Apesar de tudo
 
Há um poema de Jacques Prévert, um dos mais expressivos nomes da poesia francesa contemporânea, em que ele diz: “Pai nosso que estás no céu / Permanecei lá / Que nós ficaremos pela Terra / Que algumas vezes é tão bela.../ Com os bens meninos e os caras maus / Com todas essas maravilhas do mundo / Que estão aqui / Na terra, simplesmente / De graça para todo o mundo.../ Com as estações / Com os anos / Com as belas moças e com os velhos chatos / Com a palha da miséria apodrecendo no aço dos canhões...”
Apesar de tudo, como é maravilhoso estar vivo! Esta frase me parece ser a mais sintética e eloqüente tradução do poema de Prévert, que representa um foco de luz sobre nossas própria vidas, no sentido de torná-las menos amargas e mais construtivas.
O que o poeta sugere não é a negação de Deus, de Sua hipótese e de Seu mundo metafísico, mas a valorização de nossa própria existência, física e espiritual, atributos das criaturas que somos, criadas à Sua imagem e semelhança. Sugere, ainda, a valorização do mundo cósmico em que nos inserimos, como seres e como elementos componentes desse mesmo mundo, partículas vivas de um universo em constante movimento, emergente como a nossa própria espécie de vida, que convencionamos chamar de humana.
O mundo de nossa existência temporal é nossa realidade mais objetiva e plausível, mais emocionalmente plena de carga efetiva, porque nele exercemos a parcela de nossa vida. A vida terrena é, essencialmente, sensorial; é matéria e faculdades da matéria. É espírito, capaz de elevar-se a Deus, pelo sentimento do amor e pela percepção dos mistérios da vida que reina em torno de nós, e de nossos sentidos.
O mundo de Deus é essencialmente metafísico. É a antimatéria, a libertação definitiva do tempo, das formas e das propriedades materiais.
“O que será mais nobre para o espírito? Sofrer as pedradas e as flechadas do infortúnio ou tomar armas contra o mar de aborrecimentos, e exterminá-los por oposição?” Ser ou não ser, eis a questão. Foi esse o drama do Hamlet de Shakespeare. É esse o drama dos Hamlet em que nos transformamos, sempre que mergulhamos na dúvida, a perscrutar os mistérios insondáveis de Deus e as agruras de nossa vida temporal.
A manhã que amanhece sobre os enfermos, nos leitos dos hospitais, nos casebres, nas ruas, é a mesma manhã que amanhece sobre as crianças sadias, a caminho das escolas, e amanhece sobre os jardins, e faz desabrochar as flores e cantar os pássaros, com os mesmos raios de luz, ou os mesmos pingos de chuva.
Do mesmo modo é a chuva, a chuva fina que cai no telhado e que, segundo a canção religiosa, é cantiga de ninar, para os ricos. Mas, para o pobre vai entrando em seu barraco e faz lama pelo chão. Do mesmo modo é o vento que assobia, noturna melodia para os que moram em casas bem construídas. Mas que, ao pobre, vai, maldosamente, lhe desmanchando o barracão.    
A mesma escuridão noturna, pontilhada de estrelas, encobre as favelas e as mansões. E o mesmo clarão da lua, projeta sombras sobre todas as raças e todos os povos, e sobre toda sorte do que é vivo e se move, do que inanimado e se queda, diante de nós, com suas formas mudas e estáticas, mas que é natureza e compõe o nosso mundo.
A vida, então, é o conceito que dela fazemos; o que podemos erguer como nossos pensamentos, sonhos e esperanças, mas, especialmente, com nossas ações e atitudes construtivas, solidárias e fraternas.
Por mais dura que seja a vida, ela é a nossa única e mais cara verdade, o mais precioso bem que possuímos; o bem inalienável que nos atribui que nos atribui nossa própria identidade, condição sem a qual não existe o amor nem o ódio, nenhum paradoxo, nenhuma hipótese e nenhuma tese. Sem ela não existe ser humano. Sem ser humano não existe sociedade. Sem sociedade não há história. Sem história não há presente, nem futuro. Sem futuro, não há eternidade.
Como é maravilhoso, portanto, estar vivo. Poder refletir sobre as coisas que nos cercam, os problemas que nos afligem, as emoções que nos compensam; poder sorrir, chorar, sentir a beleza das grandes e das pequenas maravilhas que a vida põe diante de nós; especialmente, provar o gosto agre-doce do amor, e ver um dia suceder ao outro, cheio mudanças e alimentos, para a ansiedade de nossas almas.
Este é o nosso reino. O reino das virtudes e dos pecados, o reino dos nossos prazeres, da nossa felicidade fugidia, dos nossos afagos e dos nossos afetos; o reino temporal das almas apascentadas e das almas aflitas, mas, sobretudo, o reino da razão e da emoção de nossos corpos e mentes.
“Pai nosso que estás no céu / Permanecei lá / Que nós ficaremos pela Terra / Que algumas vezes é tão bela...”
Amar a cidade é tentar compreender a beleza que há em todas as coisas, mesmo aquelas mais dramáticas e sombrias, mas que existem como criações Divinas. É preciso amar a cidade.

Ivan Sarney
Enviado por Ivan Sarney em 01/01/2009
Reeditado em 01/01/2009
Código do texto: T1362229
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