Uma proposta de vida nova (Sermo 07)

Há tampos escutei um místico falar em um monte situado à beira de um lago tranqüilo. Um dia apareceu por lá um homem que, munido de uma alavanca, fez rolar pela ribanceira dez pedras enormes, que caíram dentro do lago. A partir dali, por causa de uma misteriosa energia proveniente das pedras jogadas, o lago nunca mais foi o mesmo. Suas águas se tornaram dinâmicas e revoltas, assim permanecendo para sempre.

O monte é aquela pequena elevação existente em Cafarnaum, às margens do lago de Genesaré. O homem é Jesus, e a alavanca que ele utilizou é o evangelho, a boa notícia da salvação e da igualdade. Os grandes blocos de pedra que causaram a agitação permanente no lago são as dez “bem-aventuranças”, proferidas por ele. O lago sereno não se refere às águas do Genesaré, mas apontam para o comodismo e a estagnação da vida humana, dilapidada pelo egoísmo e pela indiferença. Depois de escutar as “bem-aventuranças” não é mais possível a humanidade se acomodar e ficar “descansada”. A palavra de Jesus incomoda, desinstala, inquieta e questiona.

A verdade é que o Sermão da Montanha é uma das mais impressionantes leitura de hoje e de todos os tempos. Muitos pensadores cristãos, humanistas, sociólogos, pesquisadores e até intelectuais agnósticos ou judeus, têm escrito, falado e elaborado ensaios sobre este fascinante texto, escrito há dois mil anos e de uma atualidade social, política e mística permanentes. Um conhecido teólogo alemão, Rudolf Bultmann afirmou que “quem ouve o Sermão da Montanha e medita a profundidade de sua mensagem, nunca mais é a mesma pessoa”.

Quem visita a região de Cafarnaum fica espantado ao constatar que por ali não existe nenhuma montanha. Há uma pequena colina nos arredores da cidade. A dúvida decorrente das narrativas situa-se na identificação do ponto onde Jesus dirigiu sua palavra às multidões. Mateus afirma que Jesus “subiu à montanha” (5,1) enquanto Lucas diz que ele estava com os discípulos no alto e “desceu à planície” (6,17). Controvérsias à parte, vale interiorizar as palavras do Mestre.

A esta altura, acho que todos já viram que o tema de hoje vai versar sobre as “bem-aventuranças” de Jesus. Esse trecho está embutido no chamado “Sermão da montanha” que aparece em Mateus, capítulos 5 a 7. Como pedras que revolvem definitivamente o lago da nossa apatia, as “bem-aventuranças” servem para balizar nossa vida, na relação amorosa com Deus, na fraternidade ativa com nossos irmãos e na participação responsável para com a família, a sociedade e a natureza. Vamos ler o texto que servirá de iluminação para a nossa reflexão.

1. Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos

Céus.

2. Felizes os mansos, porque possuirão a terra.

3. Felizes os aflitos, porque serão consolados.

4. Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão

saciados.

5. Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão

misericórdia.

6. Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.

7. Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados

filhos de Deus.

8. Felizes os que são perseguidos por causa da justiça,

porque deles é o Reino dos Céus.

9. Felizes vocês, se forem insultados e perseguidos, e se

disserem todo tipo de calúnia contra vocês, por causa

de mim.

10. Fiquem alegres e contentes, porque será grande para

vocês a recompensa no céu. Assim perseguiram os

profetas que vieram antes de vocês. (Mt 5, 3-12).

Em Lucas temos um texto mais reduzido das “bem-aventuranças” (6, 20-26), onde além das recompensas o evangelista dá ênfase às maldições.

Em tempos de campanha política, os candidatos costumam estabelecer seus projetos, explicitando as plataformas sobre as quais vão desenvolver, caso eleitos, o seu trabalho. Jesus anuncia, através das “bem-aventuranças”, a plataforma do Reino, em cima da qual irá orientar toda a sua doutrina. A diferença é que Jesus, diferente dos políticos, cumpre integralmente o que promete. Embora a democracia tenha nascido na Grécia, é na República dos romanos que surgem as eleições. Para tal, os candidatos se apresentavam envoltos em um manto branco, simbolizando sua pureza (candura). É daí que nasceu a palavra “candidato”, alguém “candidus”, puro para exercer um mandato. Na prática sabemos que não é bem assim...

