O depoimento delas e os dois juízes
O depoimento delas e os dois juízes
“Pra mim se a gente quer melhorar de vida tem de enfrentar tudo... se depender do governo a gente morre de fome (...) quero sair daqui (...) queria estudar hotelaria e me mandar para os Estados Unidos porque lá não tem pobre...eu vi na novela e gostei”. T., 24 anos, branca, 2 filhos, casada, segundo grau completo, desempregada.
Três milhões de pessoas é a estimativa sobre a quantidade de moradores da região de Santo Amaro, São Paulo, capital, zona sul. Nesta região incluem-se os distritos Jardim Ângela, Jardim São Luis, Capão Redondo, Vila Andrade e Campo Limpo Paulista, entre outros, para não dizer entre muitos outros.
O leitor sem conhecimento sobre esta região, deve usar a lente com as cores “região carente”, para uma melhor compreensão. Feito isso, aplica-se na Grande Constante (carência), as seguintes variáveis: cor, raça, educação, mercado de trabalho, saúde reprodutiva (para as moças) e, por que não(?), expectativas com o futuro.
“Na minha opinião tem racismo no Brasil do branco para o preto e do preto para o branco e do preto para o preto. Eu acho que se a gente fica falando sobre isso piora cada vez mais. Eu não gosto de falar sobre isso porque todo mundo é ser humano e nasceu de um só Deus...” M., 23 anos, 2 filhos, casada, segundo grau completo, dona de casa.
Nesta Grande Constante locada no universo sob a tarja “região carente”, a própria tarja fornece explicações básicas, quando na verdade deveria ser auto explicativa, ou quando na verdade nem deveria existir. Mas existe. Eis o básico tradutório para “região carente”: acesso a serviços de saúde e educação de baixa qualidade, precariedade nas condições de moradia, violência doméstica, restrições a bens culturais e de lazer.
“Se eu pudesse escolher sairia daqui (São Paulo)(...) queria morar no Rio de Janeiro porque lá é maior do que aqui e tem praia, e eu gosto de praia, de sol (...) você não vê na novela? Se mostra é porque é verdade (...) Gostaria de voltar estudar mas não tinha vaga na escola aqui perto...mas tudo isso vai ficar só em pensamento”. J., 21 anos, negra, 1 filho, solteira, segundo grau incompleto, desempregada.
O significado de uma única vida humana sempre é encarado, pela Mente Oficial, como poesia, na melhor das hipóteses. Três milhões chamam a atenção, ou deveriam chamar. Principalmente quando uma parcela não calculável dessa cifra ou bem é coletor de lixo, ou bem é diarista.
J., 17 anos, negra, sem filhos, solteira, ensino fundamental incompleto, desempregada, também quer ir embora, também viu na novela um mundo deslumbrante, anseia por encontrar “um gringo bonito e rico que a tire dessa”, pois J. tentou estudar, mas nunca tinha aula, também trabalhou em casa de família com a mãe, “mas não gosto de ser empregada das pessoas, elas humilham muito a gente”.
Saneamento básico, numa larga faixa de terra, densamente populosa, e com as características acima descritas, vai ter exatamente as características que você imagina. Seria encantador dizer, nessa altura, diz a lenda que as Nações Unidas...Porque na terra do faz-de-conta a lenda impera, mas o buraco com as Nações Unidas é mais embaixo, e categórico: “a existência ou não de saneamento básico demarca a linha divisória entre os miseráveis e o restante da população”. Adivinhe o veredicto da população sobre o quesito. Agora, no exercício da imaginação, pense que você mora numa casa deslumbrante, folheada a ouro, mármore do rés à cumeeira, mas cuja privada não passa de um adorno.
O exercício da imaginação talvez seja, além do conhecimento da lei, a principal ferramenta dos dois juízes. Isso porque, semana passada, foi veiculado na mídia que a região de Santo Amaro conta apenas com dois juizes de vara de família.
Falar dessas vidas com consideração humana já se solidificou no inconsciente alheio como pieguice ou coisa de comunista. Raciocínios um tanto tolinhos na alvorada do terceiro milênio. Mostrá-las na TV sempre no crime, na hecatombe ou na mendicância sugere uma forma de freqüentador (e apreciador) do Coliseu.
O abobalhado se divertindo à custa dos desafortunados.
Dois juízes para 3 milhões de pessoas. Há algo errado com o judiciário, me cochicha o resíduo da inteligência.
