A questão do sofrimento (Sermo 14)

A QUESTÃO DO SOFRIMENTO

Agora eu me alegro de sofrer por vocês,

pois vou completando em minha carne

o que falta nas tribulações de Cristo

(São Paulo. In Carta aos Colossenses 1, 24).

Depois que falei aqui sobre curas e milagres, fui provocado a falar em uma alocução futura a respeito de algo que assusta e questiona os seres humanos e, sobretudo os cristãos: o sofrimento. Em minha tese de Doutorado, que versou sobre a existência do mal, destaco que mal e sofrimento, por raízes e conseqüências estão umbilicalmente ligados à mesma cadeia de juízos. O sofrimento é, milenarmente, a grande questão, para muitos insolúvel, levantada pela humanidade. Paralelamente a uma visão fisiológica, filosófica e psicológica, há que se perquirir a existência de um enfoque sobre o sentido cristão do sofrimento.

Deus nem Jesus Cristo são aqueles sádicos que os ateus acusam, que geram e gozam com o sofrimento humano. Precisamos ver no sofrimento as mesmas raízes da morte: a fraqueza, a vulnerabilidade, a decomposição em potencial. A providência e o carinho de Deus nos protegem, mas certas coisas, determinadas circunstâncias, como doenças ou casos fortuitos são inevitáveis. É um erro, se não uma blasfêmia, afirmar que “foi Deus que mandou esse sofrimento!”. O sofrimento é conseqüência da fraqueza de nossa matéria.

Da mesma forma, não podemos esperar que Deus interfira diretamente em nossas atividades particulares. Como aceitar que um jovem estudante peça a Deus que lhe dê aprovação num exame vestibular e, tendo feito o pedido com as palavras certas, como se fosse um passe de mágica, obtenha a aprovação? Como ficariam outras dezenas ou centenas de jovens que, apesar de se terem esforçado, estudado convenientemente, não tendo falado as palavras certas para o pedido a Deus, percam a vaga em favor daquele que, mesmo não tendo se esforçado tanto, rezou melhor?

Deus não quer o sofrimento de ninguém e nem é autor deles, mas nos dá o entendimento para que ele seja utilizado em nosso benefício. Provas e tribulações fortalecem e moldam o nosso caráter. Fazem de nós pessoas e cristãos melhores. O martelo e o cinzel do artista não machucam o granito, mas preparam-no para se tornar uma obra de arte. Desta forma deve ser encarado o sofrimento humano. Jesus não é o autor da dor, mas quando sofremos ele se coloca ao nosso lado.

As doenças e os sofrimentos parecem contradizer as grandes expectativas criadas pelo progresso científico e pelo controle da natureza a partir do final do século XIX. Acreditou-se que a ciência resolveria todos os problemas da humanidade, incluindo a doença. No entanto, apesar do avanço da medicina, o homem continua uma presa fácil de muitas feridas que constantemente nos espreitam e não nos deixam esquecer o domínio da morte.

Numa sociedade de bem estar e de gozo da vida sem limites, como a nossa, as pessoas parecem não estar preparadas para as doenças, para o sofrimento ou para a morte. As culturas orientais assimilam melhor essas perdas. O sofrimento, pelo inexplicável que traz consigo, abre feridas dolorosas e causa dramas profundos que atingem pessoas, famílias e grupos sociais.

Se Deus é o autor e o Senhor da vida humana, qual a resposta que a religião dá à doença, qual o remédio que apresenta às feridas da humanidade? Os doentes procuram, por todos os meios e caminhos, a cura. Que respostas nossa Igreja dá a seus crentes? A doença sempre questiona a fé.

A dor, o sofrimento e a corrupção física são fatores a que o corpo humano não está imune. Mais ainda; são coisas e ameaças das quais – uns mais, outros menos – ninguém escapa. É difícil entender o sofrimento. Mais difícil ainda é buscar, de males físicos, explicações espirituais, tais como “vontade de Deus”, “trabalho de bruxaria”, “olho grande”, “carma” ou destino. Em uma revista cristã (recortei e não tirei o nome da publicação), li uma carta de uma jovem, Doris Lussier, de dezoito anos, paciente terminal:

O que acho lindo na existência humana, apesar de sua aparente crueldade, é que para mim morrer não é terminar, mas continuar diferente. Um ser humano que se apaga, não é um mortal que termina; é um imortal que começa. O caixão é um berço. E a última noite de nossa vida temporal é a primeira manhã de nossa eternidade. Pois a morte não é uma queda na escuridão, mas um salto na luz. Quando se tem a vida, só pode ser para sempre... A morte não pode matar o que não morre. Ora, nossa alma é imortal. Há somente uma coisa que pode justificar a morte: a imortalidade.

Já escutei alguém questionar: “Por que sofro, se tento ser bom?” É a velha questão de Epicuro e do drama de Jó. Por que Deus não evita o mal? Por que não salvou o Filho na cruz (meu Deus, por que me abandonaste?). É preciso ver com olhos de fé; só com fé se pode compreender e enfrentar o mistério do mal. Na hora do desespero, pessoas clamam (e até blasfemam), reclamando alguma providência que entendem que Deus deveria ter tomado e não tomou: Meu Deus, por que?

O Deus-em-si (o deus dos filósofos e dos racionalistas) não é o Deus-para-nós (o Deus dos que têm fé). Não se pode pensar em Deus isolando-o do mal. Se assim fosse, a quem recorreríamos? O cristão sabe e crê que seu Deus não pode e não deve ser poupado do problema do mal. É isto que devemos fazer: depositar o problema in Deo. Passar o problema para ele. Sobre esta questão, há um aforismo profundo e questionador, que diz: “Não diga a seu Deus o tamanho do seu sofrimento (ele sabe); diga ao sofrimento, o tamanho do seu Deus”. Nessa mesma linha de raciocínio, há um interessante texto de Chiara Lubich († 2008) que vale a pena refletir:

Jesus deixa que experimentemos a nossa incapacidade, certamente não com a intenção de nos desencorajar, mas para fazer-nos experimentar o extraordinário poder da sua graça, que se manifesta justamente quando parece que nossas forças não vão resistir, a fim de nos ajudar a entender melhor o seu amor. Porém, com uma condição: que tenhamos uma total confiança nele, como uma criancinha que confia na sua mãe.

A parábola do trigo e do joio nos fala do Reino de Deus na etapa atual do seu desenvolvimento: hoje, a semente boa do Reino convive com o joio. O bem e o mal crescem juntos. Aceita essa condição e perspectiva; é fundamental saber assumir as ambigüidades da própria vida. Assumindo essa condição, a atitude que se espera é de luta contra o mal de forma realista. Para isso é preciso superar o instinto de vingança que paga o mal com o mal.

