A liberdade dos filhos de Deus (Sermo 11)

Onde está o Espírito de Deus ai há liberdade

(2Cor 3,17)

Sabendo que em minha tese de doutorado em Teologia Moral, eu dediquei um capítulo inteiro ao tema “liberdade”, uma pessoa me pediu que numa próxima meditação refletisse sobre esse apaixonante assunto. Como surgiu agora a ocasião, vamos ver alguns aspectos sobre a liberdade que vem a nós como mais um dom de Deus.

A busca da liberdade é uma lição que nós também devemos aprender com os diversos carismas confiados a Pedro e a Paulo. É preciso que nos deixemos todos guiar pelo Espírito, tentando viver na liberdade, que encontra sua orientação na fé em Cristo e se concretiza no serviço aos irmãos.

É essencial sermos cada vez mais conformes com Cristo. É assim que se é realmente livre; assim se expressa em nós o núcleo mais profundo da lei: o amor a Deus e ao próximo. O respeito e a veneração que Paulo cultivou sempre pela Igreja de Cristo não diminuem quando ele defende com franqueza a verdade do evangelho. No caso do Concílio de Jerusalém, foi um momento de alguma tensão para a Igreja, dividida quanto à observância ou não das leis judaicas.

Paulo expôs ao grupo apostólico, definido como um grupo mais relevante, seu evangelho de liberdade da Lei. À luz do encontro com Cristo ressuscitado, ele havia compreendido que no momento da passagem ao evangelho de Jesus Cristo, os pagãos não precisavam da circuncisão ou das leis sobre o alimento e sobre o sábado, como uma demonstração de justiça. Cristo é nossa justiça, e justo é todo aquele que está conforme o que ele preconizou. Neste sentido, a liberdade cristã não se identifica nunca com a libertinagem ou com o arbítrio de fazer o que se quer; ela se realiza em conformidade com Cristo e, por isso, no autêntico serviço aos irmãos, sobretudo aos mais necessitados.

O cristão é senhor livre de todas as coisas e não está sujeito a ninguém. Um cristão é servidor de todas as coisas e sujeito a todos. Estas duas frases se encontram claramente em 1Cor 9,19: “Porque, sendo livre de todos, fiz-me escravo de todos...” e adiante em Rm 13,8: “A ninguém fiquem devendo coisa alguma, exceto o amor com que vocês se amam uns aos outros.”. A única obra e prática dos cristãos deveriam consistir no seguinte: gravar em seu ser a palavra de Cristo, exercitar-se e fortalecer-se sem cessar nesta fé.

Os mandamentos nos indicam e ordenam toda classe de boas obras, mas com isso não estão já cumpridos: porque ensinam retamente, mas não auxiliam; instruem acerca do que é preciso fazer, mas não fornecem a força necessária para realizá-lo. Com essa limitação, aprende o homem, então, a desprezar a sua capacidade e buscar em outra parte o auxílio necessário para poder se livrar da cobiça e cumprir assim o mandamento com ajuda alheia, porque com esforço próprio lhe é impossível.

Onde está o Espírito de Deus ai há liberdade

Isto significa que a fé na palavra de Deus fará a alma santa, justa, sincera, pacífica, livre e plena de bondade. Será, enfim, um verdadeiro filho de Deus, pois a todos que o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem no seu nome (cf. Jo 1,12).

A liberdade dos filhos revela o apreço do Pai por sua criação. Só alguém com muita sabedoria é capaz de colocar esse precioso dom nas mãos da humanidade. Os escravos, os loucos e os irresponsáveis são privados do uso da liberdade, porque são julgados incapazes de fazer um bom uso dela. Aos filhos Deus dá a liberdade como prova de amor e de confiança. Ao ser humano, Deus concede a liberdade como força para enfrentar e vencer a batalha espiritual contra o mal.

