Apropriação da subjetividade da classe trabalhadora: burocracia e autogestão

por Felipe Luiz Gomes e Silva

Resumo: O objetivo deste texto é refletir sobre o processo de apropriação da subjetividade da classe trabalhadora pelo capital. Para a reprodução das relações sociais de produção capitalista, a adesão dos operários ao processo de produção é um aspecto fundamental. A constante rejeição da classe operária ao trabalho degradado tem gerado novas estratégias de gestão que buscam a construção de um coletivo operário dócil e disciplinado. Dessa forma, as experiências desenvolvidas em empreendimentos autogestionários solidários apresentam, antes de tudo, um significado político pedagógico, essas empresas transformam-se em agências educativas, isto é, em um espaço de luta concreta contra a opressão e exploração do capital.

Palavras-chave: Ideologia - Alienação - Burocracia - Autogestão.

1 – A especificidade da gestão taylorista-fordista da força de trabalho: sua permanente crise.

Este texto tem como objetivo tornar evidente alguns aspectos fundamentais que são inerentes à organização burocrática e ao processo de trabalho na indústria metal-mecânica1, em especial na automobilística. Como é sabido, essa última, desde a introdução da esteira transportadora, tem enfrentado a recorrente “repugnância dos operários ao trabalho intenso e repetitivo” (Friedmann, G., 1972).

Como demonstra a história, a tentativa de gerenciar a força de trabalho por meio dos incentivos salariais ─ “a ideologia fordiana dos altos salários”2 ─ não eliminou em definitivo a rejeição dos trabalhadores aos métodos fordistas. Os conflitos entre o capital e a classe operária passam a moldar, no decorrer do tempo, novas formas de gestão da subjetividade humana.

O absenteísmo, o turnover, o trabalho mal feito e até a sabotagem tornaram-se as chagas da indústria automobilística americana: é Fortune, revista mensal da elite empresarial, que descreve com certo requinte de pormenores essas manifestações da resistência operária a métodos organizacionais e de dominação que não mudaram desde o início do taylorismo.(...) O turnover, isto é, a mobilidade voluntária dos trabalhadores que mudam de emprego em busca de condições de trabalho mais favoráveis, é um tormento para os capitalistas. A taxa média na Ford, em 1969, foi de 25%, representados essencialmente pelos operários mais jovens... Alguns desses operários deixam seus cargos, estranha um chefe de oficina, no meio dia, sem ir buscar o pagamento.(...) As baixas de produtividade exprimem a resistência dos trabalhadores à exploração. Essa resistência, que se manifesta pela quebra dos ritmos, pela sabotagem dissimulada, pelo aumento de peças falhadas, é crítica para o patronato. (Pignon, D., e Querzola, J., 1980, 94-5). (itálicos nossos)

A filósofa e pesquisadora Simone Weil, em uma conferência realizada para um auditório operário, no ano de 1937, já tinha revelado a especificidade dos denominados métodos de racionalização do trabalho.

Muitas vezes fala-se da revolução industrial para designar exatamente a transformação que se produziu na indústria no momento em que a ciência se voltou para a produção e apareceu, então, a grande indústria. Mas pode-se dizer que houve uma segunda revolução industrial. A primeira define-se pela utilização científica da matéria inerte e das forças da natureza. A segunda define-se pela utilização científica da matéria viva, isto é, dos homens (Weil, S., Apud Bosi, E.1979, p.111-2). (itálicos nossos)

A gênese da resistência da classe operária ao método taylorista de racionalização do trabalho explica-se, em parte, por esta clara distinção. A pretensão de empregar-se a ciência na matéria viva ─ nos seres humanos ─ é realmente inusitada. Para o pesquisador H. Braverman (1981), a racionalidade da organização do trabalho taylorista-fordista caracteriza-se pelo desejo de transformar o homem em máquina.