Neste sentido a resposta de Jesus é clara: trata-se de retribuir o mal com o bem, numa atitude de amor-serviço gratuito, que é fruto da experiência da gratuidade com que Deus nos ama. Esse vencer o mal com o bem não significa resignação passiva. Implica, ao contrário, um empenho positivo que compromete muito mais radicalmente do que as atitudes de vingança ou a aplicação da velha lei judaica do Talião.

Nisso, Jesus é paradigmático, pois agiu contra a doença, curando (Mc 1,34); contra o pecado, perdoando (Lc 23,34) e não cometendo ele mesmo nenhum pecado (Jo 8,46). Jesus agiu contra o mal fazendo unicamente o bem (Mc 3,4). Agiu contra o ódio (Jo 7,7; 15,18), amando até a morte. E morte de cruz. Ao invés de julgar o mundo, o salvou (Jo 3,17).

Mas devemos nos propor outra questão: Que pensar de quem, apesar de tudo, não obtém a cura? Será que não tem fé, ou Deus não o ama? Se a persistência de uma enfermidade fosse sinal de que uma pessoa não tem fé, ou de que Deus não a ama, haveríamos de concluir que os santos eram os mais pobres de fé e os menos amados por Deus, porque alguns passaram a vida na cama, sofrendo dores atrozes. A resposta é outra.

Uma mulher, doente terminal, revelou ao confessor, um amigo meu,que nas suas dores havia entendido o significado profundo de “um Deus crucificado”: o Deus ressuscitado de amanhã. Sim, Cristo misteriosamente quer dispor de nossos sofrimentos para “completar o que falta à sua paixão” (cf. Cl 1,24).

O poder de Deus não se manifesta só de um modo – eliminando o mal, curando fisicamente – senão também dando a capacidade, e às vezes até a alegria, de levar a própria cruz com Cristo, completando o que falta a seus padecimentos. Cristo redimiu também o sofrimento e a morte. Esta já não é sinal do pecado, participação na culpa de Adão, mas que é instrumento de redenção.

Vários textos bíblicos, e a cruz é o mais claro deles, revelam que diante da perspectiva do mal, Deus não procurou ser poupado (cf. Rm 8,32). Assim, seria uma descomunal blasfêmia até, na hora do perigo, o crente não lançar as trevas do mal que o assolam à luz do poder divino. Por maior que sejam, a dor e o sofrimento, eles não podem nos fazer esquecer a ação de Deus, pelo poder, pela presença, pela esperança e pelo consolo. É sobre isto que o pensador francês George Bernanos († 1948) nos adverte:

A última das imprudências é a prudência, quando ela nos

prepara suavemente para dispensar Deus.

Não há meios de se entender o mal e o sofrimento enquanto não mergulharmos profundamente no mistério de Deus, entendendo-o. Assim como ao fiel não é lícito negar a Deus, igualmente ele não deve poupar a Deus, excluindo-o da solução do problema de seus males. As frases bíblicas “Deus onde estás?” e “Meu Deus, por que me abandonaste?”, devem fazer parte de nosso repertório de clamores. Um dia, julgando-se perdido e abandonado, o povo clamou a Deus. Algum tempo depois, breve, ele escutou a resposta:

Eu ouvi muito bem a miséria do meu povo que está no Egito.

Ouvi o seu clamor contra seus opressores, e conheço os seus

sofrimentos. Por isso, desci para libertá-lo do poder dos

egípcios... (Ex 3,7s).

A pessoa que tem fé deve, na hora da angústia, inquirir a Deus, ou, para usar a linguagem profética, “abrir processo contra”, dirigir-se a ele com respeito mas também com veemência de quem sabe que só dele pode vir a resposta e a solução. Em um determinado momento, no desespero do sofrimento, o salmista bradou (no que foi, mais tarde, repetido por Jesus na cruz):

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?

(Sl 22,2; Mt 27,46).

Esta veemência, ao contrário do que alguns puristas possam argumentar, é nítida expressão de fé. O erro seria fechar-se, dizer “não tem mais jeito”, “não adianta mais... sem solução”. Não! Tem solução, sim. Deus é a nossa solução. Só com ele podemos vencer o mal. O mal é algo monstruoso para que se possa olhá-lo sem se escandalizar. Ao menos sem se espantar e sem se surpreender. O erro de certas teodicéias é encobrir, logo de início, esse espanto e esse escândalo. A esse preço, a defesa de Deus se torna totalmente inoperante, o que, evidentemente, não nos alegra. O discurso sobre Deus e o mal, não pode impedir o grito que o homem dirige a Deus.

Ao pretender inocentar Deus, de forma tão radical, não estariam alguns expulsando-o do problema, quando o salutar seria que ele aí estivesse presente? O ateu o exclui por falta (Deus não existe!). O inconseqüente o exclui por excesso (vamos deixar Deus fora disto!). E com isto, o homem sofre sozinho, fica órfão de consolo e às vezes morre revoltado. A resposta à questão do mal – por que sofro? - pode ser for formulada em três etapas concêntricas: eu sofro,

• porque sou pecador (mal moral);

• porque sou fraco, física e psicologicamente (doenças,

frustrações, depressão, etc.), e por certos males inevitáveis

como enchentes, furacões, etc. (mal físico);

• porque o Diabo tem inveja de mim (mal metafísico).

Questionado por Jó (cap. 38), a respeito do sofrimento injusto, Deus responde com outra pergunta:

Onde você estava quando eu coloquei os fundamentos da

terra? (v.4)

Isto equivale a dizer: “Quem é você para questionar minhas decisões e contestar meus projetos?” Diante do mistério, Jó não sabe o que responder. Ele se curva e se entrega; é incapaz de desvendar a questão do mal. O ser humano pode ser muito inteligente, estudar, ter um raciocínio brilhante, possuir uma enorme biblioteca. Mas tem uma hora, que, como Jó, ele precisa reconhecer que não pode compreender tudo. Então é a hora de baixar a cabeça e entregar-se ao mistério. Deus não quer a doença nem o sofrimento que dela decorre. Pelo contrário, ele quer salvar e curar. A palavra do profeta Ezequiel confirma esta assertiva:

Eu mesmo vou procurar as minhas ovelhas, diz o Senhor.

Procurarei aquela que se perder; trarei de volta a que se

desgarrar, curarei a que se machucar e fortalecerei a que

estiver fraca (cf. 34, 13-16).

Para curar e mitigar os sofrimentos ele mandou seu filho Jesus, para que liberte todos quantos se acham sob o jugo da escravidão do pecado, da opressão sociopolitica e de todas as enfermidades e alienações que sacrificam os seres humanos.

O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Notícia aos pobres, enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos e enfermos a restauração; para libertar os oprimidos e proclamar um ano de graça do Senhor (Lc 4,18s).

Por causa de nossa constituição débil e frágil, o sofrimento e a dor, sempre, de uma forma ou de outra, vêm bater na nossa porta; são as incidências da doença, da velhice, do desemprego, da fome, da ruptura de alguma amizade, laços de parentesco ou casamento. Há também a dor da morte.

