A REVOLTA DA CHIBATA : JOÃO CÂNDIDO E O LEGADO DE SEU ALMIRANTADO POPULAR

Sob a simplicidade de um homem do povo por vezes se oculta uma grandeza capaz de grandes feitos, ousadias capazes de estremecer toda uma sociedade.

Assim podemos definir João Cândido, um homem do povo em cujo peito despertou um gigante que por cinco dias pôs de joelhos toda uma república.

Nascido no Rio Grande do Sul, filho de ex-escravos, João Cândido Felisberto era o acompanhante do pai em suas viagens constantes de tropeiro, talvez daí tenha germinado nele o espírito nômade próprio dos homens do mar.

Aos treze anos ingressou na marinha, instituição na qual deixaria sua presença profundamente marcada como símbolo para os praças e tabu para os oficiais, sendo que não se sabe ao certo como se deu o seu engajamento, cujas teses oscilam entre o alistamento forçado pelo patrão de seus pais como punição pela sua altivez e a sua própria vontade em se engajar.

Forçado ou não, na Marinha João Cândido encontrou o seu lugar. Rapidamente aprendeu os ofícios do mar e chegou a se tornar instrutor de várias escolas de aprendizes marinheiros.

Apesar de amar a marinha, João Cândido indignava-se com o tratamento dispensado pelo oficialato aos marinheiros que padeciam sob um regime de quase escravidão, que tornava a armada um dos últimos redutos do arcaico pensamento aristocrático no Brasil.

Sua indignação recrudesceu pelo contato mantido com seus pares do velho mundo, pois o levou a tomar consciência acerca da enorme diferença existente entre o tratamento dispensado pelas armadas européias – sobretudo a inglesa - aos seus praças em comparação ao suportado pelos marinheiros brasileiros.

Assim no dia 22 de novembro de 1910, diante da bestialidade do castigo imposto ao marinheiro Marcelino, o estalo da chibata despertou o gigante e sob o comando de João Cândido os marujos sublevaram-se, tomando o controle das mais poderosas belonaves da esquadra brasileira e assestando seus canhões capazes de fulminar uma cidade rumo ao Rio de Janeiro, antiga capital da república.

Com uma esquadra composta pelas belonaves Deodoro, São Paulo, Bahia e Minas Gerais, os revoltosos levaram pânico a uma cidade já convulsionada pela posse do presidente Hermes da Fonseca, eleito em uma conturbada eleição.

A maestria com que João Cândido conduzia o enorme encouraçado Minas Gerais na baía da Guanabara ao mesmo tempo em que entusiasmava ao povo que se deslumbrava com a precisão de suas manobras, desapontava aqueles que não acreditavam na capacidade dos praças em operar tão complexa máquina.

O povo do Rio de Janeiro alçou João Cândido a um almirantado popular, que espontâneo dispensava galões e honrarias, pois, embora no comando, a única distinção entre o aclamado Almirante Negro e a sua tripulação era um lenço vermelho amarrado ao pescoço. Ademais, manteve o seu surrado uniforme de marinheiro.

Mas desperto o gigante o que ele desejava? Poder? Glória? Não. Apenas dignidade.

Dignidade para todos aqueles que embora estivessem dispostos a dar suas vidas pelo Brasil, eram à menor das falhas humilhados sob o jugo da chibata, que cortava não só suas carnes, mas suas almas regurgitando em suas mentes memórias de um passado onde homens eram considerados meras mercadorias.

Os revoltosos, a despeito do enorme poder de que dispunham, pouco pediram. Exigiram apenas melhor comida, melhores salários e o fim da horrenda chibata, além do perdão oficial para o seu desesperado ato.

Foram cinco dias com o país em sobressalto e partidários pró e contra a anistia se digladiando no parlamento brasileiro.

Por fim, venceram os favoráveis ao perdão. Um perdão, entretanto que apenas dissimulava as intenções do governo em aplicar aos amotinados um castigo mais desumano que o próprio relho. Iniciava-se assim o calvário de João Cândido e dos demais revoltosos que a despeito de terem obtido êxito em sua empreitada, abolindo em definitivo os castigos corporais na marinha e melhorando as condições de trabalho, foram tomados por uma maldição que quase sempre assombra aos heróis: A de que estes quase nunca gozam dos frutos de seu heroísmo.

Logo o governo, aproveitando-se de um novo levante na marinha motivado por sua própria traição, lançou injustamente o Almirante Negro, mesmo perdoado, para morrer junto com outros companheiros em uma masmorra medieval na ilha das cobras. Na prisão recebeu como presente na noite de natal o sadismo de seus superiores que os deixaram expostos ao calor escaldante, sem água e nem comida, imersos em uma nuvem de cal virgem a corroer os seus pulmões.

Dos dezoitos companheiros de cela apenas dois sobreviveram, sendo um deles o próprio João Cândido. Todavia, embora seus algozes tivessem fracassado na tentativa de matar o seu corpo, conseguiram ao menos alquebrar o seu espírito e atormentado pela agonia dos dezesseis colegas assassinados, ele foi internado em um hospício, onde permaneceu em tratamento por alguns meses.

No entanto, a ferida no orgulho do governo ainda estava aberta e João Cândido foi novamente levado á prisão. Lá ficou por dezoito meses até ser julgado por um tribunal militar e sendo defendido pelos grandes juristas Evaristo de Morais, Caio Monteiro de Barros e Jerônimo de Carvalho, que provaram a sua inocência quanto à suposta participação na revolta ocorrida após a anistia; ele foi absolvido.

A absolvição, entretanto não impediu que ele fosse perseguido e os supostos senhores do mar sempre lhe fechavam qualquer escotilha por onde pudesse vislumbrar alguma chance de trabalho.