Portanto, a crise da linha de montagem fordista é inerente à sua natureza; mesmo com a introdução da esteira mecânica, o trabalho humano continua sendo o elemento dominante, isto é, a qualidade e a produtividade continuam dependendo da vontade do trabalhador coletivo. Esta estreita relação entre os aspectos subjetivos do processo de trabalho e a produtividade material, além de revelar a especificidade dos sistemas produtivos organizados nos moldes fordistas, evidencia também as origens de sua permanente crise, latente ou manifesta. (Silva, F., 1998, 2001)

Desta forma, estamos diante de um caso muito especial de administração de “recursos” humanos, isto porque, em face da constante rejeição da classe operária ao trabalho degradado ─ trabalho desqualificado, repetitivo e intenso ─ surgem continuamente, para além das táticas dos incentivos salariais, novos estratagemas gerenciais que buscam a construção da adesão do comportamento humano ao processo de produção fordista: o condicionamento e a docilidade humana.

2 – A gestão da subjetividade humana e o sofrimento no trabalho.

2.1 –O suplício da execução de um trabalho esmigalhado.

É possível perceber, em significativas expressões de linguagem, a raiz da permanente crise do processo de trabalho taylorista-fordista. Diz, por exemplo, um operário que trabalha na linha de montagem: “a execução de um trabalho esmigalhado torna-se um suplício” (Georges, F., 1981).

Para muitos trabalhadores, somente o refúgio do hábito ─ construído pela regularidade dos gestos manuais repetitivos ─ possibilita “algum alívio” para o sofrimento humano. Na defesa de um certo nível de “bem estar”, é preciso que o trabalhador execute as tarefas numa cadência que não demande muita assiduidade da atenção; felizmente, poder trabalhar pensando em outra coisa (“espírito à deriva”) evita que a racionalização3 do processo de produção seja total, perfeita. Nas palavras de Simone Weil (1937):

Se realmente acontece que com esse sistema a monotonia seja suportável para os operários, é talvez o pior que se possa dizer de um tal sistema. Certo é que a monotonia do trabalho começa sempre por ser um sofrimento; se chega ao hábito, é à custa de uma diminuição moral. Na verdade, ninguém se acostuma a isso, a menos que se possa trabalhar pensando em outra coisa. Mas, então, é preciso trabalhar num ritmo que não exija muita assiduidade da atenção de que a cadência do trabalho precisa.(...) E valendo-se dos meios mais grosseiros, usando como estimulante, ao mesmo tempo, a sujeição e a isca da gratificação ─ em suma ─ por um método de domesticação que não se dirige a nada do que é propriamente humano, doma-se o operário como se doma um cão, combinando chicote com os pedaços de açúcar. Felizmente não alcançam nunca um êxito total, pois nunca a racionalização é perfeita e porque, graças a Deus, o chefe da oficina não conhece tudo. Restam meios de tirar-se o corpo fora, mesmo em se tratando de um operário não qualificado (Weil, S., apud Bosi,E.1979, p. 124 -5). (itálicos nossos)

Mas a ciência da administração não dá trégua e persegue, sem descanso, novas teorias que permitam ao chefe da oficina tudo conhecer; é preciso integrar o “espírito” do trabalhador ao processo de produção. A busca de uma -perfeita racionalização/servidão ─ que evite o desenvolvimento de práticas defensivas (“tirar o corpo fora”) ─, será, para o infortúnio dos seres humanos, o privilegiado tema de pesquisa das ciências comportamentais americanas e, em especial, da psicologia aplicada à administração4.

Desde a conhecida “Experiência de Hawthorne”, realizada na “Western Electric” em Chicago, na América do Norte, nos anos de 1927 a 1932, em uma linha de montagem de peças de telefones, que a teoria da administração ressalta a importância da motivação psicológica para a construção da lealdade dos trabalhadores para com a empresa. O “movimento de relações humanas na indústria” é pioneiro na defesa da utilização dos incentivos simbólicos como forma de estimulação e de condicionamento da conduta operária. Por exemplo, a Sala de Terapia de Tensões Industriais, constituída por uma equipe de psicólogos/conselheiros, tinha como função primordial assegurar uma organização que operasse sem atritos (smooth-working) e com o máximo de rendimento. (Friedmann, G., 1981).