Onde está a origem disto? Em muitos casos não sabemos como chegam esses problemas. O que sabemos – eu sei disto – é que tais percalços não têm origem em Deus. Ele não quer o sofrimento nem a morte do pecador, mas que se converta e viva (cf. Ez 18,23). O Espírito de Deus cura, consola, faz o milagre e dá coragem e resignação.

Há casos em que o doente tem fé, a comunidade ora bastante e a cura não acontece; o doente acaba morrendo em meio a muitos sofrimentos. É aí que deve funcionar a fé. Se Deus fosse escutar todas as orações de doentes, acidentados e idosos, ninguém morria mais. Sabemos que não é assim que funciona. A oração ajuda em muitas curas, mas não é infalível. Por que, então?

No terreno do mistério – e este assunto não pode ser ignorado – existe um projeto de Deus, onde todos vão morrer – é natural – cada um ao seu jeito e na hora determinada. O morrer faz parte da vida humana. Em alguns casos a morte é serena; em outros eivada de sofrimentos. O porquê disto ninguém sabe. Deus, porém, sabe de tudo e vai fazer o melhor por aquela pessoa. A infelicidade terrena de uma doença não é motivo de desespero. Há coisas melhores pela frente. Pensar só no hoje, na vida física, convenhamos, é muita pobreza de espírito.

Na ocorrência do sofrimento Deus se faz presente em espírito e em pessoa (pela Igreja), dando ao enfermo o consolo e estabelecendo aquela pedagogia que prepara a pessoa para o “grande encontro”. Querer saber mais do que isto, ou contestar esse plano e, no mínimo, uma heresia.

A tanatologia, uma ciência moderna que estuda as realidades da morte, tem pesquisado, mais que a morte, a forma de ajudar as pessoas a conviver com a proximidade dela. Expoente nesse campo é a Dra. Elizabeth Kuebler-Ross († 2004), uma psiquiatra suíça que estabeleceu as “cinco fases diante da morte”, fases estas que são vividas não só pelo doente, mas também pela família.

PRIMEIRA FASE

choque, incredibilidade - “não pode ser! Trocaram os exames!” A pessoa não aceita; isola-se;

SEGUNDA FASE

é a fase da ira, do rancor, da revolta e da inveja (é a fase mais difícil e que carece de um maior acompanhamento, médico, psicoterapêutico, religioso e familiar). Surgem perguntas como, “por que eu? por que já? que Deus é esse? Se ele existisse não faria isso comigo!

TERCEIRA FASE

é a etapa da “negociação”; a pessoa busca prolongar sua vida através de barganhas, com Deus, em diversas religiões e seitas; surgem as rezas, as esmolas, o sacramentalismo;

QUARTA FASE

acontece a depressão: surge o sentimento do irreparável; é o outro lado do medo; a pessoa com complexos de culpa tem mais dificuldade em sair da depressão. Mais sacramentos, maior presença de Deus, menos complexos de culpa perto da morte; a pessoa com esses complexos, morre amargurada, o que impede a fase seguinte;

QUINTA FASE

nesta fase há aceitação (quase que uma “aprovação) da situação; a pessoa torna-se solidária, capaz de ajudar outras pessoas nas mesmas condições; começa, de fato, a se preparar para a morte.

De uma forma ou de outra, a família também vive as mesmas fases e carece, igualmente, de um acompanhamento pastoral. É curioso que as “cinco fases” ocorrem de uma forma quase espontânea, muitas vezes independente da influência do médico, do psiquiatra, da família e do conselheiro religioso. Nos escritos inspirados de São Paulo encontramos alguns exemplos de como a força de Deus era capaz de dar-lhe o conforto nos sofrimentos:

Quando sou fraco, então é que sou forte (2Cor 12, 10).

Agora eu me alegro de sofrer por vocês, pois vou completando em minha carne o que falta nas tribulações de Cristo, a favor de seu corpo, que é a Igreja (Cl 1, 24).

A dor, é indiscutível, é um mistério, agregado à fragilidade de nossa carne. Ela pode ter três características:

• purifica (se aceita com espírito cristão de fé e esperança);

• leva o homem a refletir sobre sua fraqueza e finitude;

• pode levar ao desespero e à perdição, se recebida com

revolta ou como castigo.

É claro que na hora da dor choramos a partida de nossos entes queridos. E como sentimos! Jesus também chorou a morte de Lázaro, seu amigo. Benditas lágrimas de amor e saudade! Mas enquanto o lenço de pano enxuga as lágrimas dos olhos, a lenço da fé e da esperança cristã enxuga a lágrima do coração. Na hora da tristeza e da dor, só a fé e a esperança no Deus da vida podem dar a resposta e o consolo. O sofrimento aceito com fé e esperança, atua como um purgatório, abreviando o encontro definitivo com Deus, constante em seu projeto.

É preciso – e é difícil teorizar nesse assunto – celebrar o sofrimento. Eu me baseio, entre outros, no caso do Padre Léo, S.C.J que mesmo devorado por uma doença pertinaz (um linfoma) nunca perdeu a esperança, a fé e a alegria. Nos últimos momentos, antes de morrer, havendo perdido todos os cabelos por causa da quimioterapia, ainda comparecia aos programas da Rede “Canção Nova”, emocionando a todos com sua firmeza e coragem. Mesmo às portas da morte, com muitas dores, por certo, ele nunca revelou desespero, perda de confiança em Deus e revolta.

A verdade – e é preciso ter olhos de fé para intuir isto – o leito do doente é o altar da sua salvação e estágio preliminar e vestibular para a vida plena. Se não for assim, a revolta e o desespero são inevitáveis. Eu sempre digo que na hora da morte vem Jesus, a Virgem Maria, os santos e aos anjos. Mas vem também o maligno para deflagrar a última batalha, trazendo consigo lembranças, remorsos, coisas pendentes. O apoio pastoral e familiar nesta hora é fundamental para o futuro do doente.

É por isto que eu repito que é preciso celebrar o sofrimento, pois ele gera purificação e libertação. A dor, que não deixa de existir, assume um caráter de aceitação e entrega. Um sofrimento que não é bem administrado gera mais sofrimento para nós e para os que nos cercam. No desespero, sofremos e aumentamos os sofrimentos de parentes de amigos. A cruz rejeitada se torna um peso insuportável. É preciso orar para que Deus

• nos livre do mal, da dor e do sofrimento;

• nos dê a coragem para suportar e viver a dor;

• aceitar as nossas limitações físicas e psíquicas;

• nunca nos deixe cair em desespero;

• nos mantenha preparados caso o nosso sofrimento não tenha

aquela solução que nós gostaríamos que tivesse;

• nos perdoe por algum eventual desespero e falta de fé;

• na hora da morte nos leve no seu colo à morada celeste.

