UM TEMPO, DOIS TEMPOS, METADE DE UM TEMPO

“Ninguém até hoje [...] foi um soberano absoluto em relação ao seu tempo e com o seu meio.” Gilberto Freyre

INTRODUÇÃO

Enquanto leio Gilberto Freyre, lembrei do período em que ensinei uma classe de senhoras da terceira idade, tempos atrás, na Escola Dominical de minha antiga igreja, sobre uma sentença escatológica “um tempo, dois tempos e metade de um tempo”.

Há muitas interpretações sobre essa frase. Ela é citada pelo Profeta Daniel 7.25, no Antigo Testamento, que fala de um período de grande tribulação. Uma delas diz que cada “tempo” equivale a um ano, então, um tempo= 1+ dois tempos =2 + meio +6 meses: total de três anos e meio. Outro texto é Apocalipse 11:2-3, no Novo Testamento que diz: "E deixa o átrio que está fora do templo, e não o meças; porque foi dado às nações, e pisarão a cidade santa por quarenta e dois meses. E darei poder às minhas duas testemunhas, e profetizarão por mil duzentos e sessenta dias, vestidas de saco. Pode equivaler a três anos e meio. Outros calculam: 1260 dias = 3 anos e meio = 42 meses x 30dias = 1260 dias 1260 dias = um tempo, e tempos, e metade de um tempo = 42 meses 538 + 1260 = 1798.

Esse tempo, neste caso, tem haver com o que estou pensando em escrever e também tem sido a leitura que estou fazendo.

1-APRENDENDO COM GILBERTO FREYRE

Deixando de lado a interpretação do texto bíblico que tantas interpretações têm sido cunhadas ao longo da existência da História da Igreja Cristã, o certo é que devemos ter cuidado com interpretações literais. No entanto, essa não é questão que estou a escrever. Quero falar de tempo, não o tempo enigmático, mas o meu tempo, este agora que estou vivendo e que ao escrever este texto, já foi.

Quero lembrar agora Freyre que de forma cativante em que a escreveu, assumindo seus erros e acertos com ousadia. Vale dar o valor que lhe é devido. Posso dizer que foi uma vida deveras produtiva e genial.

Pois bem! Tempo morto e outros tempo de Gilberto Freyre. Um tema apropriado e me vem à mente a pergunta: o que é perder tempo? Não sei, vou citar algumas frases que acho ser perda de tempo. Claro que você pode discordar, pois estou falando do ponto de vista da minha experiência! Dormir além do necessário é perda de tempo; deixar de agir, sem que para isso, tenha-se como desculpa a reflexão é perda de tempo; trabalhar demais para ter mais, para ser mais, é perda de tempo; estar imerso numa pilha de livros, ainda seja que pela necessidade de conhecimento, mas esquecendo-se de que há outros em sua volta, incluindo a sua família, talvez porque esta seja uma forma de se refugiar nos livros, pela incapacidade ou impossibilidade de se relacionar com o seu próximo e muitas vezes bem próximo, isto é perda de tempo. Aliás, Freyre tinha um prazer enorme na leitura, nos livros, considerando-os como “meus irmãos”.

Afinal, como ganhar do tempo?

Quando falo de ganhar tempo, seria saber usá-lo em beneficio próprio, vivendo bem cada minuto, com intensidade. Registrar na memória ou com a caneta períodos desse tempo, para perpetuar essa existência, principalmente se alguém, no futuro, vier a lê-lo. Constatar situações próprias de um tempo e de um ser humano com virtudes e defeitos. Alias, com possibilidades de aprender, crescer e mudar. Isso é possível! É ousar ser exemplo, não importa se bom ou mau.

Quando recordar é perda de tempo?

Acho que não. Revivemos em nosso tempo presente, fatos e sentimentos de pessoas, cuja vida não mais existe e de um tempo morto, mas quando assim o fazemos, trazemo-los a vida, revivemos tempos idos e histórias que não experenciamos e que não nos pertencem. Tratamos como se fossem lembranças nossas. Damos vida aos nossos antepassados. Novamente, eles tomam forma, tomam vida e, quantas vezes não nos imaginamos fazer parte daquilo, ou somos aquele indivíduo, ou ainda, momentos em que parece que fomos testemunhas dessa história, tal a intensidade e o entusiasmos com que a contamos. Parece que sentimos as mesmas emoções, as mesmas alegrias, as mesmas frustrações, a mesma raiva. Isso é memória genética, ou apenas sentimentos associados a um monte de lembranças contadas pelos nossos pais e avós, pelo menos, um milhão de vezes?

Nesse momento, há uma relação de pertencer, mas ao mesmo tempo, precisamos romper com eles, numa atitude de ousadia, libertando-se de sentimentos doentios do passado e repassados para os descendentes, algumas vezes, como maldição. Ter a consciência de que mesmo histórias saborosas de serem ouvidas, rememoradas, lidas, ou ao contrário, que são dolorosas, mas elas não nos pertencem. Temos o dever de aprender com elas e seguir adiante, rumo ao nosso futuro.