Onde está o Espírito de Deus ai há liberdade

O cristão é livre, sim, mas deverá tornar-se de bom grado servo, a fim de ajudar a seu próximo, tratando-o e interagindo com ele, como Deus tem feito com ele mesmo por meio de Cristo. E o cristão fará tudo sem esperar recompensa, mas unicamente para agradar a Deus(...). Serei para com meu próximo um cristão, à maneira como Cristo foi comigo, não empreendendo mais que aquilo que meu próximo necessite, lhe seja proveitoso, salvador; que já possuo todas as coisas em Cristo, pela minha fé.

No campo da terminologia acadêmica, a palavra liberdade surge por três vertentes, às quais podem corresponder três noções diferentes: a) o estado do homem livre (em oposição à escravidão); b) a liberdade moral que dimana do “livre arbítrio”; c) o evangelho como a “lei perfeita” da liberdade (cf. Tg 1,25). No Novo Testamento, a liberdade que possuímos a partir de Cristo (cf. Gl 2,4) significa uma liberdade redentora do “espírito de escravidão e do medo” (cf. Rm 8,15) que esteve tantas vezes inserido na “espiritualidade” do Antigo Testamento.

Em Jesus Cristo, o Pai instaura a tríplice liberdade: a) da lei; b) do pecado; c) da morte. A liberdade, ao eliminar o paradoxo da servidão, organiza a vida cristã de acordo com a “lei do Espírito” que nos torna filhos (cf. Rm 8,15) abertos à conversão e à solidariedade.

Deduz-se, de tudo isso, que o cristão não vive em si mesmo, mas em Cristo e o próximo. Em Cristo, pela fé, e no próximo, pelo amor. Pela fé o cristão se eleva até Deus e de Deus se curva pelo amor; mas sempre permanece em Deus e no amor divino. Eis aí a liberdade verdadeira, espiritual e cristã, que livra o coração de todo o pecado, mandamento ou lei. É a liberdade que supera toda e qualquer injustiça, tal como os céus superam a terra.

Nas palavras ungidas de São Paulo vemos a liberdade formando um juízo unívoco com a essência divina (cf. 2Cor 3,17). Isto nos ensina que as estruturas sem Deus corrompem a liberdade. O homem nasce com sua liberdade girando em dois eixos: estado de homem livre (situação oposta a cativeiro) e liberdade moral (livre-arbítrio). Ainda nos escritos paulinos, vamos encontrar mais textos referentes à liberdade: “Vocês, meus irmãos, foram chamados para serem livres. Que essa liberdade, porém não se torne desculpa para vocês viverem satisfazendo os instintos egoístas. Pelo contrário, coloquem-se a serviço uns dos outros” (Gl 5,13).

A consciência da liberdade e da dignidade do homem, conjugada com a afirmação dos direitos inalienáveis da pessoa e dos povos, é uma das características predominantes do nosso tempo. Ora, a liberdade exige condições de ordem econômica, social, política e cultural que tornem possível o seu pleno exercício. A viva percepção dos obstáculos que a impedem de se desenvolver e ofendem a dignidade humana encontra-se na origem das fortes aspirações à libertação que hoje fermentam em nosso mundo.

A Igreja de Cristo faz suas tais aspirações, ao mesmo tempo em que exerce seu discernimento à luz do evangelho que, por sua própria natureza, é mensagem de liberdade e de libertação. Com efeito, essas aspirações assumem, às vezes, nos níveis quer teórico quer prático, expressões nem sempre conformes com a verdade do homem, tal como esta se manifesta à luz da sua criação e da sua redenção. Longe de terem perdido valor, aqueles desejos de liberdade se mostram cada vez mais pertinentes e oportunas.

A palavra de Jesus: “A verdade libertará vocês” (Jo 8,32) deve iluminar e guiar, neste terreno, todas as reflexões teológicas e todas as decisões pastorais. Essa verdade, que vem de Deus, tem o seu centro em Jesus Cristo, Salvador do mundo. Dele, que é “o caminho, a verdade e a vida” (Jo 14,6), a Igreja recebe aquilo que ela oferece aos homens. No mistério do Verbo encarnado e redentor do mundo, ela vai buscar a verdade sobre o Pai e seu amor por nós como a verdade sobre o homem e sobre a sua liberdade.

