O espanto como pressuposto ao filosofar e a dúvida cartesiana
A tentação de todo leitor ingênuo é buscar na obra de um pensador respostas sobre todas as coisas. Todavia, ao aprofundar no estudo filosófico percebe-se o contrário, encontra-se no filósofo, muitas vezes, apenas inspiração para outros questionamentos. Desse modo, esta reflexão das Meditações cartesianas toma como base algumas questões que foram levantadas no decorrer da leitura e também ao terminar a leitura da mesma. Por conseguinte, nas linhas que se seguem, a proposta é “meditar” com Descartes algumas questões que são pertinentes nos dias atuais.
Mas, por que duvidar, se aceitando o que já está dado é bem menos trabalhoso? Percebe-se que, mesmo não sendo possível desvencilhar-se de tudo o que já foi dado, é a partir da dúvida, do espanto que é posível pensar filosoficamente. É possível uma filosofia de algo já determinado? Se somente for acatado o que foi dado, não existe filosofia.
Assim, no horizonte da racionalidade, o primeiro passo para se chegar à verdade é a dúvida. Mas isso só é possível àqueles indivíduos de espírito livre, que encaram a vida com seriedade, são capazes de viver na solidão, não por transtorno, mas por opção. Foi a escolha deste caminho para o filosofar.
Na medida em que o homem é capaz de tais atitudes, ele também é capaz de se perceber pensante. O homem primeiramente existe, depois ele se descobre pensante, mas ele só descobre isso na medida em que pensa.
O pensamento não aprisiona o homem a pensar só em si, mas o conduz a pensar que, ele existe e não é perfeito, mas constantemente busca a perfeição. Então, deve haver algo que é perfeito e ser exterior a ele. Descartes parte da idéia de infinito como idéia padrão e original.
O homem é finito e, por isso, reconhece o infinito. O infinito, por sua vez, é perfeito e, portanto, implica existência. Nesta discussão vem à tona diversas questões que, as vezes, não é possível responder, mas apenas “meditar” sobre elas. Então, ao falar do infinito surge a idéia de Deus, mas é possível identificar Deus e infinito? Em Descartes, percebe-se uma certa distância entre eles, ao mesmo tempo, algumas características parecem comuns, como por exemplo, a perfeição.
Pode-se afirmar que o sujeito só se reconhece quando reconhece o infinito, daí chega-se ao centro do pensamento cartesiano, o cogito, fundamento de toda a sua filosofia. Ele não pode ser considerado fechado na razão, mas envolve todas as dimensões da racionalidade, isto é, razão, emoção, sentimento, vontade. É o cogito cogitando-se, ou seja, descobrindo a si mesmo, tomando como regra para a verdade a clareza e distinção que, para Descartes, é raciocínio lógico, indubitável.
Contudo, a condição humana não permite uma total clareza e distinção, por isso o homem é passível ao erro. O homem, para formular juízo, depende da faculdade do entendimento e da faculdade da vontade. Elas, no entanto, não mantém constante comunhão, sendo o entendimento limitado e a vontade ilimitada, o homem está sujeito a formular juízos falsos ou optar pelo mal ao invés do bem.
Sendo assim, por que Deus não garante o conhecimento verdadeiro?
Volta-se ao cogito, ele é o fundamento da verdade, portanto, esta se encontra fundamentada no sujeito e não em algo exterior a ele.
A partir disso nota-se a complexidade do problema do mal, vários pensadores, em épocas diferentes, se questionaram sobre este problema e, por conseguinte, não é possível oferecer uma resposta definitiva. Nesta reflexão que se apresenta, pode-se dizer que o problema do erro e do mal se dão quando a vontade delibera sobre todas as coisas, dessa forma o entendimento se perde.
Este é um problema atual, da mesma forma que Descartes afirma que o erro é resultado da má conjugação do entendimento com a vontade, hoje o mal é conseqüência do simples querer do homem, que age sem pensar na gravidade de seus atos.
O mundo exige agilidade, por isso o homem tem a necessidade de responder às exigências e se perde com a dimensão do pensar. Tais problemas só existem porque fica esquecida a regra da clareza e distinção que, como em Descartes, é fundamentada pelo sujeito pensante.
Essa idéia de clareza e distinção parte do raciocínio dos objetos matemáticos, por exemplo, a soma dos ângulos do triângulo é igual a cento e oitenta graus. A partir disso, afirma-se, com certeza, que o cogito é a garantia do conhecimento, da idéia de existência do infinito, etc.
Vale notar que o homem não é só ser pensante (res cogitans), o próprio Descartes admite a existência do seu corpo e demais corpos. Essa concepção é possível porque, além dos objetos da Geometria, percebe-se som, cor, etc. mediante os sentidos.
Quanto à constituição do homem, o próprio Descartes se questiona: “que sou eu então?” Fala-se de um dualismo cartesiano, ou seja, as propriedades de extensão e de pensamento são mutuamente incompatíveis. Então, Descartes se reconhece ser pensante, mas já admite a existência de matéria, e por isso estabelece a distinção: Res cogitans – a existência espiritual do homem sem nenhuma ruptura entre pensar e ser, é a alma humana como realidade pensante. E res extensa – o material compreendido, obviamente o corpo humano, do qual justamente se pode predicar apenas a propriedade da extensão, o aspecto físico.
Realmente ele estabelece uma linha divisória entre a realidade material e a espiritual, mas sem negar a existência e a importância de ambas. Ele não contesta a interação que sempre ocorre entre alma e corpo. A faculdade passiva (espírito) recebe e conhece as idéias, mas necessita da faculdade ativa (corpo) capaz de formar tais idéias. Portanto, o homem é um ser dual, ou seja, ele pensa (espírito) e ocupa um lugar no espaço (corpo físico).
A diferença proposta em relação a esta “unidade” é a seguinte: o corpo é divisível, por ser matéria, mas a alma é indivisível, pois é imaterial. O homem é um todo composto de duas substâncias, sendo que cada uma (corpo e alma) lhe oferece os atributos que lhe caracterizam.
Há duas realidades que operam conjuntamente, pois, de um lado, tem-se o fato de a alma ser consciente de sua ação sobre o corpo, de outro lado, ignora-se o movimento que ocasiona tal procedimento. A disposição do corpo é indiferente para a alma, mas a união (corpo e alma) não pode ser ignorada pela alma. Contudo, tal distinção é muito importante para confirmar a capacidade humana de “transcender” a simples realidade física para a espiritual.
Cada pessoa é muito complexa, principalmente em relação ao pensamento. Ninguém conhece mais o pensamento do outro do que ele mesmo. E, a partir desse conhecer-se que é possível ao homem “transcender” sua condição e buscar o conhecimento claro e distinto. Conseqüentemente a busca pela perfeição (Deus).
Portanto, a dúvida favorece a reflexão, levantar novos questionamentos, mas também possibilitou chegar à certeza da existência da “res cogitans”, da “res extensa”, do infinito. Dessa forma se dá o processo do conhecimento, da dúvida que forma certeza e que novamente gera novas dúvidas. Só assim a vida se torna dinâmica e a filosofia se torna viva.
Edir Martins Moreira, graduando em Filosofia pela Faculdade Arquidiocesana de Mariana (FAM)