A Lenda da Boiúna

É comum encontrar lendas, mitos, rituais e crenças que envolvem diversas espécies de ofídios em diversos povos do mundo. A cobra é um dos símbolos mais universais e antigos da religiosidade. Como mito entre os gregos, a cobra pode ser uma transformação de Zeus (pai dos deuses) e, entre os cristãos, a encarnação de satã.

Na região amazônica, mais precisamente entre os povos ribeirinhos, uma das criações do fabulário indígena é a lenda da Cobra Grande. Encantaria do fundo dos rios da Amazônia, que aparece sob diferentes formas envolvendo o visível e o invisível. Imensa cobra ameaçadora, que abandona a floresta e passa a habitar a parte profunda dos rios. Toma diversos nomes: Boiúna, Cobra Grande, Cobra Norato, Mãe D Água, entre outros, mas independentemente de seu nome, ela é a Rainha dos rios.

João de Jesus Paes Loureiro, escritor paraense, no seu livro Cultura Amazônica afirma: “A Boiúna é um exemplo do caráter estético da teogonia amazônica, da convivência natural com o sobrenatural, do irracionalismo dentro do racional, da sensibilidade como forma de vivência e compreensão da vida”.

O mito da Cobra Grande percorre cerca de quatro mil rios da Amazônia, ajudando ou aterrorizando o ribeirinho, de acordo com o imaginário local, chegando até às populações urbanas.

Existe a crença de que algumas cidades estão situadas sobre a morada da Cobra Grande, como Santana, no Amapá, por exemplo, onde a Cobra Sofia é residente.

Acredita-se que Belém também tenha sido fundada sobre uma cobra, crença que pode ter nascido com os primitivos missionários, que resolveram esmagá-la simbolicamente, colocando a cabeça da serpente sob os pés da imagem de Nossa Senhora, criando um sincretismo religioso com a cultura local.

Outra tradição belenense afirma que a cabeça da Cobra Grande está em baixo da Catedral da Sé e a cauda sob o altar da Basílica de Nazaré.

Na madrugada de 12 de janeiro de 1970, Belém foi abalada por um tremor de terra. Conta-se que muitas pessoas afirmaram que o sismo fora provocado por um movimento do dito ofídio. Dizem, ainda que, no caso da Cobra Grande abandonar seu leito, a cidade e todos os seus habitantes serão tragados pelas águas da Baía de Guajará.

Acredita-se, também, que as ilhas, componentes importantes da paisagem e do imaginário amazônicos, são moradas ou refúgios preferidos das Boiúnas.

Estórias mostram que a Cobra Grande pode ter sido uma transformação de uma sucuriju ou sucuri ou mesmo de uma jibóia que, com o tempo, abandonou a floresta, adquiriu fenomenal volume e imergiu no rio, passando a habitar a parte mais funda, os poções, aparecendo vez por outra na superfície para punir ou proteger o amazônida.

Outra lenda diz que uma linda índia, princesa da tribo, ao apaixonar-se pelo Rio Branco (Roraima), foi transformada numa imensa cobra chamada Boiúna, pelo enciumado Muiraquitã – filho da divindade Jaci.

Nos rios Solimões e Negro, a Cobra Grande nasce do cruzamento de mulher com uma assombração (visagem), ou de um ovo de mutum, ave da região.

Há diversas narrativas sobre as ações desse mito que desliza sobre os rios da Amazônia: seja como gênio do mal, seja como um benfeitor à navegação dos rios amazônicos, seja como um justiceiro, ou como um sedutor.

Como gênio do mal paralisa os outros animais; vaga e devora o que encontra no caminho; alaga as embarcações que atravessam seu itinerário; sorve a vida dos velhos; cega, ensurdece ou enlouquece as pessoas que cruzam seu caminho; transforma-se em majestoso, todo iluminado e fascinante navio embarcação de vapor ou vela. Para melhor trair e desorientar o caboclo, sua fascinante aparição é anunciada pelo badalar metálico.de um sino. Além disso, destacam-se no mastro duas luzes brancas, uma vermelha à esquerda e uma verde à direita da embarcação.

Como benfeitor à navegação, quando desliza pelos rios os olhos tornam-se grandes faróis para orientar os embarcadiços nas noites escuras e durante as tempestades.

Como justiceiro defende a natureza amazônica, punindo os predadores de rios e florestas.

Como sedutor busca jovens índias para engravidá-las e, uma vez por ano, escolhe uma noiva entre as cunhãs da Amazônia.

A crença cabocla diz que muitos dos igarapés e furos amazônicos são formados pelos sulcos deixados pelo rastejar da Cobra Grande em restingas, igapós e até na terra firme.

Do ventre encantado da Terra, brotam os rios em nascentes. Do ventre encantado do rio a Boiúna e, finalmente, do ventre da Boiúna, numa apoteose de mistério, beleza e magia, a nave iluminada.

O visível, o percebido por nossos sentidos, nada mais que uma pequena porção da imensidão invisível.

O imaginário, as lendas, os mitos formam uma espécie de mosaico, de quebra cabeça montado pela parte encantada das mentes dos povos para revelar o invisível, no caso da mitologia amazônica, o encantado existente nas profundezas dos rios e nos labirintos da floresta.

Para concluir, transcrevemos alguns trechos do livro Cultura Amazônica de autoria João de Jesus Paes Loureiro:

“A lenda da Boiúna, como Cobra Grande transformada em navio iluminado, é a transmissão visível do esplendor invisível do rio. O imaginário se incorpora numa forma.”

“Símbolo ou metáfora, a luz brilha sempre em todas as culturas como transcendência, reflexo da divindade, sinal de saber, manifestação da beleza”.

Observação; Este trabalho foi organizado com base em pesquisa bibliográfica e em diversos sites que divulgam a mitologia amazônica.

Boiùna

No ventre da Terra

tu, rio, és embrião,

nasces e corres para o mar.

Verde fica teu coração,

quando te perdes na floresta,

para seus mistérios desvendar.

Cobra Grande, Cobra Grande,

Boiúna, Cobra Norato;

Cobra Grande, Cobra Grande,

Boiúna, Cobra Norato.

No ventre do rio

tu, cobra encantada,

imaginação cabocla no cio,

parte escura, parte iluminada.

Farol ao navegante solitário

e, ao predador, o rigor da espada.

Cobra Grande, Cobra Grande,

Boiúna, Cobra Norato;

Cobra Grande, Cobra Grande,

Boiúna, Cobra Norato.

Do ventre da Boiúna

tu, navio iluminado,

partes e levas do ribeirinho:

o desejo por um corpo suado;

sonhos de melhor destino;

e de partir para um mundo encantado.

Cobra Grande, Cobra Grande,

Boiúna, Cobra Norato;

Cobra Grande, Cobra Grande,

Boiúna, Cobra Norato.

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J Coelho
Enviado por J Coelho em 05/11/2008
Reeditado em 28/07/2011
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