No entanto, cuidado com a demagogia e a falsidade! Tem muita instituição por aí que usa “A verdade vos libertará” como divisa e não passa de um antro de exploração, mercantilismo e desrespeito ao ser humano. Não basta invocar a palavra de Deus; é necessário que a teoria se transforme em prática. A palavra não pode servir de escudo para atitudes anti-fraternas, de ambição e engodo.

Por sua cruz e ressurreição, Cristo realizou a nossa redenção: esta é a liberdade em seu sentido mais forte, já que ela nos libertou do mal mais radical, isto é, do pecado e do poder da morte. Quando a Igreja, instruída pelo Senhor, eleva a sua oração ao Pai: “livra-nos do mal”, ela está suplicando que o mistério da salvação se manifeste, com potência, na nossa existência de cada dia. Ela sabe que a cruz redentora é, verdadeiramente, a fonte da luz e da vida e o centro da história.

Segundo a ordem de Cristo, a verdade evangélica deve ser apresentada a todos os homens, e estes têm o direito de que ela lhes seja apresentada. Seu anúncio, na potência do Espírito, comporta o pleno respeito da liberdade de cada um e a exclusão de qualquer forma de coação e de pressão.

O Espírito Santo introduz a Igreja e os discípulos de Cristo Jesus naquela “verdade plena” (Jo 16,13). Ele dirige o curso dos tempos e “renova a face da terra” (Sl 104,30). É o Paráclito que se faz presente no amadurecimento de uma consciência mais respeitosa da dignidade da pessoa humana. O Espírito Santo encontra-se na origem da coragem, da audácia e do heroísmo.

Onde está o Espírito de Deus ai há liberdade

Quando o homem pretende se libertar da lei moral e tornar-se independente de Deus, longe de conquistar a sua liberdade, ele a destrói. Fugindo da medida da verdade, ele se torna presa do arbitrário; entre os homens, as relações fraternas são abolidas, para dar lugar ao ódio, ao medo e à repressão. O profundo movimento moderno de libertação permanece ambíguo, porque foi contaminado por erros mortais acerca da condição do homem e da sua liberdade. Ele carrega, simultaneamente, promessas de verdadeira liberdade e ameaças de mortais servidões.

Deus chama o homem para a liberdade. Em cada homem é viva a vontade de ser livre. E, no entanto, tal vontade quase sempre leva à escravidão e à opressão. Qualquer empenho pela libertação e pela liberdade supõe, pois, que se tenha enfrentado esse dramático paradoxo.

O pecado do homem, isto é, a sua ruptura com Deus, é a razão radical das tragédias que marcam a história da liberdade. Para compreendê-la, muitos de nossos contemporâneos devem, primeiramente, redescobrir o sentido do pecado.

Vamos ver alguma coisa a respeito da liberdade do ser. O que é ser livre? Esta, parece uma pergunta simples, mas quando se busca um aprofundamento na resposta, constata-se sua contundente complexidade. Apanhados meio de surpresa nas primeiras aulas de filosofia, os alunos geralmente respondem: ser livre é não estar preso! E não estão errados nessa simplificação. Resta saber o que é esse estar preso. Aí pode residir a chave-de-leitura da questão da liberdade. Para avaliarmos se somos livres ou não, precisamos identificar as correntes que nos prendem.

No contexto da vida humana, biológica e transcendente, há duas questões interligadas de suma importância: a liberdade e a responsabilidade. No evangelho, a constituição do cristianismo, a palavra eleutheria, liberdade aparece muitas vezes. E, em muitas ocasiões, aparece unida a outra, que é mais freqüente ainda: a palavra verdade. Alétheia, verdade, no grego neotestamentário, aparece muitas vezes ligada à liberdade, ou aos seus derivados. Há, portanto, uma conexão extremamente importante e emblemática, que pode ser recordada a partir daquele texto-chave do evangelho de São João, em que “verdade” e “liberdade” aparecem juntas de um modo central e indissociável:

Se vocês guardarem a minha palavra, vocês de fato serão meus discípulos, conhecerão a verdade, e a verdade libertará vocês (8,31s).