Na realidade, neste contexto, ao pretender que os operários acreditem que são responsáveis pelas “tensões industriais”, o papel da psicologia tem sido o de negar as origens sociais, políticas e econômicas dos conflitos de classe, isto é, a negação da negação.

Em termos claros, trata-se de passar das preocupações referentes ao trabalho deste operário ou daquela empregada (job factors) à preocupações que se não referem ao trabalho mas sim à personalidade do trabalhador (non-job factors). O operário, em lugar de sentir-se incompreendido e lesado, descobre-se vítima de circunstâncias cuja responsabilidade não é da Companhia (Friedmann, G., 1981, p. 268). (itálicos nossos)

A “adaptação psicofísica” ao ritmo de produção exige um particular dispêndio de energias musculares e nervosas que provoca um “novo tipo de fadiga” (Gramsci, 1978).

Em relação a esse “novo tipo de fadiga”, as falas dos operários que trabalham reproduzindo gestos estereotipados são ricas em revelação. A sensação do corpo anestesiado e do entorpecimento físico rompe com a noção de tempo; a vida humana não passa de um simples arremedo, um simulacro.

A primeira impressão, ao contrário, é a de um movimento lento, embora contínuo, de todos os carros. Quanto às tarefas, elas me parecem feitas com uma espécie de resignada monotonia, mas sem a precipitação que eu esperava. É como um longo deslizar glauco, do qual se desprende, depois de um certo tempo, uma espécie de sonolência ritmada por sons, choques, clarões, ciclicamente repetidos, regulares. A música informe da linha de montagem, o deslizar das carcaças cinzentas de chapas brutas, a rotina dos gestos: sinto-me progressivamente anestesiado. O tempo pára.(...) É como uma anestesia progressiva: poderíamos contentarmo-nos com o torpor do nada e ver passar meses – talvez anos, por que não? (...) O verdadeiro perigo começa quando se suporta o choque inicial, o entorpecimento. Daí é esquecer até mesmo a razão da própria presença na fábrica e satisfazer-se com o milagre de sobreviver. Habituar-se. Habituar-mo-nos a tudo, ao que parece. Evitar choques, proteger-se contra tudo que incomoda. Negociar com o cansaço. Refugiar-se num simulacro de vida (Linhart, R.1986, p.12,43). (itálicos nossos)

O longo trecho anteriormente citado é um claro testemunho do sofrimento humano que tem como causa inconteste o trabalho alienado e degradado. Recentemente, como resultado de suas pesquisas científicas, Dejours (1987) revela que o sofrimento5, a ansiedade e o medo dos trabalhadores na linha de montagem fordista derivam de um ritmo imposto pela gerência que exige uma “elevada carga psicossenssorial motora”. Assim ele se expressa:

A ansiedade responde então aos ritmos de trabalho, de produção, à velocidade e, através destes aspectos, ao salário, prêmios, às bonificações. A situação de trabalho por produção é completamente impregnada pelo risco de não acompanhar o ritmo imposto e de “perder o trem”(Dejours, C., 1987, p. 73).

A constante rejeição da classe operária e a acirrada competição mundial impulsionam a crise (crise aberta) do sistema de produção taylorista-fordista, locus privilegiado do trabalho desqualificado. Esses assalariados reivindicam com as “greves selvagens”6 mudanças fundamentais na forma de organização do trabalho. Segundo Dejours (1987), as expressões “abaixo as cadências infernais” e “abaixo a separação do trabalho intelectual e manual” representam nitidamente uma total recusa dos proletários à insuportável degradação física e mental provocada pela intensificação do ritmo de produção.