Então, Freyre esta certo em usar o título, Tempos mortos, e outros tempos, quando escreve:

"Ou o homem morre como indivíduo e ao seu próprio tempo num transtempo, este como imortal? Imortal como superação do tempo parece que é apenas uma parte, maior ou menor dele e não o todo que passa de uma época a outra. Épocas que sejam mais que a existência de um homem só, de um simples indivíduo [...] o homem de uma época pode, pela arte o pelo gênio criador de valores, transmitir parte do seu tempo a outros tempos [...] daria a certos homens o poder de evitar a morte total." (Freyre, 2006, p.18)

Peço, agora, licença para usá-lo em causa própria. Estou tomando consciência de que são os anos que estou vivendo e, agora, nesse exato momento que tem sentido, pois o passado por mais feliz ou triste que tenha sido não volta mais.

Ah claro! Muitas vezes, usufruirmos dele parte dos seus efeitos deixados como presente, sem nos convidar a fazer parte de sua história, simplesmente inseridos e com a missão de aprender a conviver e mudar o percurso traçado ou segui-lo. Seja como for, é nossa responsabilidade.

Faz-me lembrar a música cantada por Toquino, “Aquarela”. É linda essa música. Dá uma saudade quando a escuto. Não sei dizer por quê. Talvez, o fato de como infantil, tenha sonhado tantas coisas que não construi, por ela ter tomado um rumo diferente, mas com a minha permissão e com a minha ação.

"Numa folha qualquer

Eu desenho um sol amarelo

E com cinco ou seis retas

É fácil fazer um castelo...

Corro o lápis em torno

Da mão e me dou uma luva

E se faço chover

Com dois riscos

Tenho um guarda-chuva...

Se um pinguinho de tinta

Cai num pedacinho

Azul do papel

Num instante imagino

Uma linda gaivota

A voar no céu...

Vai voando

Contornando a imensa

Curva Norte e Sul

Vou com ela

Viajando Havaí

Pequim ou Istambul

Pinto um barco a vela

Branco navegando

É tanto céu e mar

Num beijo azul...

Entre as nuvens

Vem surgindo um lindo

Avião rosa e grená

Tudo em volta colorindo

Com suas luzes a piscar...

Basta imaginar e ele está

Partindo, sereno e lindo

Se a gente quiser

Ele vai pousar...

Numa folha qualquer

Eu desenho um navio

De partida

Com alguns bons amigos

Bebendo de bem com a vida...

De uma América a outra

Eu consigo passar num segundo

Giro um simples compasso

E num círculo eu faço o mundo...

Um menino caminha

E caminhando chega no muro

E ali logo em frente

A esperar pela gente

O futuro está...

E o futuro é uma astronave

Que tentamos pilotar

Não tem tempo, nem piedade

Nem tem hora de chegar

Sem pedir licença

Muda a nossa vida

E depois convida

A rir ou chorar...

Nessa estrada não nos cabe

Conhecer ou ver o que virá

O fim dela ninguém sabe

Bem ao certo onde vai dar

Vamos todos

Numa linda passarela

De uma aquarela

Que um dia enfim

Descolorirá..."

CONCLUSÃO

Este texto está incompleto e ficará incompleto, pois minha existência, a nossa existência ainda está em construção. Construamos juntos, quem sabe? Estou rumando ao meu futuro que já começou. Ainda podemos mudar, ainda podemos agir, ainda podemos transformar, ainda há tempo para viver e viver intensamente.

Vou imitar Gilberto Freyre, vou escrever um diário. Porei lá todas as minhas confidências, todas as minhas interrogações, todas as minhas façanhas e todos os meus erros. Acho que me deixarei conhecer como ser humano capaz de errar e acertar, mas erros e acertos próprios do meu tempo, do meu caráter, da minha personalidade. Libertando meus futuros descendentes de continuar trilhando por caminhos que andei. “Ninguém passa pela vida e sai dela impune, sem nada dar e sem nada receber.”

Porém, "nessa estrada" assumo o compromisso, como regra, de nunca deixar de sonhar. No entanto, vou aproveitar e tomar do meu próprio conselho que dei a alguém: prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém! Mas, e quem não pode comer galinha?

Assim, em um tempo, dois tempos e metade de um tempo, e dessa vez, literalmente calculando o valor referencial citado acima, intenciono, se Deus permitir chegar aonde quero estar, cumprir o que me propus a fazer, continuar vivendo e traçar novos rumos e quem sabe onde isso vai dar? Só o Criador e o Senhor do universo.

REFERÊNCIAS

FREYRE, Gilberto. Tempo morto e outros tempo. São Paulo: Global; Recife: Fundação Gilberto Freire, 2006.

TOQUINHO. AQUARELA (Letra da música). Disponível no site:

www.musicas. mus.br - 30.09.08, 12.36 h.

TEXTOS BÍBLICOS

SHEDD, Russel. Bíblia Shedd. Sociedade Bíblica do Brasil. 2005. Antigo Testamento: Daniel 7.25; 11:13; 12.2, Novo Testamento: Apocalipse 11.2; 12.6; 12:14