Uma vez, durante uma celebração de exéquias, uma pessoa mostrava-se muito triste, por haver perdido o pai. Foi quando alguém lhe falou a respeito dos navios que avançam mar adentro. Primeiro, como a vida, o navio está diante de nós, enorme, bonito, colorido. Depois vai diminuindo até desaparecer. Na verdade, ele não desapareceu, apenas avançou e agora singra águas mais profundas. Nós não o enxergamos (por deficiência de nossa visão e por causa da curvatura terrestre), mas ele está lá, do mesmo jeito que o vimos antes. A pessoa que morre, não desaparece; apenas singra outras águas: as águas de Deus. Nós, às vezes – diante de uma contrariedade – perguntamos: “O que eu fiz pra merecer isso?” ou, “Por que Deus tinha que fazer isso justo comigo?”.

Agora eu me alegro de sofrer por vocês, pois vou

completando em minha carne o que falta nas tribulações

de Cristo.

Na vida, a cruz aparece como um gesto corajoso da livre decisão de Jesus, na medida em que ele decidiu ser fiel ao projeto do Pai e do Reino. Deus não quis a morte do seu Filho, mas não poderia evitá-la sem contrariar a liberdade humana e alterar os caminhos da história. O que parecia ser uma vitória do mal, acabou sendo revertido em glória. Ressalta-se na Ressurreição de Cristo, mais que nunca, a luta de Deus contra o mal. Vamos refletir uma historieta:

A garota disse à mãe como tudo ia errado na sua vida. Ela não se saíra bem na prova de matemática. Brigou com o namorado. E sua melhor amiga estava de mudança para outra cidade.

Em horas de amargura, aquela mãe sabia como agradar a filha, preparando-lhe seu bolo predileto. Naquele momento não foi diferente. Abraçou a menina e levou-a à cozinha, conseguindo arrancar da filha um sorriso sincero. Logo que a mãe separou os utensílios e ingredientes que usaria, a mulher perguntou à filha: “Querida, vai querer comer do meu bolo?”. A filha respondeu de pronto: “É claro que quero, mamãe, seus bolos são maravilhosos!”. Disse a mãe; ”Então está bem, beba um pouco deste óleo de cozinha!”. Assustada, a moça respondeu: “Credo, mãe!” E o diálogo prosseguiu: “Que tal, então, comer ovos crus, filha?”. “Que nojo, mãe!”. “Quer então um pouquinho de farinha de trigo ou bicarbonato de sódio?”. “Mãe, isto não presta!”. A mãe então, com aquela ternura que só as mães têm, respondeu: “É verdade, filha, todas essas coisas parecem ruins sozinhas, mas quando as juntamos, na medida certa, ficam uma delícia...

Deus trabalha do mesmo jeito. Às vezes a gente se pergunta por que ele quis que nós passássemos por momentos difíceis. Mas Deus sabe que quando ele coloca todas as coisas na ordem exata, elas sempre nos farão bem. A gente só precisa confiar nele e todas essas coisas ruins se tornarão algo fantástico. Deus é louco por você! Ele te manda flores em todas as primaveras... faz nascer o sol todas as manhãs... E sempre que você quiser conversar, ele vai te ouvir! Ele pode viver em qualquer lugar do universo, e escolheu o seu coração”.

Acho que esta mensagem é endereçada ao coração de todas as pessoas (inclusive ao meu), que não têm uma noção exata sobre a origem do mal e do sofrimento. O grande desafio do teólogo, na questão do mal, é ir até o fim, pelo menos até onde sua inteligência alcança, e o bom senso fixa seus limites. A questão do mal, como problema do homem também interessa a Deus. Como diz Bernanos,

Parece-me que a dor verdadeira que afeta o homem, passa

primeiro por Deus.

Os sacramentos, como sinais do amor de Deus funcionam como bálsamo em favor de quem sofre, especialmente dos doentes. A Eucaristia, a Unção dos Enfermos e a Penitência têm um poder curativo acima do que muita gente sem fé imagina. O cristão tem obrigação – mais que isto, o dever irrecusável – de encaminhar o doente, a pessoa em risco de morte ou o moribundo a esses sacramentos.

Quanto mais cedo, aproveitando o estado de consciência do doente, melhor. Quem se omitir nesses casos pode estar colaborando com a perdição eterna do doente. É tolice imaginar que a pessoa enferma vai se assustar com a presença do padre. Assustam-se os parentes e amigos preconceituosos e de pouca fé; o doente jamais. É como escutei um cidadão dizer: “Prefiro minha mãe ‘assustada’ entrando no céu, do que ‘tranqüila’ indo para não-sei-onde”. É tudo uma questão de fé.

Temos fé? Fé de verdade? Conta uma historinha que um acrobata fixou um cabo de aço entre dois edifícios onde, num espaço de cem metros atravessava por ali todas as noites com um frágil carrinho de mão. Numa daqueles perguntou ao ajudante que o auxiliava a firmar os cabos: “Você acha que hoje vou conseguir atravessar o cabo e voltar?” O rapaz respondeu de imediato: “Claro, você já fez isto tantas vezes!”. O acrobata insistiu: “Acreditas mesmo?”. O outro respondeu com firmeza: “Sim, sem dúvidas!”. Então veio o desafio: “Hoje vais sentar no carrinho e atravessar o espaço comigo”. O rapaz deu um salto: “Ah, isso não! Tá louco?”. Alguns se dizem crentes, mas quando a vida apresenta-lhe o “carrinho do sofrimento”, nessa hora muitos querem pular fora.

A teologia – diferente do que costuma acontecer com outras ciências – deve fazer da questão do mal um debate prioritário, um problema interior à sua própria forma de sentir, porque assim ela induz o sofredor a pensar Deus até o fim. Aceitam-se o que Deus tem para nós, nosso mal se transforma em bem, e o nosso dia-a-dia torna-se como um “pedaço de bolo”. Daquele bolo que mais gostamos, feito pela nossa mãe. Se nos entregamos ao amor de Deus, nossos fantasmas se convertem em anjos, e nossas dores em alegria.

Em geral concebido sob os auspícios de uma carência, pelo pensamento teológico, ou de uma degradação progressiva do ser, o mal e o sofrimento estão presentes no movimento dialético sob a forma binária que erro que se contrapõe à verdade, ou do trabalho necessário à luta do escravo por sua liberdade, tornando-se assim o “motor da história”.

Como questões respondíveis, embora não se queira afirmar nada definitivo, ainda, relacionamos:

• o que é o mal? Ora, o mal é tudo aquilo que contraria o bem,

o equilíbrio, a felicidade e a plena realização de nossos

projetos. O mal é visto como uma “privação do bem”;

• de onde vem o mal? Nós sempre temos respostas prontas.

Ele vem de nós mesmos, dos outros, da natureza e do

sobrenatural.