Como antigo professor, gosto de adotar aquelas questões cognitivas elementares, que através de definições podem dar luz ao estudo proposto: o que é liberdade? o que significa ser livre? liberdade é um bem? uma conquista? ou um “abacaxi” que nem todos sabem descascar? Acho que para adentrarmos no debate é preciso, se não dominar amplamente os conceitos, pelo menos conhecer a interdisciplinariedade deles.

Ser livre, preliminarmente, é poder desfrutar integralmente da liberdade, sem fraquezas, condicionamentos, pressões ou complexos de culpa. Isto, convenhamos, é uma condição rara entre os seres humanos. Muitos, sob esse prisma, conseguem ser livres; outros não.

Mesmo que não se queira dogmatizar a compreensão sobre o ato de ser livre, tem-se que buscar juízos aproximados, como a possibilidade de uma pessoa fazer suas próprias escolhas e colocá-las em execução. Ser livre é um direito natural que todo o homem tem. Então, o que é ser livre? É fazer tudo o que pode ser feito (definição axiológica); é fazer tudo o que se tem vontade de fazer (definição existencialista); é fazer aquilo que se nos parece útil (definição pragmática); é fazer aquilo que se deve fazer (definição ontológica).

A vida social, regulada por normas de comportamento, não permite ao homem fazer tudo o que pode, muito menos tudo aquilo que quer. Ser livre é controlar seus próprios atos, de forma autodeterminada, e implica sempre uma relação de ordem ética. Nesse contexto, a liberdade exige sempre condições de ordem econômica, social, política e cultural que tornam possível seu pleno exercício. Em Santo Agostinho encontramos uma frase no mínimo curiosa: "Ame e faça o que quiser!"

À primeira vista esta expressão soa como uma liberação para o arbítrio e a licenciosidade, onde sob o embalo do amor a cada um está facultado fazer o que bem lhe agrade. Não é bem assim! Tudo tem origem no amor, e é este sentimento que organiza as ações da vida humana. Quem tem um amor integral, a Deus, ao próximo e à natureza, está imbuído daquela responsabilidade marcante de quem vive segundo Espírito. Quem ama de verdade só faz aquilo que convém. Esta é a dimensão ontológica da liberdade.

Como não podia ser diferente, cada grupo social ou núcleo ideológico tem sua definição. No dia-a-dia, define-se liberdade como aquele grau de independência, legítimo e necessário, que um cidadão, um povo ou uma nação elege como valor supremo, como ideal. No estudo da Ciência Política e de algumas das chamadas “ciências sociais”, o verbete liberdade aponta para aquele conjunto de direitos reconhecidos ao indivíduo, considerado isoladamente ou em grupo, em face da autoridade política e perante o Estado; poder que tem o cidadão de exercer a sua vontade dentro dos limites que lhe faculta a lei.

O homem – e isto é dito pelos estudiosos do comportamento e contemplado pelas ciências sociais – é um animal ético, político, cujas ações, no entanto, tangenciam o chamado “mínimo ético”. É teoricamente ético, mas fazê-lo chegar à compreensão da ética é o mais difícil. A partir daí afloram as questões: o homem é suficientemente capaz de distinguir a verdade? de viver a moral? de usar adequadamente a liberdade? Liberdade não é algo que se ganhe (desejo), mas uma conquista (prática). Na obra Simone Weil, uma filósofa contemporânea, judia francesa, convertida ao cristianismo, encontramos uma definição ajustada à pós-modernidade em que se vive: A verdadeira liberdade não se define por uma relação entre o desejo e a satisfação, mas por uma relação entre o pensamento e a ação (In:O peso e a graça. Paris, 1947).

Como o mito do Prometeu grego, a história de Adão fala uma verdade clássica, de geração em geração, não porque se refira a um evento histórico, acontecido de fato, mas porque representa uma profunda experiência anterior, uma perda, quase uma decepção – o paraíso perdido – partilhada por toda a humanidade. Esse erro de escolha, onde é imputada ao homem uma falha no tocante ao bom uso de sua liberdade, gerou castigos à humanidade, a partir dos míticos Adão e Eva.

