Aquarela do Delta

Com o olhar fixo na tela presa no cavalete, o artista observa minuciosamente seu costumeiro cenário: aberta, a janela cinza mostra uma vista turva, de onde se pode ver as últimas folhas secas caindo no chão. Ao fundo, ruínas de casas abandonadas. Não há vida, tudo é desolação. As lembranças retratadas são sempre tristes. A amargura guardada em seu peito não lhe permite enxergar a vida das cores. Porém, uma olhada para conferir os detalhes oferecidos pela cidade flagra os últimos raios do pôr da lua prateando o Rio Igaraçu e uma nova imagem surge em sua mente absorta. O pintor toma o colorido das tintas para substituir as pinceladas de cor fúnebre pela luminosidade que lhe invade os olhos e, de pincel na mão, ele começa, rapidamente, a alterar os sombrios traços. Uma cidade-aquarela nasce junto com seus sonhos.

A partir do parapeito da cobertura do histórico Hotel Delta, divisa-se uma imensa floresta de palmeiras, oitizeiros e coqueiros que se assemelham a um mar verde. Ao longe, dunas brancas ponteiam o horizonte. Como se saísse das entranhas desse paraíso, o Igaraçu desliza manso pelo cais do Porto das Barcas. Embaixo, os pássaros fazem barulhentas revoadas nas copas das árvores parecendo anunciar as novidades do dia, enquanto os seculares casarões preparam-se para avançar mais um passo majestoso em suas existências misteriosas.

Erguida à base de óleo de baleia, Parnaíba sobreviveu aos modismos passageiros, à busca do enriquecimento fácil e só nas últimas décadas começou a superar as frustrações pela perda do filão da cera da carnaúba. Do passado, ficaram palacetes e ruelas que vêm testemunhando a luta contínua do povo parnaibano para alcançar novos apogeus econômicos. A brilhante trajetória histórica que a destacou no Nordeste a torna agora delicada e frágil, carente de políticas públicas responsáveis.

Nascida sob o signo do pioneirismo e riqueza, Parnaíba é a única cidade piauiense que pode se orgulhar de ter sustentado os gastos do Estado e sido um importante pólo de desenvolvimento econômico. Suas características a credenciam como Portal para o único Delta das Américas em mar aberto. Isso faz com que aos interesses comuns com as outras cidades, como saneamento básico e melhoria das vias de acesso, sejam somados outros desafios de caráter interno. Muito há para conquistar. Prova disso é que a Embratur classificou esse paraíso como o terceiro Pólo Turístico do Brasil ainda inexplorado.

Ironicamente, todo esse patrimônio sócio-ambiental manteve-se protegido ao longo do tempo graças às fracassadas tentativas de transformar Parnaíba em sede do Governo Estadual e, posteriormente, ao retrocesso econômico sofrido pela Princesinha do Igaraçu ocasionado pela conjuntura internacional do Pós-guerra e agravado pela absorção draconiana de recursos pela neófita capital, que ainda hoje suga o grosso dos investimentos a fim de sobreviver no tórrido e inóspito interior do Piauí. Devida a essa incômoda relação política, os municípios deltáicos são obrigados a tolerar a presença predatória da capital (Teresina) no Pólo Costa do Delta.

Nem mesmo o declínio financeiro sofrido por Parnaíba em meados do século passado impediu sua natural vocação para o crescimento que, ao contrário de outros tempos, tem agora perspectivas livres da necessidade de destruir seu santuário ecológico. Basta compreender que se o progresso do século XX tivesse sido desenfreado em Parnaíba, e todos que aqui chegaram houvessem enriquecido, não teríamos um Delta preservado com suas ilhas cheias de pássaros, caranguejos, manguezais e animais silvestres em pleno século XXI. E os traços pintados por Simplício Dias da Silva, ainda no início do século XIX, formando o primeiro mapa do Delta do Rio Parnaíba, comporiam apenas um quadro surrealista.

Se tivesse sido assim, Parnaíba não seria uma das cidades mais românticas do Nordeste com sua doce tranqüilidade nas ruas, ar puro, silêncio à noitinha, amigos de infância e lugares sossegados para passear. Não existiriam carroças puxadas por cavalos nas avenidas, as praças não seriam lugares para solitários pensadores e os donos das quitandas não confiariam que um desconhecido qualquer quitasse uma dívida depois. O encontro perfeito entre o pôr do sol e a curva do Igaraçu na Beira Rio não seria tão bonito, nem as águas barrentas poderiam embalar solitárias canoas presas ao tronco, à espera do labor do dia seguinte. Talvez o mar não conservasse mais seu sedutor tom verde-esmeralda. Diante disso, surge uma intrigante pergunta: essa é uma rica cidade pobre ou uma pobre cidade rica?

