O rangido da maçaneta
O RANGIDO DA MAÇANETA
A rigor todas as portas têm fechadura com maçaneta. As mais modernas, talvez por medida de segurança, têm-nas fixas por fora e giratórias por dentro. Hoje, por medo dos assaltos, costuma-se usar duas ou três fechaduras, na esperança de deter os ladrões. Nas mais antigas encontramos esse artefato de dupla-ação, atuando livre tanto por dentro como por fora. Quando acionadas elas em geral proporcionam um ranger (o caboclo costuma dizer ringir) que pode, de acordo com as circunstâncias, ser indicativo e sinal de várias coisas, como terror, rotina, alerta ou sinal de alívio.
A idéia desta crônica não é minha. Escutei-a a muito tempo atrás, arquivando-a no contexto das minhas lembranças. Agora, com a chegada do verão, o disco da memória rodou e recuperei a idéia básica para juntá-la com meus argumentos, para formar este artigo novo, que talvez vá somar-se à vivência de muita gente. Parece uma coisa banal, mas muitos encontrarão no texto coisas interessantes e familiares.
Todos nós temos ou tivemos filhos adolescentes, ávidos por sair à noite, livres para desfrutar uma balada. Para eles é ou era uma experiência nova, fascinante e revestida daquela adrenalina da liberdade. Nós também, como jovens vivemos tais sensações. Pois nessas reminiscências eu recordo que na praia, Ana tinha dezoito anos e Ricardo uns 15 e lá se iam os dois, com o carro do pai, para o festerê que a noite oferecia.
Quem conhece Garopaba, em Santa Catarina, sabe que as “festas” acontecem nas praias da Ferrugem, do Rosa ou mais longe até. Todas distantes, no mínimo quinze quilômetros da sede. Nunca se sabe o que os filhos vão enfrentar numa saída à noite. Perigos do trânsito (as estradas eram estreitas, esburacadas, de sobe-e-desce e sem pavimentação ou acostamento), brigas, violências, sei mais o quê. E aos pais, o que resta? Deixá-los ir e torcer (ou rezar) para que nada lhes aconteça. O pior é que a gente fica, ou ficava, insone, imaginando as piores coisas, e esperando o retorno deles. A mãe de tanto em tanto acordava e perguntava: “Já chegaram?”.
Nessa vigília, em geral no escuro mas com os olhos bem abertos, a gente não quer outra coisa a não ser escutar o ruído arranhado da maçaneta anunciando que a porta se abriu para os filhos chegarem. Qual o pai e mãe que já viveu uma sensação dessas? Embora tenha confiança na gurizada e nos companheiros, é impossível escapar da elaboração de alguns pensamentos pessimistas, o que contribui para a preocupação e a insônia.
O pior é que quando eles chegam cansados, sonolentos e felizes, às vezes com o dia clareando, não querem papo e vão dormir até meio-dia, preparando-se para outras aventuras na noite seguinte. É brabo quando – isso nunca ocorreu conosco, graças a Deus – pessoas vêm avisar que ocorreram acidentes ou até coisas piores.
Ah, que sensação gostosa quando a gente escuta na alta madrugada o rangido da maçaneta, anunciando que os filhos chegaram. É a hora, para nós pais, de acalmar o espírito e começar a dormir.
(filósofo e escritor)