O homem teve que trabalhar a terra inóspita; a mulher, desejar sexualmente seu marido e ter filhos em dores. A ambos foi dado o castigo da mortalidade. A liberdade é um bem inegociável. Trocá-la por outros valores é demitir-se da vida. Os homens cedem sua independência para dar origem à autoridade, mas o fazem de tal forma que não mais recuperam a liberdade. Isso os leva a um absolutismo estatal completo.

Ao contrário da liberdade dos filhos de Deus, o romancista russo F. Dostoievski († 1881) fala, em uma de suas mais expressivas obras, de um outro jeito de liberdade. É uma obra densa, tão cheia de paixão e de pensamentos, que a crítica mundial, reconheceu nela, a obra prima do grande romancista russo. Ele refere-se ao mito da queda do homem como uma queda ascendente, a partir da qual a humanidade adquire consciência de sua limitação e finitude. O problema angustiante e essencial da existência de Deus, que penetrou extremamente a sabedoria e a alma de Dostoievski nos últimos anos de sua vida, é neste romance ilustrado de maneira impressionante e terrível.

A capacidade crítico-literária de Dostoievski, um cristão ortodoxo, ressalta, neste romance, uma série de personagens de primeira grandeza que debatem, em termos da vivência humana, o problema do bem e do mal, da liberdade de salvar-se ou condenar-se, do livre arbítrio e conseqüentemente da responsabilidade humana. No homem “dostoievskiano”, a alma é puro caos. O amor e o ódio, a volúpia e a fraqueza confundem-se em “transposições” ininterruptas. O autor decompõe a volúpia e remonta às suas raízes, às suas composições mais misteriosas, insistindo na antinomia entre o “mundo” e o “eu”, o aniquilamento do homem em favor de forças invisíveis.

É o profundo sentido do “absurdo da vida”, que tem suas raízes em Dostoievski, ramificando-se em Albert Camus com A Peste, num sentido imanentista, e assumindo “traços transcendentais” em Franz Kafka († 1924).

No enredo do episódio do “Grande Inquisidor”, Dostoievski descreve que Cristo desce à terra na época da inquisição espanhola e começa a curar. O Inquisidor justifica sua missão terrena mostrando a Cristo que ele dando liberdade ao homem (“a verdade os tornará livres”) deu-lhe um fardo pesado para suas costas fracas e o Grande Inquisidor “tirando-lhe a liberdade em troca da segurança” revelou-se seu amigo, ao mesmo tempo em que transferia toda responsabilidade dos atos humanos na terra para si, deixando para o homem o pão terrestre. Em nome do homem e do cristianismo o Inquisidor mostra que poderia atirar Cristo à fogueira. Por esta razão o Inquisidor dirige a Cristo uma pergunta – que resume o livro – que é deveras desconcertante:

Por que voltaste para prejudicar nossa obra? Há 2000 anos que nós delimitamos a vida dos homens, com dogmas e regulamentos, e eles se submeteram alegremente a nós... pois isto os salvará de tomarem suas próprias decisões.

Revelando a necessidade de uma “liberdade para o bem”, Jesus sugere a opção pela “porta estreita” da virtude (cf. Lc 13,24). Esta é a ética do Ressuscitado, que ensina como agir (bem) e como evitar (o mal). Jesus mostra o caminho (a prática) ao invés de admoestar (teoria). Essa troca de mal por bem, de teoria por prática tem feito a diferença na exposição do que é a ética do cristianismo. Abrir mão da liberdade, seja em troca do que for, tem sido causa dos maiores desastres da história humana.

Este tema, por sinal, foi desenvolvido no discurso do Inquisidor. Na ficção do grande escritor russo, Cristo volta à terra e ao invés de uma recepção gloriosa por parte dos cristãos, é mal recebido, pelo Inquisidor, que é líder de uma Igreja que aprisiona o Filho de Deus, acusando-o de subverter a doutrina dos “notáveis”, e assim destruir o trabalho que era feito em nome do Messias.

A Igreja diz que o Inquisidor estava ali para “corrigir” o trabalho de Cristo, adaptando-o às necessidades da humanidade, que ansiava por liberdade. Nesta obra, que trata de forma cristalina e contundente a dicotomia do ser humano, livre e fraco, o autor ampliou os diálogos entre Aliocha (um místico, ingênuo, cheio de sonhos) e Ivan (um racionalista).