Modernamente o termo “bem-aventurado”, que aparece no original grego como makários, foi substituído, nas traduções mais recentes dos evangelhos pelo termos “felizes”, que é um sinônimo. Quando produziu a vulgata, que é a tradução da Bíblia para o latim, São Jerônimo empregou o verbete beatus para expressar a felicidade da bem-aventurança. Vamos olhar cada uma das “bem-aventuranças” e refletir o efeito de cada uma dessas “pedras” no desenrolar da nossa vida.

Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino do Céu.

A questão dos pobres sempre foi controvertida. Como a primeira “bem-aventuranças” é a que tem gerado um maior debate, vamos nos alongar um pouco mais na reflexão dela. Se em Mateus lemos a expressão “bem-aventurados os pobres em espírito” (ou “de espírito”, em algumas traduções), em Lucas a palavra do Mestre indica “bem-aventurados vocês que são pobres”. O fato é que por muitas décadas as igrejas perderam tempo em digressões sobre se era “pobres” ou “pobres em espírito”. E o pior, nunca ficou claro o que era ser um “pobre em espírito”. Mais do que teo-lógica, a questão assumiu foros de ideo-lógica. Os pobres, puxando a brasa para seu assado, diziam que é sua penúria que dá ingresso assegurado ao Reino. De outro lado, os ricos, os bem remunerados, de certa forma traduziram o pobre em espírito como alguém simples, humilde, desprendido, independentemente de suas riquezas.

O fato é que secularmente a riqueza foi vista como um empecilho ao acesso às coisas do alto, pois muitos ricos fizeram (e fazem) dos bens uma divindade e uma suficiência de vida, fazendo muitos prescindir da providência divina e do convívio com os irmãos. Em face da usura e da ambição de muita gente, a Igreja desde os primórdios, e vemos isto claramente nos escritos dos chamados “Pais da Igreja”, onde é dito que “um rico dificilmente se salva”. O papa Paulo VI chegou a afirmar que “a religiosidade popular, rica em valores evangélicos, traduz em si certa sede de Deus, que somente os pobres e os mais simples podem experimentar” (EM 48).

A verdade é que dentro dos critérios do mundo, das estruturas de consumo e dos sistemas econômicos, só é feliz quem tem, e não quem é. Há muito tempo o ter superou o ser. E é por isto que nosso mundo está nessa bagunça que se enxerga por aí, com poucas esperanças de conserto.

Há algumas décadas a Igreja da América-Latina fez uma “opção preferencial pelos pobres”, sem que isto representasse uma exclusão dos que não são pobres. Mesmo assim o debate se instaurou e os debatedores nunca chegaram a um consenso de equilíbrio. Os argumentos se radicalizaram a tal ponto que a Igreja hoje fala genericamente em “caridade”, “solidariedade”, “ajuda fraterna”, sem falar mais nos pobres especificamente. O que significa, então, ser pobre em espírito?

Para trazer luz à nossa discussão, vamos recorrer à antítese da filosofia, buscando o lado inverso: Quem são os “ricos em espírito”? Ser rico em espírito é ter orgulho do livro que se leu; do título que se obteve; das láureas que se conquistou; do cargo ou função que se exerce; do prestígio social, político ou religioso que se goza; da casa onde se mora; da grife da roupa que se veste; da beleza física ou da inteligência que se possui.

Sob essa ótica podemos observar que nosso mundo está cheio de “ricos de espírito”, pessoas que não querem renunciar às suas idéias, humilhar-se em sua hierarquia, abrir mão de posições radicais nem reconhecer faltas ou enganos.

Nas atividades da Igreja também se vê muitos ricos em espírito. Vocês conhecem alguns? São pessoas que têm orgulho humano pelas atividades que exercem, pela “autoridade” que possuem, etc. Em geral tais atitudes não geram comunhão, mas opressão e distanciamento.

Ser pobre de espírito é conhecer e desfrutar da liberdade. Nada é menos livre do que o “rico de espírito”. A pobreza de espírito, enquanto simplicidade, desprendimento, humildade e abertura ao outro, converte-se em uma condição para a liberdade. O menor apego à tirania das paixões se converte em um cativeiro. Cristo veio para libertar a todos. O reino é uma república de cidadãos livres.

