A arte enquanto máquina
A arte deve articular-se como máquina de guerra, como elemento de transgressão de uma ordem social que muitas vezes possui um discurso falacioso; da estagnação criativa ou questionadora; do que se movimenta em falsos passos em espaços inconsistentes, espaços criados como linha de fuga da realidade. Não falo da realidade em detrimento da ficção, mas atento-me ao mundo real e clamo pela arte enquanto máquina, seja ficcional, realista ou qualquer outra palavra que se possa aplicar.
Desde o surgimento da fotografia, por volta de 1835, passando pelo cinema, televisão e internet, vivemos em uma era imagética, na qual a imagem separada do objeto em si guia nossas ações, anseios, aparências e muito mais. Basta ver a influência da fotografia na publicidade desde o século 19 ou como o cinema popularizou hábitos questionáveis como fumar, dando-lhe ares de “glamour”.
A supervalorização da imagem cria distorções em nosso mundo, no qual "estar exposto" torna-se mais importante que a "obra em si". Tornou-se hábito, por exemplo, entrarmos num site que abriga “bandas novas” e ouvirmos somente algumas que estão no topo das paradas, determinado pelo número de ouvintes. Não medimos valores artísticos ou sociais para obras ou artistas, mas sim o tempo de exposição ou a quantia de acessos. Quanto maior estes números, mais dignos serão de consumo ou adoração.
Perdemos o senso de valores próprios e a cada semana incorporamos novos valores, determinados por números abstratos, nem sempre confiáveis e separados de qualquer conhecimento a respeito, de qualquer avaliação prévia, pensamento ou desejo próprio. O dito "a voz do povo é a voz de deus" parece guiar nossas ações. Concedemos tempo aos mais vistos e acessados e deixamos de ouvir, ver e ler o que possui baixos números: sejam de acessos ou até mesmo financeiros. Basta uma notícia sobre um filme como “a produção mais cara da história” para corrermos ao cinema, ou o “livro mais vendido da atualidade” logo se torna depositário em nossa estante. Muitas vezes usamos o mercado como argumentação, pois quem busca uma colocação profissional deve estar antenado com as pautas do momento. Tornamo-nos nações de pessoas “iguais” buscando sermos diferentes nos espaços virtuais, onde a “realidade” criada é mais flexível e podemos exercitar nossas disparidades, ao menos no que se refere à aparência.
A mídia transformou-se num condutor de realidade: além de nossa micro-realidade (pessoal e local), só existe o que for exposto. Não concebemos uma tribo indígena como parte integrante da raça humana, desejando igualdade, harmonia e paz, com defeitos e qualidades; só compreendemos como realidade os índios que assistimos na televisão empunhando facas e fazendo ameaças. Tudo o que estiver fora das pautas da mídia será duvidado e contestado, mas qualquer exibição se tornará inquestionável: "eu li no jornal, assisti na televisão e confirmei num portal da internet". Fora do circuito midiático, toda e qualquer realidade será passível de contestação enquanto realidade.
A arte, enquanto poderosa máquina, é um grande meio de questionamento desta "realidade exposta", mas não qualquer arte. Hoje, a exposição de uma obra (qualquer obra) ganhou importância maior do que a obra em si. Qualquer melancia ao ganhar milhões de acessos se tornará célebre, primeira página de jornal, capa de revista ou mesmo tema de debate televisivo, com argumento de “assunto de interesse público”. Mas isto nada tem a ver com arte, nada tem a ver com vida, pensamento, conhecimento, sentimento ou contribuição de qualquer espécie.
Falo de arte enquanto fruto de um processo de elaboração, com objetivo no qual a exposição seja apenas conseqüência (e não meta principal). A arte é capaz de transformar vidas, ampliar visões, desgastar velhos modos de pensar, agir e reagir e não somente entreter mentes cansadas de um mundo injusto e violento. Atinge facilmente todos os públicos de uma sociedade e além de questionadora, é bela e digna de apreço, não pelo custo de sua produção, nem pela quantia de espectadores, mas pelo que tem a dizer e diz.
A simples exposição de uma foto, ilustração, vídeo, música ou poesia não deve ser tomada como arte, e figurar entre as mais vistas, ouvidas ou acessadas não lhes concederão qualquer valor artístico real. O número de acessos ou o tempo de exposição não deve guiar anseios, gostos e pensamentos. Com isto dito, devo explanar que não tenho preferências por esta ou aquela arte, por este ou aquele movimento artístico e não farei recomendações neste sentido. Gosto de arte pela obra em si, desconsidero números ao seu redor e prefiro uma obra a simples exposição de qualquer coisa que se pretenda como tal.