecida como samba enredo possa de novo embalar as brincadeiras de rua em desfiles em que não prevaleça mais a obrigação da vitória ou o lucro dos patrocinadores, mas sim o mais puro prazer de brincar e ser feliz cantando e sambando.
Paulo Luna