Nós, os outros e os poderes
Existe uma mística sobre o poder que fascina, enlouquece, envaidece, atrai e expulsa. A mídia (referente ao poder) é tratada quase como entidade espiritual, além de nosso alcance, inatingível e imutável. Governos, Estados, Igrejas e Religiões assemelham-se à mídia. Contudo: o que é poder? Segundo Aurélio, poder (substantivo) significa: direito de deliberar, agir e mandar; vigor, potência; domínio, força; eficácia, efeito; capacidade; autoridade constituída, governo; função do Estado exercida pelos órgãos competentes.
Uma pessoa pode ter “poder” sobre outra possuindo arma de fogo (poder coercitivo), ou por acreditando que tal indivíduo possua poderes em certos aspectos e por certos motivos (poder atribuído). Classicamente, existe também poder utilitário (faça o que eu quero e lhe dou dinheiro) e o normativo (persuasivo) muito mais complexo e sutil. No entanto, basta retirar a arma de fogo, desacreditar o outro, negar-se a receber dinheiro ou não ser persuadido para o poder alheio se desfazer. Exemplos são simples, mas permitem termos idéia de como se dá algumas relações de “poder”. Existe ainda outra forma eficaz de se estabelecer relação de poder, sem atribuir, impor ou persuadir: ver-se impossibilitado no campo das ações, sem saber como agir, dando oportunidade para alguém se impor.
Michel Foucault analisou diferente: rompeu teorias antigas ao não ver poder restrito ou localizado, mas em relações dinâmicas, descrevendo o sujeito como atravessado por múltiplas relações de poder. A dualidade clássica opressor/oprimido dista da realidade, pois para ser verdadeira teria de existir opressor e oprimido em estado, digamos, puro. A vida não é novela na qual se identifica o mocinho e o bandido. Acreditar nesta dualidade é distorce-la, distanciando-a de mudanças possíveis. O próprio saber (conhecimento) possui poder e em cada discurso há que se enxergar saber/poder: quem conhece tem “poder” sobre ignorantes (sem instrução).
Não existe consenso ao falar de poder. Existem teorias contraditórias. Não pretendo desenvolver nova teoria, mas apontar observações. Temos a idéia simplista de uma mídia controladora de pensamentos. Fosse simples assim, seria fácil alterar o cenário. Contudo, a mídia responde aos anseios do espectador, caso contrário, ficaria sem audiência, não sendo possível qualquer forma de manipulação. Existe uma via de mão dupla: a mídia responde ao espectador, que por sua vez responde à mídia, e assim por diante, como um jogo de flertes ininterruptos. Talvez o problema não resida no jogo ou flertes, mas no ininterrupto. A maioria da população usa a mídia como fonte de informação e não desvia o olhar para outras fontes, permitindo criar esta complicada rede de influências. Bastaria deixarmos de ver televisão, por exemplo, para que se perdesse o poder de influência, ao mesmo tempo, deixaríamos de influenciá-la na temática de seus programas.
A “grande sacada” nas correlações de poder é fazer acreditar no clássico dualismo opressor/oprimido, poderoso/passivo. Deste modo, acreditamos não ter poder de ação sobre a mídia, Estado ou Igreja, e restringimos nosso campo consciente de ação e influência (leia-se consciente). Entretanto, sem público não há espetáculo. Qual espetáculo terá poder sobre o público? Certamente o mais visto, assistido. O público, ao escolher (consciente ou não) um espetáculo pode ser influenciado (persuasão) pela mídia, mas tal espetáculo só influenciará com seu conteúdo se for amplamente visto. Neste ponto, a mídia é hábil em iludir: algo se torna “sucesso” antes mesmo de o ser. Por exemplo: o comercial de um padre cantor, num canal de visibilidade, anuncia CD’s como tendo “mais de um milhão de cópias vendidas”. Outro canal exibiu pequena reportagem falando deste padre que, somando-se aos números de venda de outra cantora, chegam (os dois) a quase um milhão de cópias. Vi o comercial e reportagem no mesmo dia, ou seja, vendem-lhe a idéia (mentirosa) de tal artista ser quase unanimidade, exibindo belos números forjados. Anos atrás, vi uma dupla sertaneja no Domingão do Faustão, tendo seu lançamento anunciado com “mais de um milhão de cópias vendidas”. No dia seguinte, a mesma dupla, agora no programa da Hebe Camargo, teve o mesmo lançamento anunciado com 500 mil cópias vendidas. Será que 500 mil compradores devolveram o disco na segunda-feira?
Isto é apenas para ilustrar (simploriamente) como funcionam algumas correlações de poder através da ilusão do espetáculo. Embora acredite sermos sujeitos atravessados por inúmeras relações dinâmicas de poder, tenho certeza de que tentam nos vender a velha idéia de opressor/oprimido na mídia, na política e na igreja, com intuito de fazer acreditar que somos passivos, incapazes de incutir mudança na sociedade, educando-nos com a idéia imbecil de que “as coisas são assim mesmo e não há o que fazer”. Vivemos relações de poder, mas não somos passivos diante dos opressores.