Os finais de Dostoievski (“Os Irmãos Karamázov”) e de Kazantzakis (“O Cristo Recrucificado”) têm semelhanças. O mal, travestido de bem, vence. A figura do Inquisidor – conclui Dostoievski – existe em qualquer lugar onde os homens substituam a liberdade pela submissão. É mais fácil o povo ser submisso que tentar conquistar a liberdade. Esta é uma realidade histórica, embutida na vida de muitas nações. Como Dostoievski deixa claro, o elemento destrutivo da atitude do Inquisidor é que ele retira a liberdade do homem. A ética cristã, ao contrário, apesar de exigente, não retira a liberdade, mas reforça a necessidade de ele assumir o peso de suas escolhas. Por conta disto, encontramos um texto do Antigo Testamento que se situa no terreno do alerto quando ao uso da liberdade:

Desde o princípio Deus criou o homem e o entregou ao poder de sua próprias decisões (Eclo 15,14).

Os filósofos oriundos ou influenciados pelo racionalismo alemão e da chamada “esquerda hegeliana” também vêem a liberdade – a exemplo de Sartre – como uma “armadilha”, enfatizando que, para ser completa, a liberdade humana deveria ocorrer não apenas no terreno da utopia, mas especialmente do crer, do agir e também do duvidar. Sartre chega a afirmar que o homem é “condenado à liberdade”.

Às vezes os esquemas humanos, sociais, políticos, econômicos ou religiosos se tornam opressores à medida que tentam impor suas vontades (e não-raro ideologias), impedindo que o ser humano seja feliz, convivendo com o resultado de suas escolhas. O mal assume, muitas vezes, a figura falsamente ética do Inquisidor mencionado, impedindo que a liberdade se transforme em bem, um dos mais expectados valores da vida humana. A sensibilidade ante a liberdade e o mal não ocorre de forma uniforme, em épocas ou civilizações. Os antigos gregos, v.g., davam muita atenção ao mal cruel, à fatalidade (isto é atestado no conteúdo das “tragédias”). No renascimento (séc. XVII), com Pascal († 1662) e Racine († 1699), só para citar dois, o mal trágico parece ter despertado mais sensibilidade a esse tipo de desgraça.

É como hoje, damos mais atenção ao mal-espetacular, contido nas grandes manchetes da mídia, que no mal-silêncio, que é igualmente mal, mas não desperta tanto a nossa curiosidade e sensibilidade. Por exemplo: todos querem adotar o recém-nascido que foi encontrado, semimorto numa lata de lixo, e omitem-se quanto aos milhares de crianças que estão nas “casas de custódia” a espera de uma família. Para a concepção de muitos, não há mal sem autor.

Não resta dúvida que a tradição ocidental está irreversivelmente centrada no binômio mal/culpado. Quebrou-se uma vidraça (um mal), e nós perguntamos logo; quem foi? (o culpado). No tocante à liberdade também pensamos assim: Se eu cometi um mal é porque sou livre; ora, se sou livre, a culpa é de quem me deu a liberdade que eu não sei usar...

Temos lido nos compêndios de teologia que o mal entrou no mundo porque todos pecaram (exceto Cristo). Todos pecaram porque tiveram a liberdade de fazê-lo. Aí vem a pergunta crucial: não seria, portanto, a liberdade um dom mal doado? Se todos pecaram, é porque tinham liberdade. Há todo um corredor negativo: liberdade  pecado  infelicidade  morte. É como dar uma arma a uma criança, ou um automóvel a alguém sem habilitação. No caso do homem, não podia ter sido diferente?

Deus, ao nos criar, fez-nos uns “fracos com liberdade”, e essa fraqueza diante das alternativas que a liberdade propõe, abriu-nos a porta do mal. São questões que, há milênios, sob uma ótica isenta, sem melindres ou radicalismos, a Teologia, a Filosofia e outras ciências ainda não responderam satisfatoriamente.