Oriundo de nós mesmos, de nossa natureza, vemos o mal que é fruto das doenças. Elas se maturam dentro de nós, como resultante de nosso desleixo (não tomar a medicação adequada, falta de cuidado na alimentação, descuido com a forma física, etc.), também por problemas genéticos, congênitos ou hereditários (doenças mentais na família, deficiências físicas, gestações em idade avançada, vícios como bebida, tabagismo, drogas, país com sífilis ou outros distúrbios capazes de prejudicar a posteridade). A doença, em geral vai ganhando espaços dentro de nós. Não é um castigo ou preço a pagar, como querem alguns mal informados ou vacilantes na sua fé. É uma coisa natural da vida.

O desleixo com a saúde, alimentação e meio-ambiente é capaz de gerar organismos deficientes, pessoas fracas e suscetíveis às enfermidades. Outros atribuem o sofrimento a outras causas, como “mau-olhado”, “inveja” ou até os irracionais “carmas” das doutrinas espiritualistas.

O mal que mais aterroriza as pessoas, pela virulência das dores que provoca e pela perspectiva de doença terminal, é o câncer. Embora a oncologia haja dado passos fabulosos na direção de curas e terapias positivas, muita gente ainda morre dessa doença. Sobre este tema angustiante, fui me socorrer de um texto da Dra. Regina Fernandes, alguém que sobreviveu ao câncer:

Pesquisas realizadas por médicos, oncologistas e psicólogos, estudiosos dos fatores que, de alguma maneira contribuem para o desenvolvimento do câncer, puderam identificar que, em alguns casos, para o aparecimento de um tumor são necessárias três condições:

a)um conflito pessoal muito dramático;

b) um conflito prolongado;

c) um conflito acompanhado de um estado de solidão e

fechamento psicológico.

Em termos biológicos, esses conflitos desorganizam o campo magnético do encéfalo. Essa zona que se desorganiza está relacionada à natureza e ao conteúdo do conflito. Em razão dessa desestruturação, mensagens confusas são enviadas ao cérebro, às células. Inicia-se então uma proliferação celular desorganizada em algum órgão. Tudo o que acontece na mente, imediatamente gera uma reação no corpo (In: Câncer. Renascendo para a vida. Ed. Ave-Maria, 2005).

No tocante ao mal que “vem dos outros”, é aquele que acontece através da violência, dos acidentes, e pelos descaminhos políticos que geram sofrimentos, etc. A natureza, às vezes, produz o mal: são as enchentes, os furacões, maremotos, secas, etc. Há também o sobrenatural, o mistério do pecado (que a maioria dos especialistas chama de “mal moral”, a influência negativa dos “trabalhos” de macumba, do “olho-grande” (estes, na verdade não existem e como tal não têm poder. Mas se acreditamos neles, essa crença acaba nos dominando e prejudicando o lado psicológico), e a influência dos “espíritos maus”.

Por fim, retornamos à pergunta? Por que sofremos? Sofremos porque somos fracos, vulneráveis, frágeis às doenças, às agressões, aos fenômenos da natureza e às ameaças metafísicas, o medo, o pecado e coisas do gênero. Sofremos porque muitas vezes nós mesmos geramos nosso próprio sofrimento. Estas respostas são o que de mais superficial existe. Elas foram colocadas aqui, na abertura do trabalho, para orientar o raciocínio e abrir caminho para uma especulação mais concreta. Tudo faz parte de um enorme contexto a ser mais debatido e ampliado. Infelizmente, talvez por falta de uma iluminação maior, ainda temos – muitos de nós – medo de debater esse assunto.

É interessante chamar a atenção no fato de, por causa da problemática do mal e o sofrimento dele decorrente, as religiões enfrentam grandes dificuldades em lidar com a questão, especialmente na hora de explicar uma circunstância trágica, justificar uma perda ou definir algo imprevisto. A alegação “foi vontade de Deus” não satisfaz mais os porquês do homem moderno.

No terreno das conceituações, parece que todo mundo tem sua definição a respeito do mal. Cria-se a impressão, em muitos casos que as pessoas têm uma resposta pronta, do tipo receita de bolo, para definir intuitivamente o mal.

Recordo que, quando digitava minha tese de doutoraodo, fui a um churrasco na comunidade em que faço parte, e lá, entre um assunto e outro, falei a algumas pessoas sobre minha dissertação sobre o mal. Incontinenti, um cidadão, de idade avançada, hoje falecido, e que andou fazendo alguns cursos de “teologia popular”, tomou a palavra e “dissertou” sobre o bem e o mal, dizendo coisas inconsistentes e incongruentes, com uma visão totalmente irracional, superficial e fruto de uma espiritualidade distorcida. Fiquei imaginando a resposta que uma pessoa dessas daria a alguém, na hora de uma adversidade ou de uma tragédia.

E nós, sabemos identificar o mal? Sabemos explicar o sofrimento? Somos capazes de avaliar, de forma cristã e inteligente, seu estrago na vida das pessoas e na nossa? As pessoas, em geral, têm respostas e julgamentos para todas as circunstâncias, sempre no aspecto empírico, na teoria dos achismos cotidianos. Saberão converter a teoria, na hora do desastre?

O mal, antes de ser um problema ou mistério, é um fato universal da experiência humana que dispensa demonstração. A todos afeta, independentemente de raça, religião, status social, idade etc. Suas manifestações são múltiplas, mas se afigura sempre como uma realidade de dilaceramento existencial expressa na pergunta: por quê? A lista das experiências é infinda e, talvez, cada ser humano tenha a sua sob medida.

A trajetória histórica da maldade no mundo, que enseja o sofrimento é uma coisa que dá o que pensar. Mais ainda quando vemos que o mal não é um problema entre outros, mas, ao contrário, ele rege todos os outros. A verdade é que o mundo e a vida humana instauraram-se sob a dialética do conflito entre o bem e o mal. A teologia moderna, diante de tantos questionamentos, busca uma forma de ordenar o estudo e conscientizar a necessidade do debate a respeito do mal e suas origens.

O estudo se presta para dirimir dúvidas e para trazer a luz sobre determinados assuntos, incluídos nos tabus das religiões, seitas, culturas e filosofias da humanidade. Desde que o ser humano abriu os olhos, na noite do tempo, ele convive com a realidade dúbia, que oscila entre o bem e o mal.

A história humana é uma deplorável narrativa de guerras, raptos, destruição de cidades, golpes de estado, traições, incêndios e toda a sorte de violência, onde sempre houve vencidos e gente que levou a melhor, mas também, na contrapartida, multidões de pessoas que perderam tudo, a partir das propriedades, dignidade e vida. O mal é mal e nele não há nenhum resquício de bem. Quando é freqüente ou demasiadamente forte, ele acaba desgastando as resistências morais do ser humano. Ao homem de hoje, especialmente ao cristão, não é cabível o acovardamento diante do mal.

