União sagrada para a vigarice sagrada

Éric Toussaint

O salvamento dos bancos e dos seguros privados realizado em setembro-outubro de 2008 constitui uma escolha política forte que não tinha nada de inelutável e que compromete o futuro em vários níveis decisivos.

Em primeiro lugar, o custo da operação fica inteiramente a cargo dos poderes públicos, o que implicará um aumento muito importante da dívida pública[1]. A crise capitalista atual, que durará ao menos vários anos, até mesmo uma dezena de anos[2], vai implicar uma redução das receitas do Estado enquanto aumentarão os seus encargos ligados ao reembolso da dívida. Em consequência, as pressões para reduzir as despesas sociais vão ser muito fortes.

Os governos da América do Norte e da Europa substituíram um andaime balouçante de dívidas privadas por uma montagem esmagadora de dívidas públicas. Segundo o banco Barclays, os governos europeus da zona euro em 2009 vão emitir novos títulos de dívida pública num montante que deveria atingir 925 bilhões de euros [3] . É uma soma colossal, sem contar as novas emissões de títulos do Tesouro pelos Estados Unidos, Grã-Bretanha, Japão, Canadá, etc. Entretanto, até recentemente, havia um consenso desses mesmos governos no sentido de reduzir a dívida pública. Os partidos da direita, do centro e da esquerda tradicional apoiaram todos a política de salvamento favorável aos grandes acionistas sob o pretexto falacioso de que não havia outras soluções para proteger a poupança da população e o funcionamento do sistema de crédito.

Esta união sagrada significa a transferência da fatura à maioria da população, que será convidada a pagar as travessuras dos capitalistas sob diferentes formas: redução dos serviços que o Estado fornece à população, perdas de emprego, baixa do poder de compra, aumento das contribuições dos pacientes para os cuidados de saúde, dos pais para a educação dos filhos, redução dos investimentos públicos... e um aumento dos impostos indiretos.

Como são financiadas atualmente as operações de salvamento que estão em curso na América do Norte e na Europa? O Estado contribui com dinheiro fresco para bancos e seguradoras à beira da falência, seja sob a forma de recapitalização seja sob a forma de compra dos ativos tóxicos das empresas referidas. O que fazem os bancos e as seguradoras com esse dinheiro fresco? Essencialmente, eles compram ativos seguros para substituir ativos tóxicos no seu balanço. Quais são os ativos mais seguros neste momento? Os títulos da dívida pública emitidos pelos Estados dos países mais industrializados (títulos do Tesouro dos EUA, da Alemanha, da França, da Bélgica...).

A fivela está afivelada: o Estado dá dinheiro às instituições financeiras privadas (Fortis, Dexia, ING, bancos franceses, britânicos, norte-americanos...). Para fazer isso, os Estados emitem títulos do Tesouro público que são subscritos por esses mesmos bancos e seguradoras, que são mantidos no setor privado (pois o Estado não pediu que o capital que ele concede lhe dê o direito de tomar as decisões, nem mesmo de participar nas votações) e que fazem novos lucros emprestando o dinheiro fresco que acabam de receber dos Estados[4],a esses mesmos Estados, exigindo naturalmente um juro máximo...

Essa enorme vigarice em curso beneficia-se da lei do silêncio. A omerta está em vigor entre os principais protagonistas: governos, banqueiros ladrões, seguradoras rufiãs. Os grandes media evitam cuidadosamente analisar até o fim o mecanismo de financiamento das operações de salvamento. Eles demoram-se nos pormenores: a árvore que esconde a floresta. Exemplo: a grande questão que se coloca na Bélgica a propósito do financiamento da recapitalização do Fortis, que fica sob o controle do BNP Paribas, é a seguinte: quanto valerá a acção do Fortis em 2012 quando o Estado que se tornou comprador poderá revendê-la? Naturalmente, ninguém pode responder seriamente a essa questão, mas isso não impede a imprensa de a ela consagrar páginas inteiras. Isto permite desviar a atenção. A filosofia e o mecanismo da operação de salvamento não são analisadas. Será preciso esperar que, graças à operação conjugada dos media alternativos, das organizações de cidadãos, das delegações sindicais e dos partidos políticos da esquerda radical[5], essa grande vigarice venha a ser compreendida por uma parte crescente da população e denunciada. Isso não será fácil, uma vez que o alarido é considerável.

À medida em que a crise se agravar nascerá um profundo mal-estar que se transformará em desafio político em relação aos governos que realizaram esse tipo de operação. Se o jogo político prosseguir sem grande perturbação, os governos de direita hoje no poder serão substituídos por governos de centro-esquerda que prosseguirão uma política social-liberal. Da mesma forma, os atuais governos sociais-liberais serão substituídos por governos de direita. Cada um por sua vez, eles criticarão a gestão dos seus antecessores afirmando que esvaziaram os cofres do Estado[6] e que não há margem de manobra para concessões às reivindicações sociais.

