Síndrome de Flora
Se você é um daqueles afortunados, que pode assistir à novela das oito na programação da Vênus Platinada, com certeza deve estar perplexo com as peripécias e travessuras da mais nova vilã global. Flora é o nome da megera que atormenta a grandalhona e desengonçada Donatela.
Filha adotiva de Seu Pedro, Donatela é o foco das maldades de Flora. E chama atenção a fixação desta por tudo que rodeia a vida de sua irmã adotiva; obsessão que extrapola a rivalidade fraterna.
Rivalidade fraterna é o nome que se dá aos conflitos entre irmãos, que geralmente disputam pelo amor e atenção dos pais. Algo absolutamente normal em todas as famílias, e que com o passar do tempo, diante das confirmações do espaço de cada um na composição familiar, desaparece.
Aliás, a rivalidade entre irmãos na ficção é bem mais comum que se possa imaginar. Quem não se lembra, por exemplo, da história bíblica de Caim e Abel? E a história de José do Egito, que foi abandonado à sorte pelos próprios irmãos?
E não faltam na Literatura exemplos para esse tipo de desamor. Os contos de fada, por exemplo, estão repletos de personagens que amargaram a rivalidade de seus cruéis irmãozinhos. Lembra-se de Cinderela? Humilhada pelas filhas de sua madrasta?
Afora a rivalidade entre irmãos, também são conhecidos outros casos de rivalidade entre personagens da ficção. Um clássico é o relacionamento entre madrasta e enteada, como no conto, Branca de Neve, onde a protagonista é hostilizada pela madrasta por possuir beleza e juventude inigualável. Outro exemplo na Mitologia Grega é a deusa Hera que movida pelo ciúme é capaz de aterrorizar a vida de deuses e humanos.
No entanto, o que chama atenção em todas estas histórias é o sentimento que fomenta a obsessão e em muitos casos, o que é pior, a prática da perversidade e aniquilação das vítimas: a inveja.
A palavra inveja vem do latim, invidea. Segundo o dicionário Aurélio o vocábulo revela o sentimento desgostoso pela prosperidade ou alegria de outrem. É o desejo de possuir aquilo que os outros possuem.
Muitos confundem inveja com outros sentimentos que a ela se associam como o ciúme, a cobiça, a perversão, a vingança, a traição. Talvez por aglutinar sentimentos tão profundos e dilaceradores, este seja, dentre os sete pecados capitais, aquele mais difícil de lidar.
O poeta Ovídio utiliza a seguinte metáfora para exprimir a natureza da inveja:
“A inveja habita no fundo de um vale onde jamais se vê o sol. Nenhum vento o atravessa, ali reinam a tristeza e o frio, jamais se acende o fogo, há sempre trevas espessas (...). Assiste com despeito aos sucessos dos homens e este espetáculo a corrói, ao dilacerar os outros, ela se dilacera a si mesma, e este é seu suplício.”
Existe um paradoxo entre o desejo que o invejoso carrega pelo que pertence ao outro e a angústia que o atormenta por sentir-se infeliz diante do bem-estar daquele. Incapaz de comprazer-se com as vitórias e conquistas alheias, o invejoso remói dentro de si sentimentos torpes e desprezíveis.
E como se não bastasse querer o que o outro possui, o invejoso deseja estabelecer com tais coisas e pessoas, que são os objetos do seu querer, a mesma relação que seu invejado mantém com elas. Talvez por isso não lhe baste tê-las, pois o que ele busca é algo extremamente subjetivo e que é parte inerente ao outro e não pode ser subtraída, a não ser que seja subtraída daquele a própria vida, pois deixando de existir o invejado, deixa de existir também a sua subjetividade. E nisto está o perigo; quando o invejoso passa a desejar intensamente ser o outro.
Não é raro perceber no comportamento dos invejosos em potencial, a busca pela imitação. Para ele é importante mostrar-se igual ao invejado na aparência e, sobretudo na essência. Mas, nem sempre o invejoso percebe o processo que se desencadeia. Geralmente é pelos olhos de outras pessoas que essas distorções se evidenciam.
Falar sobre a inveja é tão complicado, que o autor Zuenir Ventura se dedicou por quase dois anos, aos estudos sobre o pecado capital mais conhecido por todos e talvez o mais complicado de abordar. Seus esforços renderam-lhe um livro de mesmo título “Inveja” que é um verdadeiro tratado sobre o assunto.
É difícil encontrar também alguém que assuma abertamente sentir inveja. E quando assume, geralmente procura disfarçá-la em outros sentimentos menos corrosivos. Criaram inclusive a tal inveja branca, ou seja, aquela que quer o que o outro tem, admira suas conquistas, mas não lhe deseja o mal.
Talvez seja difícil admitir, mas a inveja é parte da natureza dicotômica e complexa do ser humano. É a frustração extrema diante da impossibilidade de obtenção daquilo que se deseja. Acompanhada de profunda perplexidade perante a facilidade que outros têm em alcançar o que lhe é inviável.
Todavia, é muito sutil a teia que separa a inveja supostamente normal daquela que beira a insanidade e que pode alastrar-se de forma perniciosa. E é nessa segunda perspectiva que caminha a vilã de A Favorita.
Certamente o desfecho do folhetim televisivo seguirá o clichê: a inveja mata... E, provavelmente a loura maquiavélica expiará seus pecados nos capítulos finais. Mas note-se que se trata de uma novela, ou seja, o final feliz entre os invejados será certo.
No entanto, não é isso o que geralmente acontece fora da telinha, basta acompanhar os noticiários policiais. Por isso, cuide-se: pode haver uma Flora rondando a sua história.
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