ARQUITETURA E ECONOMIA
Não é só por charme que se deve ser comunista e arquiteto ao mesmo tempo. Artigas, Niemeyer e Lina, embora sejam o charme em pessoa, tinham motivos fortes para serem devotos da foice e do martelo. Se um dos motivos fortes meus coincide com uma razão deles, me parece que é o fato de o capitalismo condicionar a arte tanto em sua democracia quanto em sua liberdade.
O jogo do capital transmuta em hierarquia artificial a dependência horizontal que os homens têm entre si em sua vivência. À parte as delongas válidas que nos podiam guiar a esta conclusão, é fato que desprover alguém dos meios de produção é submetê-lo a quem os detenha. Enquanto que, nos países, “interna corporis” esta relação retira a soberania do ócio sobre o trabalho, nas ligações internacionais relações outras delegam a condição de periferia à maior parte dos países.
Essas regras, então, estabelecem obstáculos ao desenvolvimento da arquitetura, o que se pode comprovar historicamente. À cabeça, porém, nos vêm as ilhas de desenvolvimento de mercado, que arrastam consigo certa arquitetura. Uma arquitetura do espetáculo. Uma arquitetura que é pelo que representa, é o poder aristocrático, é o dinheiro. Arquitetura do espetáculo gratuito e desprovido de valores... Esta se presta ao usufruto restrito. Diz-se, nas propagandas aqui, “exclusivo!” e se pretende, com isso dar a acepção de original. Soa-me, contudo, como “excludente”. Falo tanto dos emires a viverem o nirvana à custa da miséria do resto do povo, quanto dos “bella vista`s” soteropolitanos, os quais, não fosse a gravidade de erguerem mais um muro no quadro de desigualdade da cidade, seus termos em inglês para definir cômodos seriam por mim perdoados.
E parece-me que, sendo o altruísmo sagrado para os islâmicos, ele soa como afago para os que compactuam com os atentados que alimentam a exclusão na capital baiana.
“Naturalmente” nenhum homem precisa trabalhar mais tempo de que o do seu ócio. Em tempos de internet, parece tão reducionista recorrer ao exemplo indígena, contudo, concluímos ser menos absurdo fazê-lo à medida que cada vez mais entendemos que trabalhamos não para nós e pelos incapazes, mas por nossos patrões e para suas empresas, - coisa que, não irônica, mas tragicamente, inverte a relação nós-empresa, pessoas-capital. Não podemos, obviamente trabalhar só para o presente, mas, ainda que atendamos o futuro e sua contingência, não temos que, pelas longas horas trabalhadas, nos alienar de nós.
Vagabundo? Não, humano.
O suprimento das nossas necessidades humanas gerais através do trabalho é o que nos dá o caráter livre do ócio necessário à produção cultural. Enquanto escrevo este texto, envolvido no balanço enjoativo do ônibus, tenho consciência de que, desprovido da razoável educação, alimentação etc. e de um lápis e papel, jamais estaria produzindo o que o leitor agora suporta... É, este texto, sem entrar no mérito da qualidade, produção cultural. Todos devem imaginar que em meu redor se dispõem pessoas que vão ao trabalho, à escola, pensam em suas contas a pagar, no próprio desemprego, sonham com o sono... Isto mata a cultura democrática. Penso que se deve aludir às manifestações culturais riquíssimas de povos oprimidos, como os negros e pobres na nossa cidade. Mas será que vale a pena sustentar a pobreza sobre o pretexto de que produz cultura? Depois, será mesmo que a morte precoce, por asfixia, dos potenciais gênios nas diversas áreas contribui para o desenvolvimento da arte?
Este parágrafo escrevo em ônibus diverso, o de volta. Venho de uma conversa, junto a outros da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA, com Assis Reis: um gênio. Entristeço-me, de um lado, por toda certeza de que uma arte democrática nos proveria genialidade em quantidade e qualidade tal que, talvez, Assis fosse um mero coadjuvante. Por outro lado, Assis é um gênio por pôr ênfase naquele “talvez”, que ao duvidar o engrandece – alegro-me aí.
Desejo que mudem as dificuldades, não que elas sumam. São essenciais. Hoje é difícil ser arquiteto, ser artista. Não é a mentalidade natural do homem conseqüente da evolução tecnológica que faz evolar o gosto pelas e o valor das artes e algumas técnicas. É, sim, o modo como a economia se organiza, em que ela foca. Se o foco é no acúmulo de riquezas, no lucro, no consumo exagerado, se dará ênfase à produção. Precipuamente, porém, a boa economia deve trabalhar pelo homem. Nisto surge a dificuldade de se destacar em meio aos inúmeros artistas, fomentados em cada pessoa, mas, ao mesmo passo, a arte ganha corpo e força e, logo, ganhamos mais nós mesmos.
