UM SONETO PARA MACHADO DE ASSIS

Muitas homenagens têm marcado o centenário da morte de Machado de Assis. Consagrado como titã da literatura brasileira, o seu reconhecimento transpõe fronteiras, de modo a figurar entre os melhores da literatura mundial. Pelo menos essa é a impressão da escritora e crítica americana Helen Caldwell que traduziu Dom Casmurro para o inglês. Em 1960, ela publicou um tratado sobre essa obra machadiana comparando-a a Otelo, de Shakespeare. O livro The Brazilian Othello of Machado de Assis, a Study of Dom Casmurro traça um paralelo entre a tragédia e o romance, realçando as semelhanças entre as duas obras e os seus personagens. A análise de Caldwell surpreende, entre outras coisas, pela reabilitação de Capitu. De traidora infiel, como era vista até então por leitores e críticos, ela se torna vítima injustiçada do ciúme doentio de Bentinho.

Deixando de lado essa polêmica, quero apenas retomar o Capítulo 55 de Dom Casmurro que se intitula O Soneto. Aqui o personagem Bentinho, à época seminarista, nos conta as dificuldades encontradas para compor um soneto com o qual esperava estrear no gênero poético. Em noite insone, rolava na cama enquanto dava asas à imaginação até que o primeiro verso lhe veio à mente:

Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura!

Satisfeito, procurou decorar o verso repetindo-o em voz baixa por várias vezes. Mas logo surgiu uma dúvida crucial: a flor que imaginava era Capitu, naturalmente, mas a metáfora cabia também em outros conceitos tais como: virtude, religião e a própria poesia. Imerso em lucubrações, imaginou como dar forma aos demais versos. Achou melhor partir para o último verso que deveria ser contundente, de modo a fechar com chave de ouro o soneto. Depois de muito esforço, sentenciou:

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

Era um verso brilhante. Soava muito bem e estaria próximo da perfeição. Só tinha um problema: como parecia mais apropriado para fechar uma composição épica do que lírica, dificilmente ele conseguiria compor os 12 versos restantes na intenção de Capitu. Veio-lhe, então, a idéia de inspirar-se na justiça, na liberdade ou quem sabe no patriotismo. Não saia nada. Por último fixou-se, em vão, na maior das virtudes, a caridade. Frustradas as tentativas, Bentinho, cansado, desiste de vez do soneto. Resolve doar os dois versos “ao primeiro desocupado que os quiser”. E completa: “ao domingo, ou se estiver chovendo, ou na roça, em qualquer ocasião de lazer pode tentar ver se o soneto sai. Tudo é dar-lhe uma idéia e encher o centro que falta”.

Agradecido, arvorei-me a ser um desses “desocupados” e tentei completar os 12 versos faltantes. Meu esforço resultou em duas versões com diferentes significados para a metáfora da flor: Soneto para Capitu e Poética. Na verdade, fui estimulado por um Concurso da Editora Litteris que terminou selecionando Poética para compor junto com outros poetas vestidos na pele de Bentinho, o volume Um soneto para Machado de Assis (no prelo). Quanto ao Soneto para Capitu, que por sinal foi a minha opção preferencial nesse exercício, reservei-o para Reflexos. A mitologia grega ajudou-me a compô-lo, inspirado no amor impossível de Ártemis, a mais casta das deusas do Olimpo, pelo o jovem Orion.

SONETO PARA CAPITU

Oh! Flor do céu! Oh! Flor cândida e pura!

Por que não desabrochas para a vida

Que te acena com a suprema ventura

De provar da paixão não reprimida?

Por que foges aos apelos do amor,

Guardando tua pureza em pedestal

Como Ártemis cercada de esplendor

Infensa ao galanteio de um mortal?

Vem banhar-te nas águas do meu mar

Oh! Deusa flor! De teu amor me valha!

Senão flecha-me o peito a trespassar

Pra que eu morra como Orion, sem mortalha.

Constelação, no céu, hei de brilhar.

Perde-se a vida, ganha-se a batalha!

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Publicado originalmente na revista literária Reflexos de Universos, Nº 78, dezembro de 2008 p. 17-20