SARAVÁ... SAMBA DA BÊNÇÃO
Se há uma música que me conquistou para sempre desde que a ouvi pela primeira vez, esta se chama “SAMBA DA BÊNÇÃO”, composta por Baden Powell – 06/08/1937-26/09/2000 (melodia) e Vinícius de Moraes 19/10/1913-09/07/1980 (letra), e que acabou sendo uma das agradáveis surpresas musicais de 1965, ano de seu lançamento.
Disposto numa estrutura ritmo-melódica muito simples (“naquela base bem baiana”, conforme dizia Vinícius), o estilo repetitivo, mas que não cansa, é a força principal deste samba. A melodia e o arranjo em si são de uma simplicidade incrível, evidenciando que o belo não precisa, em momento algum, ser sofisticado.
A composição chega a ser um bom exemplo de como um texto extremamente simples, mas muito bem engendrado e de comunicação imediata, pode valorizar alguns compassos musicais aparentemente despretensiosos.
Considerando-a como uma “receita de fazer samba”, Vinícius se qualifica como “o branco mais preto do Brasil, na linha direta de Xangô” e, em meio a inúmeros Saravás – daí o título deste artigo –, que acabam dando um certo toque cerimonial, ele presta bonita e singela homenagem a todos aqueles que contribuíram para a música popular brasileira, não esquecendo do parceiro Baden, autor da melodia e companheiro na gravação (ao violão). Nessa versão original há um acompanhamento com trombone, simplesmente irresistível, ao qual, infelizmente, não é dado o crédito e, mesmo através de muita pesquisa, também não consegui descobrir.
Essa música tem um fato histórico curioso. Em 1964, Vinícius estava em seus estertores diplomáticos em Paris (seria cassado pouco depois) a serviço da UNESCO. Na capital francesa conheceu o produtor cinematográfico Pierre Barouh, a quem vendeu o argumento de um filme chamado ‘ARRASTÃO’, que “no fim saiu uma porcaria”. Mais tarde, no Brasil, Pierre pediu a Vinícius e Baden uma gravação do ‘SAMBA DA BÊNÇÃO’, que levou para a França. Pouco depois (1966), Vinícius foi convidado a participar do júri do Festival de Cannes.
“Era o ano de lançamento do filme ‘UM HOMEM, UMA MULHER’, que foi exibido no Festival. Quando da apresentação, eu ouvi nossa música e levei um susto. Fiquei contentíssimo, é claro”, disse Vinícius.
Mas nem Vinícius, nem Baden apareciam como autores. Os créditos falavam em ‘música de Francis Lai e palavras de Pierre Barouh’, com a música sendo chamada de ‘Samba Saravah’. E a explicação do produtor Barouh era meio estranha:
— “Ah, você sabe, na versão do disco já saiu o seu nome...”
— “Isso, aqui na França, mas e no resto do mundo? Depois vão pensar que o samba é seu... E o meu parceiro, como é que fica?”, argumentou Vinícius.
Depois dessa conversa, o diplomata acabou indo ver o diretor do filme, Claude Lelouch, que lhe respondeu:
— “Olha, velho, se eu for fazer um corte no filme para incluir o teu nome e o do teu parceiro, vai custar uns 160.000 francos”.
— “Azar seu! Você vai botar senão eu vou te processar”.
E assim o nome da dupla brasileira passou a figurar no filme (embora, ao que parece, não em todas as cópias).
Recentemente ouvi essa canção cantada por Baden Powell em um CD lançado pela Warner Music Brasil, em 1997. E fiquei surpreso ao constatar um arranjo belíssimo com um trabalho de percussão irrepreensível. Baden canta e declama de forma quase idêntica a Vinícius, fazendo poucas e pequenas alterações, principalmente ao final, quando ele dá a sua bênção a compositores de épocas mais recentes, além de não esquecer de todos aqueles citados por Vinícius na gravação original.
E dessa gravação com Baden retirei duas frases declamadas por ele que não constam da gravação com Vinícius, e que me motivaram a escrever este artigo.
“Se todos os tristes quiserem ir juntos, toda tristeza vai se acabar”.
“Os cientistas russos acabaram de descobrir que a burrice não tem transplante”.
Tenho certeza que Vinícius concordaria com Baden em relação à primeira frase, mas com a segunda tenho minhas dúvidas.