Agora, quais são as preocupações práticas do Estado com relação a essa multidão, que não se banha nas águas do Ganjes? (Existe uma pesquisa muito interessante sobre as águas do sagrado rio indiano, cujo resultado é espantoso: apesar de pouco recomendáveis devido a poluição, seus resultados daninhos no corpo dos que se banham é praticamente inócuo. Talvez por isso o rio seja sagrado...).
Exemplo pertinente: primeiro, ele chega em casa e não tem banheiro. Quer dizer, tem banheiro, mas o funcionamento é relativo. Depois, o bairro é um grande banheiro. A mãe dele está doente. Dez não é a nota do hospital e zero é o transporte para levá-la até lá. Como ele se sente?
“A cidade não é de todos. Temos de admitir que vivemos no mais completo dos apartheid racial e social” (A. Almeida Santos)
Se você cria na consciência do seu semelhante que ele não é seu semelhante, mas um potencial meliante, a colheita vai ser dissonante.
“Quando eu estudava foi um grupo de pessoas falar sobre essas coisas de racismo(...) porque se você andar aqui pelo bairro vai encontrar uma moçada que podia estar trabalhando mas está no tráfico, ninguém quer dar trabalho para eles porque acham que porque são pretos, são bandidos”. L., 23 anos, negra, 2 filhos, solteira, segundo grau incompleto, desempregada.
As meninas da região completam o testemunho sobre o crime. Não, o crime não pode ser justificado. Mas pode ser analisado e as circunstâncias apreendidas com o intelecto aberto. Até porque o crime não é exclusividade da classe D. Espantosamente ele também ocorre no seio da A. Porque a D, como a A, também tem seio. Só que o D é um seio árido.
Um extrato verificável – exemplo: 60 mortos foi o saldo do crime num final de semana em SP/SP. Noventa por cento desse saldo não é na porta da minha casa. Nem da sua.
Eis o que as meninas dizem:
“Eu não condeno esses meninos, mesmo achando que estão errados – mas a gente tem de ver que se eles querem um tênis, não tem, se querem sair com a namorada, não podem, quer uma coisa ou outra e também não tem, aí começa a fazer coisa errada e acaba morrendo fora de hora, na mão de bandido ou da policia”. L., branca, 23 anos, solteira, um filho, cobradora de lotação.
O que está embutido dentro nós, perante um depoimento desses? Vou te dizer: “Qual é, meu?! Vagabundo tem que morrer!”. É lógico, todos já ouvimos isso, é lógico, nós, do outro lado da fronteira, também já falamos isso.
Agora, filosoficamente dizendo, e portanto residindo na filosofia, temos o dever de raciocinar para compreender. Temos o dever de compreender para propor soluções corretas. Soluções corretas são frutos de um plantio. Não existe plantio de sopetão, nem semeadura com a mente fechada. No campo das idéias tudo pode ser plantado. Inclusive a noção de ajuda. Que, muito cá entre nós, acho uma noção e tanto.
Na mais famosa irmandade de auto ajuda do mundo existe o seguinte lema: muitas reuniões, muitas chances, poucas reuniões, poucas chances, nenhuma reunião, nenhuma chance. O quesito reunião, no escopo da auto ajuda, significa educação.
Educação, no território aqui contemplado, tem quase o mesmo
status do saneamento básico.
Não sei porque, ao falar de juízes, faço a associação com chances.
É necessário muita luz para avaliar o trabalho deles. Eles sabem disso, pois mesmo em se tratando de assunto mais leve: vara de família, e não mais pesado, vara criminal, salvo as raras aberrações, ninguém nasce criminoso. Família é um dos meios onde se forja o cidadão. Outro meio é o meio.
Parte das informações contidas nesse artigo resultam do trabalho de Vera Cristina de Souza, em seu artigo intitulado “Entre o feijão e o sonho”. Não a conheço. Muito provavelmente jamais virei a conhecê-la, o que não me impede, porém, de aqui parabenizá-la pela excelência de sua obra. Tampouco conheço os juízes. A informação da existência da monumental responsabilidade que eles tem em mãos, chegou-me, assim como a Vera, através da palavra.
Será, contudo, o verbo deles que mapeará as chances dos que já nascem com poucas chances. De qualquer forma, vale sempre lembrar, do verbo fez-se a luz.