O pobre de espírito, mesmo tendo bens ou possuir um bom salário, se há justiça e decência nessas posses, é um simples, disponível aos apelos que vêm de Deus. É alguém que se despoja do seu eu para se alinhar ao nós, sob o poder do Vós. É despir-se de si mesmo, sem se apegar a nada. É deixar o coração vazio de tudo o que divide e escraviza, para preencher seus espaços com a presença de Deus. Eu sei que a gente quer isto; pena que nem sempre colocamos em prática.

Os pobres em espírito, sejam eles ricos ou carentes de coisas materiais, são aqueles que descobrem que maior é aquele que se torna menor, para prestar um serviço a todos. Ao contrário, o “rico de espírito” é inimigo da novidade (o evangelho é uma novidade). É um conservador nato que sente que a mudança é uma ameaça às suas posições.

A pobreza pura e simples não é uma credencial para a salvação. A verdadeira pobreza evangélica é aquela que nasce de um coração desprendido, de um espírito aberto, de atitudes fraternas e mãos estendidas, sempre disponíveis ao serviço. O papa João Paulo II, em visita ao Brasil em 1979 afirmou: “São bem-aventurados aqueles que, na medida de sua riqueza, não se cansam de repartir seus bens”.

Felizes os mansos, porque possuirão a terra.

A mansidão é uma das mais notáveis virtudes evangélicas. É o ato daqueles que não se revoltam, não buscam a revanche nem adotam o “bateu-levou”, um vício detestável, tão em moda nos dias atuais. Ser manso não é ser covarde nem apático. É muito mais que isto. Lembram o que Jesus aconselhou? “Aprendam de mim que sou manso e humilde de coração; em mim vocês encontrarão descanso para suas vidas” (Mt 11,29).

A palavra mansidão é um dos mais interessantes verbetes da Bíblia, aplicado a pessoas pobres, desprovidas de quaisquer bens ou meios de proteção. Por terem tão-somente a Deus como socorro, dependiam dele e esperavam que ele provesse a solução para seus problemas.

É a este tipo de mansidão a que se referem os poetas e profetas do Antigo Testamento: “Os mansos herdarão a terra e se deleitarão na abundância de paz” (Sl 37,11). Este é o mesmo sentido que Jesus dá a esta virtude, ao prometer que são bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra (Mt 5,5).

No Novo Testamento, a mansidão (prays, no grego) está associada a um estado de espírito diante de Deus e a uma disposição de mente diante do próximo. Diante de Deus, mansidão é a marca da humildade. Diante de Deus, mansidão é uma das dimensões do domínio próprio e da longanimidade. Ser manso é ter a capacidade de se controlar diante daquilo que nos irrita.

Ora, quando cremos que Deus é o Senhor da história, e que somos seus servos na promoção da sua soberania, portamo-nos como mansos, no sentido de humildes. Muitos de nós, no entanto, temos nos portado orgulhosamente. Menciono duas marcas desta vaidade “evangélica”. A primeira é o orgulho de ser salvo. As conseqüências desse tipo de atitude são perniciosas para o cristão. O orgulho pode me cegar para os verdadeiros valores.

A segunda é a vaidade de pertencer a uma determinada comunidade. Não há problema em gostar de participar de uma comunidade; o problema é quando se torna uma atitude de altivez, que é imprópria ao indivíduo manso de coração. Ás vezes até mesmos os responsáveis pelas igrejas ou seus membros incentivam esse modo de pensar. Não nos esqueçamos: nossa igreja é uma comunidade santa composta de pessoas pecadoras. É interessante anotar que somos chamados à mansidão através de vários textos bíblicos:

• Busquem o Senhor, vocês todos os mansos da terra...

busquem a justiça e a mansidão (Sf 2,3);

• Devemos suportar uns aos outros, com toda a humildade

e mansidão (Ef 4,2);

• Revistamo-nos de misericórdia, bondade, humildade,

mansidão e generosidade (Cl 3,12);

Aquele que é dócil à vontade de Deus é manso para com os homens, especialmente com os pobres (cf. Sl 4,8). Vista como um fruto do Espírito Santo (cf. Gl 5,23) a mansidão é sinal da presença da sabedoria do Alto e caracteriza a práxis de Cristo e de seus discípulos de todos os tempos.