Essa gravação com Baden é mais extensa do que aquela feita por Vinícius nos anos 60, possuindo um tempo total de 9 minutos e 36 segundos. Tem também um ritmo mais aguçado e marcante, deixando um pouco de lado aquela indolência gostosa com que Vinícius a imortalizou.
Existem outras gravações de “SAMBA DA BENÇÃO”, inclusive internacionais, mas nenhuma que supere a qualidade (não sonora, mas de sensibilidade) e o lirismo da versão original.
Deixo com vocês a letra completa da melodia, indicando os trechos cantados e declamados por Vinícius. Tenho minhas preferências por algumas frases, mas deixo a percepção de cada um falar mais alto, à medida que a leitura vai se desenvolvendo.
Se possível, ao som da bela melodia original que pode ser ouvida no link:
http://br.youtube.com/watch?v=SEevv9qJgGw&feature=related
SAMBA DA BÊNÇÃO
Vinícius de Moraes & Baden Powell
Do LP Elenco SE n° 1002, lançado em 1965
CANTADO
É melhor ser alegre que ser triste
A alegria é a melhor coisa que existe
É assim como a luz no coração
Mas pra fazer um samba com beleza
É preciso um bocado de tristeza
Preciso um bocado de tristeza
Senão não se faz um samba não
DECLAMADO
Senão é como amar uma mulher só linda
E daí? Uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza
Qualquer coisa de triste
Qualquer coisa que chora
Qualquer coisa que sente saudade
Um molejo de amor machucado
Uma beleza que vem da tristeza de se saber mulher
Feita apenas para amar
Para sofrer pelo seu amor
E pra ser só perdão
CANTADO
Fazer samba não é contar piada
Quem faz samba assim não é de nada
Um bom samba é uma forma de oração
Porque o samba é a tristeza que balança
E a tristeza tem sempre uma esperança
De um dia não ser mais triste não
DECLAMADO
Feito essa gente que anda por aí brincando com a vida
Cuidado, companheiro!
A vida é pra valer
E não se engane não
Tem uma só
Duas mesmo que é bom, ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus
E com firma reconhecida!
A vida não é de brincadeira, amigo,
A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela vida
Há sempre uma mulher à sua espera
Com os olhos cheios de carinho
E as mãos cheias de perdão
Ponha um pouco de amor na sua vida
Como no seu samba
CANTADO
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem o samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
DECLAMADO
Eu, por exemplo, o capitão do mato Vinícius de Moraes,
Poeta e diplomata, o branco mais preto do Brasil
Na linha direta de Xangô
Sarava!
A bênção, Senhora
A maior ialorixá da Bahia
Terra de Caymmi e João Gilberto
A bênção, Pixinguinha
Tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor
A bênção, Sinhô
Sua bênção, Cartola
A bênção, Ismael Silva
Sua bênção, Heitor dos Prazeres
A bênção, Nélson Cavaquinho
A bênção, Geraldo Pereira
A bênção, meu bom Cyro Monteiro
Você, sobrinho de Nono
A bênção, Noel
Sua bênção, Ary
A bênção, a todos os grandes sambistas do meu Brasil
Branco, preto, mulato
Lindo como a pele macia de Oxô
A bênção, maestro Antonio Carlos Jobim
Parceiro e amigo querido
Tu que já viajaste tantas canções comigo
E ainda há tantas a viajar
A bênção, Carlinhos Lyra
Parceiro cem por cento
Você que une a ação ao sentimento e ao pensamento
A bênção,
A bênção, Baden Powell
Amigo novo, parceiro novo
Que fizeste este samba comigo
A bênção, amigo
A bênção, maestro Moacyr Santos, que não és um só
És tantos, tantos como
O meu Brasil de todos os santos
Inclusive meu São Sebastião
Saravá!
A bênção, que eu vou partir
Eu vou ter que dizer adeus
CANTADO
Ponha um pouco de amor numa cadência
E vai ver que ninguém no mundo vence
A beleza que tem um samba, não
Porque o samba nasceu lá na Bahia
E se hoje ele é branco na poesia
Se hoje ele é branco na poesia
Ele é negro demais no coração
Referência bibliográfica:
História da Música Popular Brasileira – Disco e Fascículo
2ª. Edição - 1980