Se a história está, por tantos séculos, recheada de maldade e sofrimentos, parece que o século XX, e esse início do XXI extrapolaram todos os parâmetros de egoísmo, perversidade e desrespeito com os direitos do ser humano. Parece que a humanidade nunca foi tão cruel e desdenhosa dos valores humanísticos.

Na idade antiga, o povo temia a bruxaria, a peste e as guerras. Depois passou a temer os inquisidores, os senhores feudais e continuou temendo os conflitos armados. Na etapa da modernidade, as Guerras Mundiais foram o flagelo da humanidade. Na Primeira, uso do gás letal gerou mortes em largas escalas. O que era uma invenção recente, o avião, foi empregado para matar, a ponto de seu criador, o brasileiro Alberto Santos Dumont se suicidar, ao ver a deturpação de sua invenção. Nas guerras o mal se apropria da tecnologia inventada, para matar, destruir e provocar mais sofrimentos.

A II Guerra Mundial conseguiu suplantar os genocídios da humanidade, ocorridos até então. Os campos de concentração, a tentativa de supremacia racial, e experiências genéticas dos nazistas, a agressão japonesa e a resposta, pela bomba atômica, os campos de refugiados, tudo serviu para mostrar que a maldade humana não tem limites. O homem não cria nada, mas ninguém é tão pródigo em destruição como ele.

Depois, quando pensávamos já ter visto tudo, quando se esperava que a humanidade houvesse aprendido tantas lições, veio a guerra da Coréia, do Vietnã e ultimamente do Afeganistão e do Iraque. Era o império da guerra química, os vírus, o napalm, as bombas de fragmentação, os mísseis de longo alcance. Cidades foram destruídas – com incalculáveis perdas das populações civis – por um simples sintonizar de rádio e apertar de botões.

Junto com as guerras e o terrorismo, tivemos a exacerbação do mal, através das manipulações genéticas, de tantos “crimes do avental branco”, que fariam corar os carrascos de Auschwitz. Todos esses crimes que “clamam aos céus” foram (e são) perpetrados em “nome da tecnologia” com um só fim: lucro e notoriedade.

Igualmente os tentáculos do mal se manifestaram nos “golpes de estado” e nas “revoluções” da América-Latina (especialmente no Brasil, na Argentina, no Chile, no Uruguai e outros países), onde ditaduras ilegítimas provocaram um banho de sangue no continente.

Quando teólogos e biblistas se dispõem a especular a respeito do mal, suas raízes e conseqüências, algumas pessoas, neófitas por certo, ficam meio chocadas, aconselhando que não se mexa “nestas coisas”. Outros acham que estudar a origem e as ramificações do mal na sociedade humana, pode atrair maus fluídos, despertar bruxas ou evidenciar uma tendência do pesquisador para este assunto.

Ainda há muito tabu – superstição até – envolvendo o debate e a especulação sobre este tema, obscuro, assustador e controvertido. Há quem veja – como foi aludido – heresia em questionar as origens do mal.

As tragédias humanas, em geral, parecem só acontecer com os outros, lá adiante. Nossa falta de espírito crítico chega a criar em nós um processo de anestesia ética e social, como se as coisas maléficas nunca fossem acontecer conosco. Quando o mal ocorre aqui, perto de nós, com a gente, ou com alguém de nosso grupo familiar, uma pergunta insistente paira no ar: Por que? Onde está Deus – costumamos perguntar – quando o mal nos ataca?

Nesse particular, é curioso observar que o ser humano, capaz de achar soluções e explicações para tudo, sempre tentou equacionar o problema do mal, e mesmo não o conseguindo buscou “domesticá-lo”, senão ignorá-lo. Nesse esforço, tem procurado o homem, através das ciências particulares, como a filosofia, a sociologia, a história geral, a psicologia, apresentar uma resposta, um conceito sobre o mal, esbarrando sempre num relativismo circunstancial.

Na constatação global, enxergamos o mal no mundo, no coração humano, e em todas as atitudes da sociedade. O mundo é mau? Costumamos escutar essa pergunta, e nem sempre sabemos responder. Isto, talvez, porque não sabemos conceituar o que é mundo? O verbete mundo tem muitos significados. Desde “quantidade” até espaço pessoal de privacidade.

Na versão filosófica, o conceito de mundo gira em torno de dois eixos fundamentais. Por um lado designa o conjunto das realidades materiais que constitui o cosmos ou o universo e, em um sentido mais restrito, o sistema planetário terrestre. Por outro lado, aplicada à vida do homem, no aspecto psíquico, a noção remete aos fenômenos de consciência, como na expressão “mundo interior”.

Na fenomenologia de E. Husserl († 1938), o mundo exterior e o das relações humanas dão lugar a uma significação distinta do conhecimento objetivo e científico. Não é esta definição que se presta a nossa especulação.

Nessa busca, a teologia busca o suporte da Ciência Bíblica, onde a expressão mundo tem dois significados. Na maneira corrente, serve par definir o tudo que Deus criou: o céu e a terra (Gn 1,1). Diferente do paganismo helênico, a concepção bíblica aponta para as representações cosmológicas como material secundário, posto a serviço, pela bondade divina, de uma afirmação religiosa essencial: tudo está a serviço das criaturas de Deus. Dentro desse enfoque vemos um mundo que é objeto do amor de Deus: “Deus tanto amou o mundo que lhe deu seu Filho único” (Jo 3,16).

De outro lado, é preciso ver o mundo como oposto de céu. Nessa perspectiva, enfatizada por Jesus, nos evangelhos, o “reino deste mundo” está em constante tensão com o “Reino dos céus”. Esse é o paradoxo que caracteriza as duas faces do mundo: a vitória de Jesus sobre o “mundo mau” (dominado por Satanás) que, renovado, apressa-se em assumir todo o bem que as promessas messiânicas anunciaram.

O mundo é hostil na medida em que não acolhe o Filho de Deus (cf. Jo 1,10), por isto os evangelhos afirmam que Jesus não era “desse mundo”. Na mesma trilha de idéias, podemos encontrar a figura de Satanás como “príncipe deste mundo” (cf. Jo 12,31; 14,30; 16,11). Ele é o grande articulador de todo sofrimento humano.

Assim, temos o mundo criado por Deus, cheio de bens e maravilhas, disponível à criação e onde se desenrola a história humana. Aqui a palavra mundo tem uma conotação eminentemente positiva e perfilada ao projeto divino. De outro lado, se encontram referências a mundo, como algo “mundano”, diferente (e até oponente) de céu, situação esta que é regida por Satanás, o líder desse tipo de mundo, onde prolifera o egoísmo, o pecado e o mal.

A teologia pastoral não se cansa de instar com os cristãos para que estes não se amoldem aos critérios “desse mundo”, mas se transformem, pela conversão, à vontade de Deus (cf. Rm 12,2). Destarte, mesmo a quem não tenha sua crença religiosa ou espiritual, não é lícito duvidar da existência do mal, pois as evidências à nossa frente, tornam-se irrefutáveis, atestando no dia-a-dia, sua insidiosa ação no meio da humanidade.

