Centauro: a figura do homem animal da formação da sociedade do açúcar

CENTAURO

A Figura do Homem Animal na Formação da Sociedade do Açúcar

Para melhor entender o processo da formação da sociedade canavieira e como tudo a partir desse modo de produção ocorreu, vamos à busca das respostas para um cotidiano vivido debaixo dos olhos dos senhores de engenhos e dos seus comandados, geralmente os capitães do mato, esses com a função de zelar e guardar patrimônio do seu senhor tinha em seus animais, o cavalo, o boi e o escravo seu suporte de desenvolvimento, e hoje toda a sociedade convive com os traços deixados por esse momento histórico.

Homem-animal, açúcar e cotidiano.

O senhor de engenho do nordeste foi quase que uma “figura de centauro” , como afirma ainda Freire esse centauro era um “defensor da ordem”. Suas características peculiares não faziam se esconder nem poderia, seu papel principal era fazer com que seus comandados trabalhassem cada vez mais. Esse homem (o senhor de engenho) era o mesmo que quando não estava a cavalo, mantinha a mesma ordem dentro de casa ou no terreiro do engenho, quase sempre comandava nos gritos, era a maneira de demonstrar imposição, forma essa que passava para os negros que era o único que de qualquer maneira mandava em toda aquela região. Sua outra metade, o cavalo, era a grande atração que não só servia para mostrar seu poder, mais servia também de troféu nas visitas a outros engenhos quando nas tardes de domingo saia para seu passeio. Seu animal, quase ser humano ou podemos dizer que era muito mais bem tratado do que até mesmo sua própria esposa. Seu companheiro de todas as horas tinha suas regalias próprias e características peculiares que jamais outro animal conseguiu alcançar, nem mesmo o boi, nem o gato de estimação das sinhazinhas. O animal de estimação do senhor de engenho era de tal modo tão bem tratado que sua alimentação era diferenciada, os cuidados que recebiam pelos moleques também ocorria de maneira diferente. A escolha dos animais para os senhores ocorria geralmente por parte os “galvões” , esses animais eram impecavelmente escolhidos e geralmente pagos a preço de ouro. Toda via vamos observar que os animais que aqui chegaram e mesmo sendo de raça pura e bem cuidada, mas devido às condições da região sofreram modificações em seu porte físico, de início tinham tamanhos grandes característicos da origem Árabe.

Na paisagem nordestina da civilização do açúcar do século XVIII e XIX principalmente a figura desse homem-animal foi presença marcante durante toda a vida dos que ali viviam. Até certo ponto da para se entender e acreditar que depois de longo tempo essa figura tão marcante (no estilo do chicote), tornou-se parte integrante da vida dos escravos ao ponto que sobreviver sem ele seria algo estranho. Sendo eles escravizados trazidos da África ou indígenas a longos tempos rebelados e fugidos para o sertão. Esses negros que com o passar dos tempos fugiam também para os sertões e se aquilombavam, não deixaram ou perderam a imagem e os hábitos de seus ex-senhores, vamos observar nos costumes que se segue até os dias atuais. Os brancos vindos das casas grandes chamavam de meu senhor por respeito e educação, toda via os negros das senzalas mantiveram esses costumes, pois adquiriram não por respeito e admiração, mais por medo e obrigação.

Certamente a figura do homem sem o cavalo não existiria. O cavalo que se tornou na paisagem do nordeste brasileiro um marco imperial era sinal de poder para os que faziam aquela civilização açucareira, o homem senhor de engenho e de posses que tudo, comandava de cima de seu cavalo, desde o cultivo da monocultura a criação dos meninos através dos gritos, obrigatoriamente por suas senhoras que tinham a vida resguardada nas salas de visitas das casas grandes, ao seu redor, servindo chá e torradas estavam suas escravas de bicos pendurados e vestidas de trapos – geralmente panos de saco que era usado para embalar e transportar o açúcar, elas estavam sempre à disposição de suas sinhás que nada faziam.