Essas “greves selvagens” confirmam a escolha de 1968 como referência histórica. “Greves selvagens” e greves de operários não qualificados eclodem espontaneamente, muitas vezes à margem das iniciativas sindicais. Elas rompem a tradição reivindicativa e marcam a eclosão de temas novos: “mudar a vida”, palavra de ordem fundamentalmente original, dificilmente redutível, que mergulha o patronato e o Estado numa verdadeira confusão, pelo menos até a atual crise econômica, que tende a atenuar as reivindicações qualitativas (...) Palavras de ordem como “abaixo as cadências infernais”, “abaixo a separação do trabalho intelectual e manual”, “mudar a vida” atacam diretamente a organização do trabalho ( Dejours, C. 1987, p. 24-5) (itálicos nossos).

Um artigo publicado no New York Times em 23 de agosto de 1973 denuncia claramente a crise dos processos de trabalho organizados nos moldes taylorista-fordistas. Por exemplo, a empresa Fiat Motor Company, em Roma, teve nada menos de 21.000 funcionários ausentes em uma segunda-feira e o absenteísmo médio era de 14.000 trabalhadores por dia. (Silva, F.,1998, 1999)

2.2 – A apropriação dos saberes tácitos e o engajamento estimulado: “la mentalité des pompiers”.

Como resposta à crise aberta, surge, na segunda metade do século XX, no Japão, o sistema de produção em massa flexível (Just in time/Kanban/CCQ/Kaizen/Multi-skill)7 . Sistema produtivo esse que desenvolve uma nova maneira de gerenciar a força de trabalho que leva à intensificação do ritmo de produção a padrões extremos (management by stress)8 uma vez que adiciona, ao gesto repetitivo dos operários, o engajamento estimulado.

A socióloga Danièle Linhart (1999) revela que a estratégia da empresa flexível consiste em dominar a consciência dos trabalhadores, induzindo la mentalité des pompiers (“mentalidade dos bombeiros”): sempre prontos e em alerta para realizarem tarefas repetitivas com a qualidade e a produtividade requeridas pelo capital. Segundo Dejours:

O “autocontrole” à japonesa constitui um acréscimo de trabalho e um sistema diabólico de dominação auto-administrado, o qual supera em muito os desempenhos disciplinares que se podiam obter pelos antigos meios convencionais de controle (Dejours, C., p.49, 1999).

Na New United Motor Manufacturing Inc. (Califórnia-EUA)9, por exemplo, os ciclos de trabalho são muito curtos, o início e o término de uma tarefa multifuncional dura 60 segundos (Womack, J. et al, 1992). Na empresa Suzuki, em Kosai (Japão), o operário desenvolve uma seqüência de movimentos físicos em um ritmo que é cadenciado pelo som de música sintética; ele monta, em um estado mental quase hipnótico, um automóvel de porte médio a cada 58 segundos (Ocada, F., 2002).

Segundo a experiência de um jornalista brasileiro que trabalhou como arubaito (trabalho temporário e precário) na Kubota, no Japão ─ fábrica de tratores e de implementos agrícolas ─ as tarefas são pesadas e repetitivas. Ele executava quatro tarefas diferentes (cargo enriquecido)10 e recebia uma remuneração de 12 reais por hora; mas não tinha carteira assinada, não ganhava 13º salário e tampouco fundo de garantia. Assim ele se expressa:

Eu apertava parafusos, empurrava máquinas para a linha de produção, buscava peças, levava caixas vazias para o depósito. Quanto mais trabalhava, mais ouvia hayaku (mais depressa). Fiz uma coisa imperdoável nas relações trabalhistas locais: reclamei do abuso e sugeri mudanças. O sistema japonês detesta queixas e abomina mudanças (Higobassi, D.,1998, p.109).(itálicos nossos)

Mesmo diante dessas evidências empíricas, alguns pesquisadores defendem a tese de que a tarefa polivalente desempenhada pelos operários japoneses supera a cisão entre o trabalho manual e intelectual, isto é, requalifica o processo de trabalho. A estudiosa Helena Hirata (1988) afirma na conclusão do seu trabalho de pesquisa o seguinte:

Concluindo, diremos que o one best way taylorista é desmentido por essa incursão na divisão social e nos processos de trabalho em vigor no Japão.(...) Este fato comprova a idéia de estudiosos como André Gorz, de que a parcelização e a especialização das tarefas, a cisão entre trabalho manual e intelectual e a monopolização da ciência pelas elites não são necessárias para uma produção eficaz. A eficácia da produção japonesa, como acabamos de ver, não está assentada numa divisão exarcebada do trabalho tal como Gorz escreve, analisando as sociedades capitalistas ocidentais (Hirata, H., 1988, p. 42).

Na verdade, o exercício da “multifuncionalidade” (multi-skill) tem gerado um trabalhador pluri-parcelar, engajado, flexível e proativo. Com a introdução dos círculos de trabalho, da redução dos estoques amortecedores e do princípio da melhoria contínua (kaizen) aprofunda-se, na realidade, o processo de alienação do trabalho: a apropriação pelo capital do saber tácito da classe operária.

Segundo Ikujiro Nonaka (1991), com a introdução do Sistema JIT/Kanban e dos círculos de trabalho11, determinados conhecimentos deixam de ser monopólio de alguns poucos operários e são incorporados à organização pela gestão da empresa12.

Nonaka afirma que muitos dos conhecimentos acumulados na empresa provêm da experiência e não podem ser comunicados pelos trabalhadores em ambiente de procedimentos administrativos excessivamente formalizados. No entanto, as fontes de inovação multiplicam-se quando as organizações conseguem estabelecer pontes para transformar conhecimentos tácitos em explícitos (Nonaka, I., apud Castells, M., 1999, p. 180). (itálicos nossos)

Dessa forma, emerge daí uma nova configuração organizacional que, aliada ao enfraquecimento dos direitos trabalhistas e à coerção direta do mercado sobre a subjetividade humana, permite uma (re)definição da forma de exploração da força de trabalho.

Para Pierre Bourdieu (1998), a precariedade das relações de trabalho gera uma nova forma de opressão: a gestão racional dos “recursos” humanos por intermédio da insegurança e do medo. Essa coerção é denominada de “regime hegemônico despótico” por Burawoy (1990) ou de “new regime of subordination” por Garrahan, P. et al (1994). Alguns dos resultados da aplicação destas novas técnicas gerenciais são as doenças e as mortes provocadas pela overdose de trabalho.(Valadares, N., 1995; Sargentini, M., 1996; Dejours, C., 2000). De acordo com Nanci Valadares (1995):

No Japão, interessante estudo do Dr. T. Kato demonstra que a força humana empregada tem vivenciado um fenômeno denominado karoshi, ou seja, morte por excesso de trabalho. Tecnicamente, aplica-se esse termo sócio - médico para descrever doenças, em geral cardiovasculares, ocasionadas pelo dispêndio desumano de horas e energia física e psíquica nas atividades produtivas (Valadares, N., 1995, p.22).

Segundo esta pesquisadora, cerca de 10.000 trabalhadores, com menos de sessenta anos, morrem anualmente de enfarte do miocárdio, tromboses e outras causas. Essas mortes são provocadas pela pressão das empresas sobre os empregados, inclusive para que não tirem férias e nem desfrutem do tempo livre. Esse estilo de consumo da força de trabalho está sendo denominado de “sete às onze”, porque os empregados saem de casa às sete da manhã e somente retornam ao lar às onze horas. Na ausência de um sindicato forte[13] e de políticas públicas que protejam os trabalhadores, surgiu, no Japão, uma organização não-governamental (Karoshi Hot Line) que constituiu um Conselho Nacional de Defesa das Vítimas de Karoshi, na qual vários advogados trabalham.

É importante ressaltar que o discurso gerencial da qualidade/produtividade transcende o mundo fabril e contamina todos espaços sociais, em especial as instituições educacionais públicas e privadas.

