Ecos românticos da modernidade
Salta aos olhos, tanto do leitor cultivado pelos estudos acadêmicos quanto daquele leigo, a relevância que teve para a modernidade ocidental a revolução promovida pelas inovações da estética romântica. Pode-se, sem extremos esforços de imaginação, perceber, por exemplo, a herança da subjetividade romântica na produção simbolista; os vestígios de seu ufanismo nos textos de cunho nacionalista que lhe foram subseqüentes (os modernos da Semana de 22, a título de crítica, retomam os românticos e fazem o mesmo que fizeram – desta vez, por caminhos diferentes!); os laivos de seu sentimentalismo exagerado na produção massificada de músicas populares, tão atraentes ao gosto do povo brasileiro, que se mantém ainda muito “romântico” até nossos dias; e não seria fora de propósito encontrar, por exemplo, no "Surrealismo", cujo aspecto niilista enfatizava o papel do inconsciente na atividade criadora, uma forma, talvez mais aguçada ou degenerada, da negação do racionalismo que percebemos nos românticos. Pode-se afirmar, contudo, que, dentre todas as suas contribuições, seu rompimento com os modelos clássicos, sua proposta de liberdade é, sem dúvida, crucial para arte moderna.
Pensar o artista como um ser regido por normas e modelos fixos e fixadores é, no mínimo, um crime. Entretanto, é óbvio, que não se pode também deixar vagar a imaginação sem o mínimo critério estético, permiti-la fazer os mais desconcertantes devaneios e, ao cabo, chamar-lhe o produto dos delírios de arte.
É difícil determinar o limite entre a descarga emotiva natural e a “subjetividade objetiva” que se espera do artista das letras. Houve poetas românticos que não conseguiram frear seus impulsos interiores e produziram calorosos (quem sabe poéticos) desabafos. Muitos poetas de ontem e de hoje começaram sua vida literária pela veia emotiva. Deixaram-se levar pelas sensações e começaram a produzir textos. Talvez a comoção seja a forma mais natural de se iniciar na vida artística e literária.
Alguns poetas românticos, no entanto, a exemplo de Gonçalves Dias, souberam dosar de maneira equilibrada os arroubos da emotividade e as inúmeras vantagens que uma forma mais livre poderia possibilitar para a construção do artefato poético.
Exemplo inconteste disso é o seu poema “Tempestade”, em que une aos aspectos formais os temáticos ao sabor da necessidade, seguindo princípios de liberdade formal bem definidos por ele mesmo no prefácio aos “Primeiros Cantos”:
“Muitas delas (as poesias) não têm uniformidade nas estrofes, porque menosprezo regras de mera convenção; adotei todos os ritmos da metrificação portuguesa, e usei deles como me pareceram quadrar melhor com o que eu pretendia exprimir “.
O poema “Tempestade” se inicia com uma estrofe de duas sílabas. Descreve-se, neste momento, a mudança do clima que dará início a uma tempestade. À medida que o clima vai se tornando mais denso, mais intenso, o número de sílabas por estrofe aumenta: a segunda com três sílabas; a terceira com quatro, e assim por diante até o verso undecassílabo que coincide com o momento mais intenso da tempestade descrita no poema. A densidade do fenômeno natural é reforçada a todo o momento pela estrutura das estrofes e pelos jogos sonoros produzidos por aliterações e assonâncias. Após o momento mais intenso, a chuva vai diminuindo, o clima vai voltando ao que era antes, e em harmonia com o desenvolvimento da descrição, os versos das estrofes vão reduzindo seu número de sílabas até a estrofe dissilábica final. O mesmo recurso funcional da forma acontece no “I – Juca Pirama”. O ritmo heptassílabo é posto a serviço da temática textual ao longo de boa parte do poema, figurando ora ritmos de músicas rituais indígenas (como a do momento inicial do poema), ora criando atmosferas de luta e de profundo sentimentalismo.
Graças a estas ‘liberdades’ a que os românticos se deram o direito, pode-se imaginar a profundidade das inovações que a arte moderna deu ao legado cultural que lhe foi deixado pela arte clássica. As contribuições da poesia moderna desprenderam as palavras das amarras fixas de modelos predeterminados para deixá-las livres a descortinar toda a gama de significações que se lhe venham, tanto de seu aspecto semântico e sonoro quanto de seu aspecto visual e espacial. A poesia concreta é exemplo disso. A paródia feita a um clássico romântico “Canção do Exílio” por José Paulo Paes é prova do que a liberdade das formas pode possibilitar ao trabalho semântico e estético do texto:
“Lá?
Ah!
Sabiá...
Papá...
Maná...
Sofá...
Sinhá...
Cá?
Bah!”
Num poema profundamente denso e criativo, o poeta satiriza o sentimento de exílio expresso na “Canção” e o aborda com maior intensidade poética quando isola textualmente os dois pólos do dilema: “Lá” e “cá”. Explora o poeta a sonoridade dos dois monossílabos opondo-os semanticamente pela própria oposição que se estabelece entre os aspectos constritivo e oclusivo, respectivamente, dos fonemas /l/ e /k/. A oclusão, que figura como todas as formas de obstáculos que se podem oferecer ao “eu-lírico”, está presente no “cá” (o exílio), enquanto o “lá” (o lar) oferece menos empecilhos à realização. O “lá” também é mais livre, posto que é caracterizado pela interjeição “Ah!”, que, por si, comunica tudo (veja-se a ausência de barreiras à passagem do ar para se pronunciá-la). Enquanto o “cá”, caracterizado pela interjeição “Bah!”, é todo obstáculos (note-se a oclusiva bilabial /b/ que simboliza as barreiras que o “eu” enfrenta). Acrescente-se ainda o ritmo imposto pelos versos dissilábicos do corpo do texto (melodiosos, tranqüilos, suaves), que caracteriza exatamente o “lá”.
O salto qualitativo que a arte literária moderna deu no que diz respeito ao trabalho semântico na palavra, à exploração estética de todas as suas dimensões, ao uso da forma de maneira funcional, que contribuiu – acredito – para a evolução do idioma, não seria possível sem os românticos. Seus devaneios libertaram as palavras. Sua proposta modificou a cultura ocidental de maneira marcante. E sua contribuição não se restringiu apenas à poesia. O seu rompimento com as convenções clássicas se estendeu ao drama, à prosa, à musica, à pintura e à escultura. Depois do Romantismo, a arte ocidental é outra.
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