Melhor sorte não tiveram os outros participantes da revolta de 22 de novembro. Eles não tiveram que respirar a cal virgem, mas muitos encontraram ou a execução sumária a bordo do navio Satélite ou a doença e a escravidão nos seringais amazônicos, para onde foram levados em desterro.

O Almirante Negro, privado de trabalho regular pela felonia de seus algozes, passou a viver miseravelmente da venda de peixes no cais do porto e como se não bastasse já todo o sofrimento suportado, ainda foi vítima de duas tragédias familiares: o suicídio da esposa e, anos depois, de uma de suas filhas.

Morreu em 1969, vitimado por um câncer, deixando como legado direto o fim dos açoites na marinha, além de outros que apenas adentrando o campo da abstração somos capazes de mensurar.

Assim, depois de quase um século desde a eclosão do motim, nos perguntamos: Qual a sua contribuição para a formação histórica nacional?

Exercitemos nossas imaginações: Será que teríamos Brasília se a audácia dos marujos não trouxesse à realidade os vaticínios do grande José Bonifácio de Andrada?

Ora, a mudança de nossa capital para o planalto central não se deu pelo temor de que um distrito federal litorâneo poderia ser facilmente atacado pelo mar?

Tal temor, embora tenha se fortalecido nas duas grandes guerras em nenhum dos conflitos chegou tão perto de se concretizar quanto na revolta da chibata. Talvez, então o medo marcado nos corações daqueles que dispunham do poder de decisão possa não ter vindo dos submarinos alemães, mas da imagem do encouraçado Minas Gerais sendo comandado por um simples marinheiro com os seus canhões assestados contra a atual capital fluminense.

E as demais lutas por melhorias sociais ocorridas no decorrer do século XX, não foram talvez inspiradas pelo êxito de João Cândido em sua empreitada?

Podemos também considerar a revolta da chibata como um evento raro na história, pois apesar desta abundar em revoltas e revoluções, estas quase sempre foram protagonizadas por pessoas que não pertenciam às camadas mais humildes do povo. O motim de novembro de 1910, ao contrario, foi eminentemente marginal e dotado de um aspecto que o tornava ainda mais singular: Elementos do povo no comando do poderio militar e com condições reais de impor a sua vontade.

Talvez o movimento que em toda a história mais se assemelhe á revolta da chibata seja o motim do encouraçado russo Potemkim em 1905, que também se deu por melhores condições de vida nos navios.

Entretanto, sem querer menoscabar a justeza das reinvidicações dos sublevados russos, ao compararmos os relatos históricos acerca do desenrolar dos dois episódios, além da postura assumida por seus protagonistas, nos parece ser incompatível com o caráter de João Cândido a apatia com que o chefe revoltoso russo assistiu ao massacre de civis apoiadores de seu movimento nos portos de Odessa pelo exército do Czar, sem permitir que seus marinheiros disparassem um só tiro em favor daqueles que pereciam sob os cascos dos cavalos dos cossacos.

O passar dos anos desde a revolta, apesar dos esforços oficiais em contrário, não conseguiu apagar da memória popular o exemplo de João Cândido e dos demais rebelados que arriscaram suas vidas por mais dignidade e continuou inspirando aqueles que como eles nutriam anseios de uma vida menos injusta.

Assim, os seus feitos continuaram a irradiar a sua influência através do tempo, incomodando aqueles que se consideravam moderadores da história nacional e, portanto capazes de por decreto apagar qualquer marca do seu breve almirantado popular gravada no inconsciente coletivo dos brasileiros.

Para assegurar o cumprimento de seu capricho passaram a perseguir aqueles que ousaram trazer a lume os heróis e os acontecimentos cuja ausência lacunava a memória nacional e tão logo puderam, se apressaram em cassar direitos e a cercear possibilidades daqueles que só diziam a verdade.

Agindo com truculência por algum tempo lograram êxito e mergulharam João Cândido em um raso esquecimento ao excluí-lo, sobretudo, dos livros didáticos.Todavia, a imagem do Almirante Negro e da revolta da chibata continuou a assombrá-los, pois após ser expulsa das salas de aula, a sua lembrança subiu os morros e se tornou uma permanente fonte de inspiração da cultura de massa. Assim, inspirou expoentes da poesia popular a compor em 1974 a bela canção “Mestre-Sala dos Mares”, que se somou a outros libelos contra a ditadura militar.

Em meados da década de 80 os seus feitos foram novamente lembrados. Desta vez como um dos temas da maior festa popular do planeta, João Cândido foi homenageado pela escola de samba União da Ilha no carnaval de 1985.

Recentemente o Almirante Negro e seus colegas foram novamente anistiados pelo congresso, como que para dar um epílogo a uma injustiça histórica. Também, tramita no Congresso Nacional um projeto de lei que visa incluir seu nome, junto a outros grandes brasileiros, no panteão dos heróis da pátria.

Talvez seja o início de uma merecida reparação e ainda possamos ver uma nave de nossa armada batizada com o nome deste bravo marinheiro.

Entretanto, mesmo que nada ocorra, mesmo que a nova anistia não surta quaisquer de seus tardios efeitos, mesmo que o nome de João Cândido continue banido da história oficial, ele permanece vivo no mais alto dos panteões, o dos heróis do povo, onde reside um seleto grupo de homens que simplesmente não morrem, mas se transformam em samba-enredo

ISRAEL DE PAULA LOPES
Enviado por ISRAEL DE PAULA LOPES em 10/12/2008
Reeditado em 11/12/2008
Código do texto: T1327711
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