A todos que recebem com mansidão tantas agressões da vida, aos que choram na mansidão de suas dores, Jesus acorre em seu socorro, chama-os de felizes e promete-lhes uma nova terra. O indivíduo manso tem certeza que no final a justiça de Deus irá triunfar e proferir a palavra final. Ele sabe, como São Paulo ensinou que “choram como se não chorassem...” (1Cor 7,29s), pois Deus “enxugará toda a lágrima” (cf. Ap 21,4). Os mansos têm paciência pois sabem que “os que plantam entre lágrimas colherão entre cantos de júbilo” (cf. Sl 126,5). A “nova terra” profetizada no Apocalipse será habitada por gente desse tipo.

Felizes os aflitos, porque serão consolados.

Como no Antigo Testamento, as mães dos exilados, dos desaparecidos e torturados de todos os tempos vão continuar chorando, aflitas, por seus filhos vitimados pela opressão e pelo radicalismo. Temos na América-Latina mães aflitas por seus filhos desempregados, migrantes, sem-terra, bóias-frias, esmagados pelos sistemas injustos.

As doenças graves, a ameaça contra as crianças, seja pela mortalidade infantil seja pela falta de perspectivas futuras, é igualmente motivo de aflição e preocupação. A vida seria por demais cruel se todo o sofrimento que existe no mundo não tivesse uma compensação, um consolo sobrenatural que vem de Deus. Os aflitos, doentes, mães que choram o sofrimento dos filhos, famílias desestruturadas pelo desemprego, pelo divórcio, pela falta de moradia, pela perda de referenciais de esperança, serão consolados na medida em que colocarem sua dor nas mãos do Senhor. Esses bem-aventurados jamais serão confundidos.

O sofrimento e a aflição não fazem parte do ser cristão. Deus não quer ninguém infeliz ou sofredor. As raízes do sofrimento que existe no mundo têm origem no egoísmo, na ambição e na falta de solidariedade de alguns. Cabe a nós que temos voz, denunciar esses descaminhos, ajudando a corrigir a injustiça que gera opressão e aflição. O sofrimento não é um acessório do cristianismo, mas uma circunstância ocorrente na vida humana.

Na hora do sofrimento, do aperto e da dúvida, não se deve recorrer a subterfúgios, charlatães, sistemas que oferecem ajudas “maravilhosas”, Não! Isto tudo só agrava a situação. É Deus, na sua misericórdia que nos dá a fé, a fortaleza, a cura e a coragem para superarmos o sofrimento. A ninguém que tenha entregado a ele seus sofrimentos, foi negado o consolo. É sempre atual a premissa levantada pelo salmista, quando nos diz “Ergo os olhos para os montes: de onde virá o meu socorro? Meu socorro vem de Javé que fez o céu e a terra. Ele não deixará que meu pé tropece, o meu guarda jamais dormirá. Sim, não dorme nem cochila o guarda de Israel” (Sl 121,1-4).

Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.

A justiça sempre foi um bem escasso no meio da sociedade humana. Tanto assim, que Jesus dedica dois tópicos de suas “bem-aventuranças” à causa da justiça. Estes serão felizes porque sua sede será saciada. O ser humano nasce talhado para o bem, para o encontro e para a justiça. Os problemas da vida e do mundo vão tornando-o arredio, descontente, individualista e tudo vai criando um ambiente propício à instauração do egoísmo. Ora, o egoísmo tem inspiração na práxis do Maligno e daí decorre, invariavelmente a falta de justiça, com seus inevitáveis subprodutos: a opressão, o arbítrio, a violência e a arrogância.

O fato é não é difícil observar que a maioria das crises do cotidiano, sejam políticas, sociais, econômicas, familiares e até eclesiais, têm origem na falta de justiça e de eqüidade. Sempre que notarmos que em um determinado segmento social ou ambiente faltou a paz, não é difícil concluir que ali faltou a justiça. A conseqüência da falta de justiça é indicada pela crise, como revoltas, manifestações populares, greves e toda a perturbação da ordem e da paz.

Ao cristão cabe, ao invés da apatia e do conformismo, uma atitude profética de quem denuncia esses descaminhos. Nesses casos vale o velho provérbio que afirma que o semeador da justiça sempre colherá primícias, tornando-se para sempre um indivíduo feliz, um bem-aventurado, alguém integralmente apto à cidadania do Reino.