Com uma posição geográfica privilegiada, similar às metrópoles litorâneas, Parnaíba vê diante de si a possibilidade de ascender sem cometer os mesmos erros dessas grandes cidades, cujo desenvolvimento se fez à custa da destruição dos mangues, mata nativa, flora e fauna silvestre, recursos naturais, e da modificação de suas características originais. A exploração imobiliária nas orlas priva a população da brisa do mar e altera o fluxo natural da ventilação continental, acarretando o aumento progressivo da temperatura e agravando os efeitos da poluição, provocando assim danos irreparáveis na vida dos animais e vegetais. As águas fluviais deixaram de serem potáveis pela poluição de resíduos lançados por indústrias, residências e até hospitais. O desregrado crescimento populacional dessas cidades vem gerando vários problemas que comprometem seriamente os aspectos sócio-ambientais, refletindo não só nas alterações ecológicas, mas nas relações humanas que necessitam das benesses do meio ambiente para sobreviver.

Parnaíba ainda guarda um jeito de cidade pequena. As festas ainda são familiares; à tardinha, rodas de cadeiras se formam nas calçadas atraindo vizinhos para manterem os assuntos em dia, sem medo algum da violência urbana. Mesmo resguardando essas raridades na globalização e no capitalismo, a Princesinha do Igaraçu ocupa uma importante posição política no Estado por ter potencial para se transformar num pólo referencial de desenvolvimento equilibrado no Nordeste brasileiro, e talvez no mundo.

É em sua história gloriosa que a cidade também encontra outra interessante fonte de enriquecimento: dona de um Patrimônio Histórico e Natural, Parnaíba poderá se consolidar no Turismo Cultural. Para isso é necessário interromper o processo de abandono e deterioração que muito desse legado – em especial a Memória – tem sofrido com o passar do tempo. O prédio de maior importância histórica do Estado, a Casa Grande de Simplício Dias, está em ruínas assim como as Histórias de Parnaíba e do Piauí, que vêm sendo continuamente violadas. Com os prédios novos que desfiguram as antigas construções sobram-nos as migalhas de uma cultura que cada vez mais fica esquecida.

E os poucos que tentam relembrá-la e perpetuá-la vão se deixando levar pelo esmorecimento ao avistar o asfalto, produto da modernidade, avançar sobre o impotente Centro Histórico. Enquanto os palacetes vão sendo cruelmente demolidos ou alterados, as galerias subterrâneas permanecem esquecidas. Há pouco tempo perdemos os jardins Landri Sales e Rosário do Largo da Matriz. Menos sortes tiveram as praças Cel. Jonas Correia e a Antônio do Monte, que viraram pocilgas. Enterradas nesses escombros, estão as verdadeiras festas populares. Não há mais lugar para as lembranças do carnaval de rua do Simpatia e do Bloco Tulipa, das festas juninas, do bumba-meu-boi, dos forrós, das marujadas, do coco perenuê, das quermesses e dos desfiles cívicos. Nem recordações dos fraternos Natais e Ano Novo que eram vividos na Praça da Graça. Para os que resistem ao desânimo resta fantasiar a História contada pelos mais velhos.

Ainda assim, a cidade mantém-se firme. Não se sabe se por causa da brisa do rio ou da majestade das palmeiras, o fato é que Parnaíba sempre se postou ao lado da liberdade, do desprendimento, às vezes pagando caro por insistir em ser um tanto orgulhosa. Cada calçada guarda uma pegada histórica, um sonho, uma vida. Pelas suas ruelas caminharam homens com a disposição de guerreiros, prontos para batalhas em prol não apenas da sobrevivência, mas da independência e de idéias ousadas para suas épocas.

Hoje, a cidade precisa, urgentemente, resgatar suas lendas e mitos, seus fatos e seus personagens, pois do contrário, casarões e becos não conseguirão revelar os tesouros que guardam. Para envolver a população, que é componente fundamental desse projeto de resgate, é imprescindível ampliar o conhecimento dos cidadãos acerca de todo esse patrimônio. A participação do povo na definição dos rumos de sua cidade é uma das maneiras mais seguras de garantir, por exemplo, a colaboração com a preservação dos bens tombados e, conseqüentemente, com o sucesso do Turismo Cultural, que deverá ser uma das bandeiras da região.

Preparando-se para recepcionar um tipo específico de turistas, Parnaíba poderá cultivar um turismo diferente de outros cantos do Brasil. É importante compreender que Parnaíba detém ecossistemas frágeis, que não podem ser arriscados em hipótese alguma em decisões que atendam apenas aos interesses meramente econômicos. Isso não significa dizer que com o Turismo Cultural e o Ecoturismo haverá perdas financeiras, pois o setor é sustentado por um público com alto poder aquisitivo.