3 - A autogestão: apropriação das forças produtivas e a superação da divisão do trabalho.

Como observamos, a empresa flexível ─ modelo toyota de produção ─ busca a elevação da velocidade da produção e a melhoria da qualidade das mercadorias por meio da perfeita sincronização dos gestos manuais (JIT/Kanban), ou seja, o perfeito nexo das ações e reações do corpo físico e mental, levando a reificação do ser humano ao paroxismo.

Portanto perguntamos: há, no Japão, alguma evidente reação da classe operária contra esse processo de administração total14? Ou será que esse sistema de “gestão de pessoas” atingiu um estado de perfeita racionalização da conduta humana?

Segundo M. Nomura há, no Japão, uma certa resistência da classe operária ao “Sistema JIT/Kanban” de administração de “recursos” humanos. Ele afirma, por exemplo, que na empresa Toyota, do total de jovens operários empregados no mês de abril de 1991, 25% pediram demissão depois de oito meses, isto é, em dezembro do mesmo ano. Ainda mais, somente 45% dos operários recomendam aos seus filhos o tipo de trabalho que desempenham nesta empresa, eles dizem que suas tarefas são duras e penosas. (Nomura, M. apud Salerno, M., 1997).

Podemos afirmar que, essa é uma das razões que explicam porque as empresas japonesas estão importando força de trabalho de vários mercados diferentes. Além dos coreanos, chineses e húngaros, segundo o último censo divulgado pelo Ministério da Justiça no Japão, existem cerca de 265.96215 nipo-brasileiros (dekasseguis) que desempenham, com “disposição”, os trabalhos sujos (kitanai), perigosos (kiken) e pesados (kitsui).

Em resumo, na força desse sistema de gestão de “recursos” humanos ─ o engajamento ativo dos trabalhadores ─ encontra-se também a sua fragilidade. São mentes e corpos humanos comprometidos com o processo de produção, com o sofrimento e com a exploração. Cabe indagar: por quanto tempo suportarão?

A superação da divisão do trabalho intelectual e manual ─ burocracia fabril ─ base da sustentação da sociedade dividida em classes e da estrutura opressiva, deverá ser obra da vontade coletiva dos trabalhadores envolvidos numa luta em direção aos sistemas autogestionários de produção, luta política que deve ser orientada por um projeto de construção de uma sociabilidade humana não intermediada pelo capital.

Recorremos, mais uma vez, à profunda analise crítica desenvolvida pela filósofa Simone Weil sobre a opressão da classe operária no local de trabalho que se traduz em sofrimentos prolongados. Para ela, na luta pela transição social não basta coletivizar as fábricas, além da apropriação dos meios de produção pela classe trabalhadora faz-se necessário construir uma nova forma de organização.

Se amanhã os patrões forem expulsos, se as fábricas forem coletivizadas, nada vai mudar quanto a este problema fundamental: o que é preciso para extrair o maior número possível de produtos, não é necessariamente o que pode satisfazer aos homens que trabalham na fábrica (Weil, S. Apud Bosi, E. 1979, p.114).

Portanto, concordamos com André Gorz quando ressalta que K. Marx pensava na ‘apropriação das forças produtivas’ e não somente ‘ na socialização dos meios de produção’. O verdadeiro significado da noção ‘apropriação das forças produtivas’ exige uma luta pela superação da divisão burocrática do trabalho.

Não é por se tornarem coletivamente ‘proprietários dessas fábricas’, que os proletários poderão desenvolver, por meio do trabalho, uma totalidade de capacidades. Exatamente o contrário: enquanto a matriz material permanece inalterada, a ‘apropriação coletiva’ do conjunto da fábrica nada mais é do que uma transferência perfeitamente abstrata da propriedade jurídica, transferência que será incapaz de por fim a opressão e subordinação operárias (Gorz, A, 1980, p. 12).