Não há nada de inelutável em político. Um outro cenário é inteiramente possível. Primeiro, é preciso afirmar que se pode perfeitamente salvar a poupança dos cidadãos e o sistema de crédito de uma outra maneira. Pode-se assegurar a proteção da poupança da população graças à colocação sob estatuto público das empresas de crédito e de seguros à beira da falência. Por outras palavras, trata-se de as estatizar ou de as nacionalizar. Isso significa que o Estado que se torna proprietário garante a responsabilidade da sua gestão. A fim de evitar que o custo desta operação recaia sobre a esmagadora maioria da população que não tem nenhuma responsabilidade na crise, os poderes públicos devem fazer pagar aqueles que estão na origem desta. Basta recuperar o custo do salvamento das empresas afetadas tomando um montante igual do patrimônio dos grandes acionistas e dos administradores. Evidentemente, isso implica levar em conta o conjunto desses patrimônios e não apenas a parte saída das sociedades financeiras em falência.

O Estado deve igualmente iniciar processos legais contra os acionistas e os administradores responsáveis pelo desastre financeiro, a fim de obter ao mesmo tempo reparações financeiras (que vão para além do custo imediato do salvamento) e condenações a penas de prisão se a culpabilidade for demonstrada. É preciso também tomar um imposto de crise sobre o grande capital a fim de financiar um fundo de solidariedade para as vítimas da crise (nomeadamente os desempregados) e para criar emprego em setores úteis para a sociedade.

Numerosas medidas complementares são necessárias: abertura da contabilidade das empresas com direito de vista às organizações sindicais, levantamento do segredo bancário, proibição dos paraísos fiscais a começar pela proibição às empresas de ter qualquer transação ou ativo que seja com ou num paraíso fiscal, imposto progressivo sobre as transações em divisas e sobre os produtos derivados, instauração do controle sobre os movimentos de capitais e sobre os câmbios, travagem de toda nova medida de desregulamentação/liberalização dos mercados e dos serviços públicos, retorno a serviços públicos de qualidade... O agravamento da crise remeterá à ordem do dia a questão da transferência de setores industriais e de serviços privados para o setor público, assim como a questão da execução de planos vastos para a criação de empregos.

Tudo isso permitiria sair desta crise grave pelo alto, a saber, levando em conta o interesses das populações. Trata-se de reunir as energias para criar uma relação de forças favorável à colocação em prática das soluções radicais que têm como prioridade a justiça social.

Notas:

|1| Do lado dos governos e da Comissão Européia, no entanto encarregada de velar pelo respeito às normas de Maastricht, evita-se cuidadosamente o assunto. Quando os jornalistas se tornam realmente insistente, o que é muito raro, é-lhes respondido que não se tinha escolha. É preciso também precisar que vários governos realizam, tal como os bancos falidos, operações fora do balanço ou fora do orçamento a fim de dissimular o montante exato das suas obrigações em termos de dívidas publicas.

|2| Pode-se comparar com a crise em que se debateu o Japão a partir do princípio dos anos 1990 e de que ele saiu só quando esta crise o atingiu com plena intensidade.

|3| Segundo o Barclays, esta soma seria repartida como se segue: 238 bilhões para a Alemanha, 220 bilhões para a Itália, 175 bilhões para a França, 80 bilhões para a Espanha, 69,5 bilhões para os Países Baixos, 53 bilhões para a Grécia, 32 bilhões para a Áustria, 24 bilhões para a Bélgica, 15 bilhões para a Irlanda e 12 bilhões para Portugal.

|4| Naturalmente, o dinheiro fresco oferecido pelo Estado não será utilizado unicamente para a compra de títulos do Tesouro, servirá igualmente para novas reestruturações bancárias assim como para o lucro direto dos bancos.

|5| Esperemos que se possa contar igualmente com parlamentares que façam sua tarefa e com jornalistas que nos grandes media desejem realmente analisar de modo crítico a maneira como o salvamento bancário é até agora realizado.

|6| Eles poderiam denunciar isto ou tentar agir desde já no interior das instituições parlamentares. Se não o fazem, então é evidente que sabem perfeitamente que a dívida pública vai aumentar fortemente, é que eles concordam com a orientação escolhida. De fato, eles escolheram a união sagrada que romperão com o aproximar das eleições.

O original encontra-se em http://www.cadtm.org/spip.php?article3845

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/

Éric Toussaint é presidente do Comitê pela Anulação da Dívida do Terceiro Mundo da Belgique (CADTM); é formado em história e doutor em ciências politicas pela Universidade de Liège (ULg) e de Paris VIII; é membro do conselho científico de Attac France, da rede científica de Attac Belgique e do conselho internacional do Forum Social Mundial; também é membro do comitê internacional da Quarta Internacional e da sua seção belga (LCR-SAP).

Carlos Henrique Marques
Enviado por Carlos Henrique Marques em 24/11/2008
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