No espaço urbano, o cuidado tem que ser reforçado para atender às especificidades de cidade-aquarela do Delta. Por isso, os cidadãos precisam utilizar os mecanismos de atuação social. É o caso do Plano Diretor, que disciplina o progresso e adequa cada área da cidade às verdadeiras necessidades da comunidade, alicerçando um modelo que criará impactos positivos na situação econômica, social, física, territorial e ambiental de Parnaíba. Com o Planejamento Urbano, Parnaíba não só está obedecendo à Lei Federal Nº 10.257/01, como está se organizando para o futuro.

Ciente de que pertence a um corredor turístico, Parnaíba experimenta novamente o papel de líder supremo do Norte. Esse novo ciclo de crescimento deverá superar definitivamente as distorções deixadas na região pela desorganizada urbanização promovida no Brasil a partir da segunda metade do século XX, quando se emanciparam centenas de pequenas localidades, ávidas por gerir sozinhas seus próprios recursos, pois as sedes dos municípios a quem pertenciam eram vistas apenas como concentradoras de renda. Foi assim que a extensa Parnaíba se viu desnorteada, com a transformação de sua zona rural em cidades circunvizinhas.

Em pouco tempo, os recém-criados municípios perceberam que a emancipação política não garantia a independência sócio-econômica. Do sistema de saúde ao comércio, tudo ainda passa por Parnaíba. Essa necessidade de convivência facilitou o apagamento da mágoa causada pelas separações e, novamente, Parnaíba se reencontrou com o seu destino, tendo pela frente o desafio de planejar um desenvolvimento equilibrado e sustentável para o futuro e que leve em conta a realidade de todas as localidades que dependem de sua infra-estrutura.

Os planejamentos devem incluir as necessidades dos vizinhos, considerando-se que Parnaíba tem uma participação decisiva nos interesses da região. A atuação em grupo é o modelo político que deverá se consolidar nesse século, pois no mundo globalizado tem mais poder quem está coeso. O fato do Norte do Piauí ter municípios tão diferentes entre si possibilita a formação de consórcios nos mais variados setores, abrangendo desde o potencial agropecuário até à exploração turística de seus cerca de sessenta sítios arqueológicos. Essa rica diversidade dá ao pólo do Delta uma particularidade que o torna referência nacional: em geral, os pólos agregam cidades com características bem semelhantes, concentrando-se em poucas áreas.

A centralização de equipamentos em Parnaíba habilita-a como gestora do pólo do Delta, pois enquanto cidade-universitária cabe-lhe formar profissionais qualificados para a região, assim como conduzir o processo de transformação da realidade regional, visando a otimização da Bacia leiteira; a estruturação do Ecoturismo (Lagoa do Portinho, Delta do Rio Parnaíba, Parque Nacional de Sete Cidades, Pedra do Sal, Projeto Peixe-boi, desenvolvimento do Projeto Orla...); a criação da Universidade Federal da Parnaíba; a organização do Artesanato e do Distrito de Irrigação dos Tabuleiros Litorâneos; a internacionalização do aeroporto para a exportação dos produtos do agronegócio e do extrativismo; a melhoria da infra-estrutura; e o ordenamento dos recursos pesqueiros.

Nesse projeto de desenvolvimento Parnaíba deve priorizar também a recuperação da qualidade ambiental do Baixo Parnaíba, que vem há muito tempo sendo degradado desde o Alto e Médio Parnaíba pelo desmatamento das matas ciliares e das várzeas, assoreamento, queimadas, esgotos, erosão e lançamento de agrotóxicos. Há dez anos, cientistas japoneses publicaram pesquisa realizada no Rio Parnaíba que identificou muitos desses problemas. Segundo os pesquisadores nipônicos, medidas adequadas e investimentos poderiam transformar o rio em uma grande hidrovia. O tempo passou e nada disso aconteceu. O descaso para com o Parnaíba agravou a situação de tal forma que a poesia de H. Dobal sobre o Velho Monge está prestes a virar profecia: “É um fio na memória um rio esgotado”.

De acordo com estudos da Fundação Rio Parnaíba (Furpa), em menos de duas décadas, a quarta maior bacia brasileira e a segunda do Nordeste corre o risco de ser extinta. A sobrevivência do Piauí e de parte do Maranhão depende da urgente reabilitação do Rio Parnaíba. A preservação da aquarela de Simplício Dias depende inteiramente da conscientização sobre a nossa vital relação com esse meio ambiente. Embora cada cidadão tenha sua parcela de responsabilidade, essa é ainda maior nas mãos daqueles que dispõem, no presente, de condições legais para elaborar e gerir as políticas públicas que edificarão o futuro parnaibano. Finalizo parafraseando o poeta R. Petit, autor do Hino da Parnaíba: “A doce sombra da paz suprema, progredir sempre é o nosso lema”.

Rafael Ciarlini
Enviado por Rafael Ciarlini em 23/10/2008
Reeditado em 24/10/2008
Código do texto: T1244491
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