“A repercussão do açúcar da capitania de Pernambuco no circuito internacional foi estrondosa” . Vamos então, tentar entender que o progresso pode e deverá ocorrer por causa ou ainda mais gerada da civilização, toda via de que progresso está se falando? A repercussão da produtividade do açúcar na capitania de Pernambuco , necessariamente isso não quer dizer progresso e quando se fala certamente não é dos escravos que estamos citando. Por toda a Europa o ouro branco foi disputado em valores altíssimos. Esse desenvolvimento com o nome de progresso nada mais é do que status para os senhores de engenho que aqui cada vez mais ricos ficavam, esse açúcar produzido nessas capitanias do nordeste do Brasil, tinha por sua vez a marca registrada e de forma a não transparecer a mão-de-obra escrava africana arabizada e o pulso forte do senhor de engenho sobre seu cavalo castigando os escravos que além de trabalhar tinham por responsabilidade guiar os carros de bois com rodas de madeira, gigantes e com um peculiar som extraído do atrito com o chão.

Um outro aspecto a ser observado é a maneira como o homem foi de forma esmagadora “separado pela monocultura de seus animais, águas e rios” . Até o próprio boi mereceu a rejeição, pois, os que estavam fora do trabalho de puxar os carros com suas rodas deveriam ser mantidos longe dos engenhos para não danificar as plantações. Essa separação não só ocorreu com os animais, mas com os próprios escravos que trabalhavam na produção canavieira. Essa distância provocada pelo efeito da monocultura na vida social das pessoas incluía o próprio distanciamento entre o escravo do fabrico do açúcar e os que viviam alí com outras atividades ou mesmo sem nada a fazer. Nesse processo de relação social entre o homem e o cavalo – homem esse que chamado de branco, dono dos engenhos das redondezas e o cavalo que na sua maioria era muito mais bem tratados que os escravos. Seu animal de estimação era tão bem tratado que recebia nomes importantes e simbolizava riqueza para os outros, dos de terras de massapé. Geralmente esses nomes era o sobrenome familiar, uma maneira de se identificar, o animal tornava-se quase que um membro da família, pode citar alguns: Bonaparte, Marajá, Serinhaém, e que deram origem aos nomes de outras cidades, eram nomes finos que os bois, por exemplo, não tiveram a mesma sorte ou mesmo os cavalos que não serviria para uso no trabalho ou do seu senhor.

Dentre todos os casamentos perfeito está o do boi e o negro. Vamos entender que esse par foi o alicerce da civilização do açúcar no nordeste do Brasil. O boi que tinha como agradecimento ao trato recebido de seu dono na forma de trabalho, sempre foi bem visto no sentido de que obedecia em tudo, igual o negro das senzalas que estava sempre à disposição mesmo que por imposição de seu senhor. Escravo e animal bovino, companheiro de todas as horas, horas essas onde o negro castigado nas senzalas que próximo as estribarias ficavam sem ter com quem conversar via no boi seu “psicólogo” para lamentar suas dores e seu cansaço. O boi, animal forte que venceu todos os obstáculos em favor de seu senhor, puxando seu carro com suas rodas chiando, avisando de sua chegada tendo ao seu lado o negro que lhe guiava pela mata a fora, noite adentro e/ou em sol a pino, em um lamaçal de barro vermelho que era tragado pela necessidade da riqueza do senhor do cavalo alazão.

O gado por sua vez tão favorável em atividades nos engenhos mesmo sendo ele lento em suas atividades, foi em seguida expulso para os sertões, sua proliferação danificava as plantações e impedia que elas de desenvolvesse ou que tomassem novos direcionamentos. Quem de fato não poderia sair era o cavalo, sem ele certamente não existiria senhor, quase igualmente ocorreu com o negro que afastado de seu boi ficou desolado sem companhia para dividir suas angustias. O sertão por sua vez não precisava do negro, a cana nas regiões tórridas não se desenvolvia e o boi de carroça já não tinha mais serventia em terras de mata fechada. Percebe-se claramente um desequilíbrio alimentar na mesa das pessoas do litoral e mata a carne do boi que se matava nas comemorações já não existia com tanta freqüência, faltou também o leite, o queijo e a mesa farta.

Toda via, observamos que as fazendas se expandem no sertão de maneira rápida, esse feito ocorre devido ao crescimento muito mais acelerado no litoral onde a produção canavieira caminha com muita intensidade. No litoral crescia também o povoamento onde hoje se encontram as maiores cidades, no sertão o crescimento das fazendas ocorre para larga escala da procriação do gado , os povoados na região também surgiu, geralmente eram casas cobertas de palha de carnaubeira .