Para a filosofia, mal é tudo aquilo que é mau na ordem ético-moral, o que causa dano, sofrimento ou miséria. Em teologia, o mal surge quando se verifica alguma tentativa (ato, pensamento ou omissão) contrária ao projeto de Deus, um ser supremo que é, ao mesmo tempo, bom e Todo-Poderoso.

O mal – nunca é demais repetir -, nos compêndios de filosofia, teologia, psicologia e história das religiões, é aquilo que é realizado em oposição ao que é lícito (o mal moral) ou o que se contrapõe ao desenvolvimento normal da vida e da natureza em geral (mal físico), ou, ainda, ocorre a partir de ações negativas das forças/causas sobrenaturais (mal metafísico).

Nas Sagradas Escrituras há um esboço sobre o mal no/do mundo. Nota-se que a Bíblia, desde Gn 3, apresenta a origem do mal na ação culpável do homem. Se Gn 1-2 narra a história do bem, de acordo com o projeto de Deus, a partir de Gn 3, desencadeia-se a desordem, com as criaturas querendo tomar as rédeas da história.

Ao longo do Antigo e do Novo Testamento aparece com muita freqüência a realidade do sofrimento em suas diferentes formas: dor, guerras, crueldades, traições, morte, desgraças materiais. Existe o problema do mal, cruciante em muitos casos. Devemos ter presente que o mal físico é condição natural do ser criado, sujeito a limitações por sua própria essência.

O mal moral provém da malícia do homem, e não de Deus. Levanta-se a questão inicial: não poderia Deus, rico em misericórdia, ter criado um ser humano mais resistente ao mal? Nessa conformidade, a liberdade é um dom ou um risco?

E aí ocorre a questão: será tão fácil assim a conceituação do mal e a justificação de sua existência no mundo? Se nós conseguimos tão facilmente conceituar o mal, identificarmos sua ocorrência, bem conhecer suas causas e conseqüências, por que não conseguimos erradicá-lo de nosso mundo e de nossas vidas? Esta é a questão axial. Quando um de vocês estiver doente ou presenciar a doença e o sofrimento em alguma pessoa, jamais pergunte “por quê?”, pois esta é uma questão que, ficando sem resposta, pode nos levar à revolta e à blasfêmia. Limite-se a indagar “como”? Como podemos ajudar, orar e nos solidarizar com aquela pessoa?

Os antigos pensadores romanos afirmavam que o fogo testa o ouro, enquanto que o sofrimento prova o forte. Surge então a questão: quem é o forte? Forte é o cristão que crê no poder de Deus, na graça de Jesus e nas luzes do Espírito Santo. São Paulo, com muita sabedoria afirmou:

Tudo posso naquele que me dá forças (Fl 4,13).

O sofrimento é uma circunstância inerente à frágil vida do ser humano. Todos nós – uns mais outros menos – estamos sujeitos a ele. É preciso, como aconselha a cultura do povo, se ganhamos um limão (azedo) fazer uma limonada (doce). A pessoa que se fortalece no Espírito de Deus, adquire coragem fé e esperança capazes de levá-la a enfrentar com dignidade todos os confrontos da vida.

Embora sejamos, muitas vezes, cheios de escrúpulos e anacrônicos pruridos éticos, tentando esconder a verdade, o fato é que o doente terminal sabe, ou pelo menos tem fortes suspeitas, que seu desenlace está próximo. É uma crueldade que alguns familiares fazem, escondendo a realidade do doente. Ele tem o direito de saber a extensão de sua enfermidade, por vários motivos:

• preparar-se espiritualmente: encontrar-se com Deus

• reconciliar-se com desafetos, pedir perdão a alguém

• resolver questões econômicas

• não se sentir enganado

• não cair em desespero na fase final da doença

Há pessoas, cuja fé é vacilante, alegórica e superficial, que se apavoram e caem em depressão nesse estágio. Conheci uma pessoa que, na hora “H”, inconformado com a realidade, gritou mais que um porco no matadouro.

Na hora da morte, quem luta para evitar o inevitável, sofre mais, cai em desespero e, não-raro, se perde. A família e os que acompanham o doente devem ajudá-lo a se entregar. Na proximidade da morte, os santos (reporto-me aqui a Estêvão e Antônio de Pádua) exclamaram: “Já estou vendo o meu Senhor!”. No final do filme “Alucinações do passado”, o anjo recomenda ao moribundo:

Quando lutamos para não morrer, nossos pesadelos afloram

com muito mais força, nossos anjos parecem demônios e

tudo fica escuro. É preciso entregar-se e deixar que tudo

aconteça naturalmente. Aí tudo se transforma em luz, os

pesadelos se dissipam e as ameaças se convertem em anjos.

Há uma historieta interessante a respeito da visita que um padre foi fazer a um doente. A enfermeira reclamou que ele era um homem bom, e mesmo assim não recebia nenhuma visita de amigos ou parentes. Assim que ficou a sós com o ministro de Deus, o doente exclamou: “Essa enfermeira não sabe nada! Está vendo esta cadeira aqui ao lado da cama? Jesus vem me visitar todos os dias, senta ali e fica horas conversando comigo!”.

Alguns autores bíblicos não fogem do tema da relação entre Deus e o mal. Eles levantaram suas questões e ficaram sem resposta. Era inadmissível para eles (como para nós) a idéia de um Deus Criador, justo e misericordioso, e a existência paralela do sofrimento, muitas vezes fora de controle. Sem saber como desvendar esse mistério, o profeta Habacuc se queixou:

Tu, que tens olhos tão puros que não podes ver o mal, nem

contemplar a perversidade, por que olhas para os que

procedem traiçoeiramente e te calas enquanto o ímpio

destrói aquele que é mais justo do que ele? (1,13).

Nas mesmas águas, o juiz Gedeão perguntou:

Ai, Senhor meu, se o Senhor é conosco, por que todo este

sofrimento nos sobreveio? (Jz 6,13).

No segmento helenista das Escrituras, o autor preconiza que a superveniência do bem sobre o mal deve imperar nos corações daqueles que são fiéis a Yahweh e querem seguir por seus caminhos. Nessa prática, o perdão encaminha a vitória do bem sobre o mal:

Perdoa a injustiça cometida por teu próximo: assim, quando

orares, teus pecados serão perdoados. Se alguém guarda

raiva contra o outro, como poderá pedir a Deus a cura? Se

não tem compaixão do seu semelhante, como poderá pedir

perdão de suas faltas? (Eclo, 28,2ss).

O espírito sapiencial do Antigo Testamento adverte a respeito do mal, da vingança e de todos os atos que são capazes de desencadear mais violência, afirmando, em outras palavras, que aquele que cava um buraco, nele cairá; quem prepara uma armadilha, ficará preso nela. O mal se volta contra quem o pratica, sem que a pessoa saiba de onde ele vem.