A economia deve ser um conceito nascido não da escassez em si ou dela como fim, mas, isto sim, sem doces metáforas, do modo como se a resolve.
Não preciso de muitas linhas para desnudar todo o pensamento ético em torno da economia que o bom comunismo marxista, independente de corrente, tem como alicerce: a relação dedicação-benefício do trabalho deve ser, no mínimo, eqüitativa. Infeliz e felizmente nunca é eqüitativa. E isto porque: quando a economia trabalha em prol do homem ele ganha não só o que se provém fisicamente, mas todos os benefícios de libertar o seu “ser (verbo) humano”. No outro extremo, tão inversamente a si no anterior, a economia faz, de alguns, humanos (e sobre-humanos em seu consumo) e, da maioria, subumanos (e animais em seu consumo).
Nosso formato atual de economia, em seu cientificismo, traz a primazia do ostensivamente novo como ideal. A título de influência trabalha com a moda. Episódio que o ilustra é o convite feito a Niemeyer para que projetasse sobre a Fonte Nova um novo estádio. Convidaram, creio, antes pela moda que é Niemeyer, quem não quer uma obra deste no seu quintal? Não foi, com ampla certeza, pelo conhecimento daquele da cidade de Salvador, que é reduzido... O arquiteto, porém, recusou categoricamente a missão, argumentando respeitar a obra de Diógenes Rebouças. Esta medida não impactou de forma tão boa quanto o foi a intenção de Niemeyer, pois na sede inconseqüente de modismo e do “novo” de alguns se abrigou a atitude aprovar uma proposta totalmente radical e baseada numa arquitetura de um estádio em Hannover! Este tal é um “abrigo decorado” cujo tema é o novo (para parafrasear muito mal Venturi). Tem talvez seu valor na Alemanha, mas simplesmente foi “importado” como uma mercadoria gigante – aludindo, agora, Frampton.
Nossos rosários hoje parecem feitos de código binário. Precisamos da consciência, que não é egoísmo, de que os frutos do homem devem trabalhar pelo crescimento deste homem, que, aprimorando-se, dará frutos cada vez melhores para si, em um ciclo vicioso virtuoso. Precisamos, portanto, pôr a economia em seu lugar, trabalhar neste sentido para que não tenhamos como opressora nossa uma obra humana; para que sempre lembremos, e mais, vivamos fazendo atividades outras que, junto à dose necessária de trabalho, nos faça humanos; para que as manifestações culturais sejam deveras plurais.
Liberdade? Qual a liberdade artística existe para o artista que vende a sua arte? Um pintor não pinta o que quer quando trabalha com vendagem. É claro, existem exceções, as quais são difíceis de detectar, uma vez que a coincidência entre o que o artista diz querer fazer e a demanda do mercado nem sempre é mesma existente entre o que artista realmente quer e o que requer o mercado. Van Gogh, por exemplo, não conseguia vender seus quadros, embora sejam fantásticos. Se não o achassem naquela época, não importa, o válido é que o pintor, sem passar dificuldades, teria feito algo de vontade... Não obstante, funções como a arquitetura têm uma relação interessante e diversa com o mercado.
A arquitetura precisa de grande financiamento, é normalmente destinada a terceiros e tem grande porção de técnica que a aproxima de uma ciência. Isso automatiza um “mercado” para a arquitetura, mas hoje o mercado é distorcido de tal forma, que a arquitetura não se submete, como normalmente teria de ser, a um diálogo entre arquiteto e quem o contrata diretamente. O mercado transforma a construção civil em comércio, então as construções devem ser de padrão e preço tais que atendam aos objetivos empresariais, antes de tudo. A arquitetura, entretanto, em seu viés artístico versa pela vontade do artista ao projetar uma edificação, sua técnica, por outro lado, se dá na adequação das necessidades do usuário ao desenho arquitetônico (previsão da expressão cosmológica, que rematará a arquitetura: construção).
Sem proselitismo digo, por fim, que o comunismo é, antes de tudo, a expressão democrática da economia. É-lo, na medida em que, ao prover, através do trabalho necessário a uma dedicação-benefício eqüitativa, dando a base econômica, liberta o ser humano que há dentro de cada indivíduo na sociedade. Dá a economia sua posição de promover o humano, e não vice-versa apenas. A segurança econômica abriga o externar dos impulsos humanos, os quais, quando prejudiciais, podem ser dissipados por diversas atividades e, quando não, contribuem, até juntamente com aqueles, para a afirmação humana individual e social. É essa visão, conhecida pelo correr da análise, que acredito guiar aqueles arquitetos referidos no início. É uma posição ética, mas patentemente de proteção à arte em seus caracteres popular, livre e democrático. De proteção ao homem que se deve elevar com os seus frutos, e não se submeter a eles, sumindo aos poucos numa imparcialidade diante do viver digna dos textos científicos.