Por outro lado não podemos nos prender ao trio: homem, boi e cavalo. O cachorro e o gato foram dois animais de grande serventia para a formação da sociedade e o avanço civilizador do açúcar. Como um grande amigo o cachorro serviu para vigiar os terreiros das casas grandes e caçar com seu dono; o rato por sua vez foi a salvação da lavoura para as casas de engenho, servia para a caça dos ratos. O rato que tinha uma facilidade muito grande de proliferação na bagaceira deixada pala extração da matéria principal para fabricação do ouro branco. E o gato com o passar dos tempos caiu na graça das sinhazinhas e das iaiás que virou animal de estimação também muito admirado pelas crianças que sempre que possível colocava no colo para dormir. Esse hábito, diga-se de passagem, perdura até os dias atuais.

Essa sociedade dos dias atuais que se formou basicamente da bagaceira formou também uma cultura popular muito intensa e que serve como marca referencial para divulgação da região nordeste brasileira dos nossos dias. O boi que nos dias tristes serviu de consolo para os negros africanos, serviu também para alegrar os dias que se passavam nos engenhos. A dança, a cachaça e os costumes que se firmaram com o passar dos tempos tornou-se uma expressão única na região. A cultura da dança do boi também tomou o mesmo rumo.

A figura do bumba-meu-boi foi de fato é a expressão maior criada dentro do pequeno mundo dos escravos. Maneira apoteótica que os negros encontraram para expressar seus sentimentos e chamar a atenção para suas necessidades, maneira que eles encontraram para fugir do sofrimento e do castigo psicológico imposto pelo trabalho penoso, pesado e doloroso que passavam. O cavalo marinho surge como um laço de disputas para confrontar com os que serviam apenas de mão-de-obra para enriquecer os senhores de engenho. A grande verdade é que hoje é percebido que os acontecimentos folclóricos do tempo dos negros serviram tanto para alegrar os negros como para criar uma identidade social no nordeste brasileiro.

Em meados do século XIX vamos observar que “o norte, estacionário, senão decadente; o sul, em pleno florescimento” . Vamos então, perceber que essa decadência que ocorre no norte do Brasil se dá por vários fatores e algo que contribuiu foi a expansão da cultura cafeeira que se expandia na região sul do país. Com o passar dos tempos às colônias produtoras de açúcar passa a viver do status, da aparência de certas regalias que tinham das metrópoles, da sua via passada e farta, de mesa cheia e cavalos decorados com selas de prata para impressionar os vizinhos. Toda via o sofrimento não só ficou na cultura da cana, mais também o algodão, o tabaco sofreu igualmente com a expansão da cultura agora sulista que empregava e desempregava no norte, a visão do próprio mercado internacional era para o sul do Brasil.

O mesmo homem-animal que sobre seu cavalo e demonstrando imponência que castigava os escravos no litoral canavieiro, também existia vigiando e castigando o sertanejo que também trajavam trapos, suas moradias não eram necessariamente senzalas, mas viviam nos fundos das casas menos sofisticadas do que as dos senhores de engenho litorâneo. Muito desses trabalhadores das fazendas de gado eram indígenas que retirados à força de seu cotidiano eram obrigados a trabalhar para os fazendeiros - eram escravos igualmente os do litoral.

Em dias atuais vamos perceber que a soberania do homem e seu animal perduram. Hoje eles não usam cavalos com selas pratiadas, sua autoridade de senhor não usa mais chicote nem gritos ensurdecedores que fazem seus escravos modernos e geralmente assalariados temer – usam ameaças, o tronco ficou no passado. Seus animais de estimação hoje têm vários cavalos e andam a mais de 100 km/hora. As senzalas ficam ao lado dos edifícios no mesmo litoral onde se plantavam cana no séc. XVIII, as escravidões ainda fazem parte não só do imaginário popular ou do folclore, mas do cotidiano das pessoas. “Numa sociedade como a nossa, em que certas virtudes senhoriais ainda merecem largo crédito...” , crédito esse que todos se firmam importantes donos da razão e do conhecimento.

Lindembergue Santos

É aluno do curso de História da UFRPE.

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Lindembergue Santos
Enviado por Lindembergue Santos em 08/10/2008
Reeditado em 10/01/2013
Código do texto: T1217006
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