Nesse sentido, as lutas contra “as cadências infernais”, pela redução do tempo de trabalho socialmente necessário e pelo aumento do tempo dedicado às atividades autônomas, tanto individuais como coletivas, devem estar presentes como uma das estratégias fundamentais à transformação social.

Reconhecemos que o progresso técnico é uma condição necessária à superação do trabalho repetitivo e alienado, mas não é suficiente. Para que esse processo de transformação aconteça torna-se necessária a presença do sujeito; sem ela, não há história. É o sujeito, em constante luta, que cria às condições para a superação da estrutura de opressão/exploração, não há ruptura natural do sistema, isto é, do modo de produção e organização capitalista.

A superação dessa forma de organizar é uma condição necessária à emancipação da humanidade. A reflexão crítica sobre a organização burocrática do trabalho e suas correspondentes ideologias gerenciais não pode esperar a promessa do mundo novo, ou seja, o seu questionamento deve fazer parte das preocupações teóricas e políticas do conjunto da classe trabalhadora, dos intelectuais, dos técnicos e dos operários.

Dessa forma, aqui está um dos grandes desafios, combinar, desde já, economia com solidariedade. As experiências desenvolvidas pelos trabalhadores em empreendimentos autogestionários apresentam, antes de tudo, um significado subjetivo, cultural e educacional. As empresas transformam-se em verdadeiras agências educativas, isto é, em um espaço concreto de luta política pela autonomia. A economia solidária autogestionária coloca em questão a subordinação do trabalho ao capital.16

ABSTRACT This paper intends do make a reflection on the human subjectivity administration in automobile industries. For production efficiency, the join of workes to production process is such an important standpoint. The endless rejection of the working class to intense and repetitive work has brought new administration strategies that search for efficiency and productivity through the establishment of an ordely work collective.

KEY WORDS: Ideology, alienation, bureaucracy, self-administration.

Notas:

1 Porque produz peças e componentes que tem formas e dimensões variadas também é conhecida como “indústria de forma”. A introdução da esteira mecânica gera uma extrema divisão do trabalho que não rompe com a necessidade de contratação de uma grande quantidade de “operários de execução direta”, sobretudo na linha de montagem do produto.

2 Expressão utilizada por Antonio Gramsci em “Americanismo e Fordismo” In: Obras Escolhidas. São Paulo :Martins Fontes, 1978.

3 Racionalidade perfeita significa “servidão absoluta”, isto é, o homem reificado. Deseja a administração “científica” reduzir, por meio do estabelecimento de uma única maneira certa de executar o trabalho (one best way), supervisão cerrada e incentivos salariais, uma conduta humana totalmente subsumida à eficiência econômica

4 Na busca de um clima social favorável à reprodução do capital, a General Motors pagou 3 mil dólares por hora para um psicólogo elaborar um programa de treinamento/participativo. É importante ressaltar que esse programa tinha como objetivo mudar a percepção da classe operária em relação à empresa, isto é, apropriar-se da subjetividade humana. (Cf. Alves, M., 1987)

5 Enquanto na “indústria de forma” o sofrimento humano deriva de um tipo de trabalho que exige “elevada carga psicossensorial motora”, na de propriedade (fluxo contínuo) tem sua origem fundamental na necessidade da vigilância do processo, da concentração e da memorização.

6 As “greves selvagens” passam por cima da burocracia sindical, do “sindicato amarelo”. Essa organização é a “menina dos olhos” da empresa, na Citröen, por exemplo, os operários que participam desse sindicato, os “pelegos”, são facilmente premiados com promoções, isto é, ascendem na hierarquia organizacional. ( Cf. Linhart, R., 1978).