Santo Tomás de Aquino († 1274), com a sabedoria peculiar de um Doutor da Igreja, fez uma leitura adequada, do problema da liberdade em muitas de suas obras e sermões. Ele se preocupou em demonstrar, antes de tudo, a sua existência e depois, também, em esclarecer a sua verdadeira natureza, determinando com precisão as suas correlações com o intelecto e com as outras faculdades da alma.

Também ele, como Clemente, de Roma, dá muita importância ao argumento das conseqüências absurdas, investindo contra aqueles que sustentam que o homem não é livre, mas vive por impulsos, onde a vontade humana se move por ação das necessidades. Com relação à liberdade, o aquinate (aquele que é natural de Aquino) escreve na Suma Teológica:

Essa opinião deve ser contada entre aquelas alheias (extraneae) à filosofia, porque não é somente contraditória à fé, mas subverte também todos os princípios da filosofia moral. De fato, se nós partirmos para a ação, necessariamente, se suprime a deliberação, a exortação, o comando, o louvor e a reprovação, que são coisas pelas quais existe a filosofia moral... Tais opiniões, que destroem os princípios de alguma parte da filosofia, dizem-se posições extravagantes (positiones extraneae), como a afirmação de que nada se move, a qual demole os alicerces da ciência natural.

Contra os que afirmam que as ações humanas não são integralmente livres, pois são determinadas por outros fatores, Santo Tomás faz a seguinte declaração, com uma sutileza muito aguda:

A nenhum ser é dada em vão uma faculdade como a liberdade. Logo, o homem tem a capacidade de julgar e de refletir sobre tudo quanto pode operar, seja no uso das coisas exteriores, como no favorecer ou rejeitar as paixões internas; e isso seria inútil se o nosso querer fosse originado pelos astros e não pela nossa faculdade. Não é, portanto, possível que os astros sejam causa da nossa eleição voluntária (Idem).

Mas a razão mais profunda com que Santo Tomás justifica a presença da liberdade na determinação das ações humanas é outra e tem como base a possibilidade que o homem tem de avaliar os limites e as carências das coisas que se oferecem à sua atenção e, conseqüentemente, de elegê-las ou repeli-las. A análise teológica sobre a liberdade é muito rica e jamais se esgota. Cada escola, grupo social ou ideologia, tem suas pistas para obter a libertação. Desde que o mundo é mundo, ante a ameaça do mal, têm surgido muitas teorias a respeito do pleito mais plangente da humanidade: a libertação do mal.

Para os cristãos, Jesus Cristo, através da sua Verdade, é o autêntico libertador (Jo 8,32). Enquanto o mal é agente da mentira, Jesus é a “verdade que liberta”. Ora, a mentira escraviza, bloqueia, faz sofrer, trai e provoca uma derrocada na vida e nos projetos da humanidade. Quando ele traz a Verdade (“eu sou... Verdade...”), seu desejo é banir a mentira, e com ela todo o mal que separa os homens, de Deus e dos outros homens. Jesus é aquele que realiza a nossa libertação do mal. Para que haja uma libertação ampla e integral, alguns requisitos são necessários:

• que se reconheça uma situação de cativeiro e opressão;

• que exista um Libertador;

• que se tenha confiança em seu poder;

• que o oprimido queira se libertar.

Sem liberdade a Verdade não aparece, e ficamos com aquela impressão que o mal venceu. A pureza e a abertura do nosso coração nos liga àquela liberdade de ver as coisas velhas de outro jeito, de dizer e fazer coisas novas, de ir contra a maré das “idéias prontas”. É a liberdade de discordar, dissentir, decidir. Não se sabe até que ponto o livre-arbítrio é adequado às limitações do ser humano. Se todos estão aptos a assumir a liberdade de agir e responsabilizarem-se por tais ações, ainda é um assunto um tanto quanto obscuro. O que será mais condenação: a liberdade ou a falta dela? Somos livres para decidir entre o bem e o mal? Deus nos ajuda a decidir com liberdade, sem pressionar.

Onde está o Espírito de Deus ai há liberdade

Pregação levada a efeito num retiro de padres em Santa Catarina em 2008