Outra coisa que nos choca é o sofrimento dos inocentes. O que diz a Bíblia sobre o sofrimento dos inocentes? A objeção de Ivan Karamazov, no célebre romance de Dostoievski, continua a ser para muitos o maior obstáculo à fé num Deus de amor: poder-se-á confiar em Deus num mundo onde há crianças que são torturadas? Se Deus é bom, como pode permitir sofrimento dos inocentes? O título de minha tese de doutorado em Teologia Moral se assemelha: “Deus é bom. Então por que existe o mal?”.

No âmago das Escrituras hebraicas, a figura de Jó é o protótipo desta interrogação. Homem justo e piedoso, passando por imensas privações, Jó recusa-se a negar a sua inocência, mas também recusa abandonar a sua relação com o Senhor. Ficando agarrado a estes dois pólos até ao fim, Jó vê a sua disputa com o Senhor terminar-se com novos horizontes.

Não se trata de uma explicação intelectual ou de uma justificação do sofrimento, coisa monstruosa que Deus nunca poderá oferecer, mas antes a revelação de um contexto onde tudo muda de cor. Jó compreende que a tentativa de solução que deita para cima de Deus a responsabilidade pelo sofrimento conduz a um impasse, ao maior dos enganos. Afastada esta falsa pista, o campo passa a estar desimpedido para uma visão mais verdadeira.

Com os profetas de Israel realiza-se mais um passo. Eles sofrem, até na própria carne, que Deus, o Inocente por excelência, seja rejeitado por um povo que quer ser auto-suficiente. Assim acontece com Oseias, obrigado a suportar com paciência a traição da sua bem amada, imagem da fidelidade de Deus para com o seu povo infiel.

Com Jeremias, sofrendo a exclusão e a perseguição, «homem de discórdia e de polémica para toda a terra», condenado a ficar sozinho com uma “chaga que não cicatriza” (Jr 15,10.17-18). Seria necessário tempo para compreender que estes homens nos dão, de fato, quando sofrem por não serem escutados nem compreendidos, uma imagem do coração do próprio Deus.

Se a vida dos profetas revela que o sofrimento dos inocentes não é unicamente uma incitação à acção de Deus para restabelecer a justiça, mas também o lugar privilegiado onde os homens podem entrar no seu mistério, uma figura misteriosa que encontramos no Dêutero Isaías (cap. 40-55) revela esta verdade explicitamente.

Trata-se de um ser, descrito como o último dos últimos, “objeto de desprezo”, que atrai, como um ímã, toda a maldade dos outros para a transformar em sofrimento (cf. Is 53). Mas eis que este homem aparentemente rejeitado é na realidade o Servo de Deus, quer dizer, alguém que realiza na terra o desígnio divino da salvação.

Se aprouve ao Senhor esmagá-lo com o sofrimento (cf. Is 53,10), foi com a finalidade de o exaltar à vista de todos, para que todos vissem nele a ação do próprio Deus: Ele reconcilia consigo os que o rejeitam, ao tomar sobre si próprio as consequências da infidelidade deles. Será que a vida de Jesus nos diz algo mais?

Não é por acaso que os primeiros cristãos se debruçaram sobre estes capítulos de Isaías, quando procuravam nas Escrituras luzes para compreenderem o destino do seu mestre, Jesus. As curas que realiza já dão testemunho da sua vontade de assumir por amor os sofrimentos dos outros (cf. Mt 8,16-17).

Mas é sobretudo a sua forma de enfrentar uma morte terrível que rompe o círculo infernal do mal. A condenação dum justo que responde através do perdão (cf. Lc 23,47) permite a realização do desígnio de Deus, que é tornar as multidões justas. Dito de outra forma, o sofrimento de um inocente, vivido até ao fim, dá a todos os homens a leveza de uma inocência recuperada. O sangue de Jesus é mais eloquente do que o de Abel (cf. Hb 12, 24), pois consegue a vinda de Deus à terra como uma fonte sem fim de vida nova.

O último livro da Bíblia, o Apocalipse de São João, explicita este processo no capítulo 6, através da sua visão do desenrolar da história humana. Trata-se de um livro selado com sete selos. Os quatro primeiros descrevem a humanidade deixada por sua conta, a seguir uma curva inexorável que desce para a morte. Com o quinto selo entramos no movimento inverso, a atividade salvadora de Deus. E isso começa justamente com o grito das “almas dos que tinham sido mortos…” (Ap 6,9-11), em quem se deve ver não só os mártires cristãos, mas “todo o sangue inocente derramado sobre a terra, desde o sangue do inocente Abel” (cf. Mt 23,35; Ap 18,24).

Em Deus, o sofrimento dos inocentes recebe um tratamento eficaz capaz de contrariar os efeitos destrutivos da violência. A sua aparente derrota inaugura um movimento de libertação que culmina na cruz de Cristo. É isso que é manifestado pela abertura do selo seguinte, onde se trata do “grande Dia da cólera do Cordeiro” (Ap 6,17).

A "cólera" de Deus é o termo técnico utilizado na Bíblia para exprimir a sua resposta ao pecado, que visa restabelecer a justiça posta em causa. Aqui, refere-se ao ato através do qual Jesus toma sobre si todo o mal humano, sofrendo as suas consequências até ao limite, no seu próprio corpo (cf. 1Pd 2,21-24).

Ao dar a vida até ao fim, Jesus partilha o destino de todas as vítimas inocentes e assegura assim que o seu sofrimento não foi em vão. Leva o sofrimento deles até ao interior da sua própria relação com aquele a quem chama abba, Pai, e, visto que o Pai o escuta sempre (cf. Jo 11,42), temos a garantia de que esse sofrimento não é em vão. Traz o desaparecimento da antiga ordem mundial marcada pela injustiça e a aparição de novos céus e de uma nova terra, onde a justiça habitará (cf. 2Pd 3,13).

Eis a resposta definitiva, pois vivida, dada a Ivan Karamazov e a Jó. Longe de tolerar um só momento que seja o sofrimento dos inocentes, no seu Filho único Deus bebe com eles esse cálice da amargura e, ao fazê-lo, transforma-o em cálice de bênção para todos.

Não é porque não sabemos definir o sofrimento nem erradicá-lo totalmente de nossa vida que vamos desesperar e nos voltar contra Deus que é o Senhor da vida e autor da nossa salvação. Na tragédia das dores e da morte é possível distinguir-se algo de bom que Deus preparou para nós.

Agora eu me alegro de sofrer por vocês,

pois vou completando em minha carne

o que falta nas tribulações de Cristo

Resumo da pregação no retiro espiritual dos Padres Passionistas (Bahia, novembro de 2008).

O assessor é Doutor em Teologia Moral e ex-Ministro das Exéquias.