7 O Sistema Just in Time (JIT), conhecido também como Sistema Kanban, é um técnica organizacional desenvolvida originariamente na Toyota Motor Company, nos últimos 25 anos, pelo seu ex - vice presidente T. Ohno. Significa fabricar e entregar produtos apenas a tempo de serem vendidos, submontá - los apenas a tempo e montá- los nos produtos acabados. A demanda puxa a produção, o processo é desencadeado do fim para o começo. Sua ênfase está na redução dos estoques amortecedores. A redução destes força o aparecimento dos problemas que ficam escondidos atrás do excesso. As informações sobre os estoques encontram - se em cartões visíveis, chamados de Kanban. A introdução do operador polivalente permite a redução da quantidade de mão de obra e, como resultado, a condensação dos poros da jornada de trabalho, isto é, intensificação do ritmo de produção.

8 Segundo T. Gounet, autor dessa expressão, esse sistema de gestão realiza, ao mesmo tempo, a extração da mais-valia absoluta e relativa ( Gounet, T, 1999).

9 Associação da General Motors com a Empresa Toyota, pioneira na introdução da sistema Just in Time/Kanban. Devido aos boicotes e às greves a G.M. havia fechado 04 vezes as suas portas.

10 Significa redefinir as tarefas prescritas que compõem um cargo. Na fala empresarial tem como meta combinar várias tarefas para evitar a repetição extrema e a conseqüente apatia. Objetiva estabelecer um contrato psicológico do trabalhador para com a empresa.

11 Como sabemos, os Círculos de Controle de Qualidade são peças fundamentais para a gestão da subjetividade do assalariado. Em 1984 havia nada menos que 5.580 Círculos de CQ na Toyota, correspondendo a 37.515 empregados, todos envolvidos com a idéia de melhorar a eficiência da empresa. Nesse mesmo ano, a Nissan possuía 4.004 círculos e contava com a participação de 37.389 membros. Em 1990 havia no Japão 314.000 círculos, significando 2,45 milhões de trabalhadores. (Cf. Silva, F., 2001)

12 No Japão há uma acentuada terceirização e segmentação do mercado de trabalho, a remuneração média das mulheres, no ano de 1987, correspondia a 52% dos ganhos dos trabalhadores masculinos, somente 1/3 da força de trabalho pertence ao core da economia. As pequenas empresas (as que possuem menos de 100 trabalhadores), no ano de 1982, empregavam 68,7% de toda força de trabalho e pagavam salários correspondentes a 70% daqueles pagos aos trabalhadores que pertencem ao núcleo (core) das grandes firmas (Cf. Kenny e Florida, 1988). A Toyota conta com 36.000 firmas subcontratadas; 31.600 são consideradas de terceira linha. (Cf. Coriat, 1994)

13 O “modelo japonês” de gestão dos trabalhadores - gerenciamento de pessoas - desenvolveu o “sindicato de colaboração” transformando - o no braço direito da política de “recursos” humanos.

14 Na década de 1980, no Brasil houve momentos de luta contra a introdução dos Círculos de Controle de Qualidade. Os trabalhadores denunciavam este programa denominando-o ironicamente de: Come Calado e Quieto ou Como o Chefe Quer ( Freyssenet et al, 1985).

15 Cf. Jornal Nippo - Brasil, Caderno 3 A, 26 de junho a 02 de julho de 2002.

16 Sobre o cooperativismo de Rochdale, Inglaterra, afirma K. Marx: Ela (a experiência) mostrou que associações de trabalhadores podem gerir lojas, fábricas e quase todas as formas de atividades com sucesso e melhorou imediatamente a condição das pessoas; mas não deixou nenhum lugar visível para os capitalistas. Que Horror! (Marx, K., 1980, p.381)

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[Publicado na Revista Organizações e Democracia. Vieitez, C.G e Neusa Maria Dal Ri (orgs.) – Marília, Unesp v.5, n. 1. p.25-38, 2004.]

Felipe Luiz Gomes e Silva é Professor Doutor em Sociologia da Universidade Estadual Paulista do campus de Araraquara – UNESP, Araraquara, SP, Brasil.

Carlos Henrique Marques
Enviado por Carlos Henrique Marques em 16/12/2008
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