O profeta anunciou desde a Antigüidade que a justiça será o cinto que circundará a cintura do Messias, e ele virá a nós para dar, a cada um, por justiça, o prêmio de nossas obras. Há um nexo causal entre justiça e salvação. Os sinais nos revelam que pela prática da justiça nos libertamos do mal e de nossas inclinações inferiores. É através dessa libertação que nos colocamos no caminho de assumir, progressiva e definitivamente, as graças do Reino, colocadas em disponibilidade em favor dos bem-aventurados que anseiam pela justiça,

Felizes os que são misericordiosos, porque encontrarão misericórdia.

A misericórdia é uma das características mais marcantes do nosso Deus. São Paulo deixa isto bem claro: “Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou quando ainda estávamos mortos, em nossos pecados, vivificou-nos em Cristo pela graça” (Ef 2,4s). A Igreja ensina que a autêntica misericórdia é, por assim dizer, a fonte mais profunda onde a justiça mata a sua sede (DM 91).

O ser humano, e em especial o cristão, é chamado a ser misericordioso com os seus semelhantes, espelhando-se no exemplo do Pai que age sempre com profunda misericórdia, perdoando nossos pecados, acolhendo nossos pedidos, e cumulando-nos de dons, dádivas e graças. Sua misericórdia não impõe qualquer contrapartida, a não ser nossa própria misericórdia com o nosso próximo. Nós não temos mérito algum. Deus nos enche de bênçãos porque ele é “rico em misericórdia”, como ensinou o apóstolo.

Nossos atos de misericórdia e amor vão desaguar invariavelmente na justiça que, por sua vez, nos dará a paz. Pois é nossa misericórdia com os irmãos que vai gerar aquela justiça capaz de nos justificar, elevando-nos a Cristo e tornando-nos bem-aventurados.

Enquanto tantos tribunais despejam injustiças, especialmente contra os mais fracos, sem posses e sem voz, cabe ao cristão comprometer-se com a justiça, como um consciente e irrecusável ato de misericórdia. O Pai nos ama sem medidas (cf. Jo 3,16) e por isso nos salva numa manifestação absoluta de sua misericórdia, mas fica esperando que nós, aprendendo com ele a lição da gratuidade, possamos retribuir um pouco dessa misericórdia aos nossos irmãos, principalmente àqueles mais carentes e que mais precisam de ajuda.

Tornando-nos misericordiosos, fazendo disto a nossa proposta diária de conversão, iremos aos poucos revestindo-nos daquela novidade dos homens bem-aventurados, aptos a verem a Deus e a gozarem para sempre de sua misericórdia. Assim como ele nos ama, também nós devemos nos amar uns aos outros.

Felizes os puros de coração, porque verão a Deus.

Em um mundo que cultiva tanto o prazer, muita gente chega a se constranger de revelar-se pura. As palavras de Jesus na colina de Cafarnaum ribombam em nossa consciência: “...os puros de coração verão a Deus”. A pureza de coração não deve ser entendida somente pela exclusão de pecados contra a castidade. A pureza profunda nasce de uma íntima atitude de fidelidade a todos os valores que norteiam a vida humana na relação com os seus semelhantes. Somos puros na medida em que não pensamos o mal, seja em que circunstância for, a despeito de quaisquer aparências ou motivações.

Jesus alerta para a boca que revela aquilo que abarrota os porões de nosso coração. A pureza nasce de uma atitude de expurgo de pensamentos, palavras e valores menores, até que vamos criando espaços interiores que possam ser ocupados por Deus.

Muitas pessoas apresentam um comportamento correto, não por convicção mas por medo, ou até mesmo para manter uma aparência de legalidade ou mesmo de santidade. Suas ações podem parecer puras, mas seus corações estão cheios de vícios, como os “sepulcros caiados” a que Jesus fez alusão. Quando o coração humano fica pesado pela intemperança, rapina e iniqüidade, isto se revela em suas ações. Formar corações puros e consciências retas é obrigação e missão de teólogos, pastores, pais, educadores e catequistas, ensinando a todos as mais elementares regras de ética, moral, convivência e construção social.

A pureza de vida não é imposta ao cristão apenas por um imperativo de honestidade natural ou de retidão de caráter, embora estas motivações tenham por si mesmas um valor muito alto. A razão decisiva da pureza cristã é aquela dada por São Paulo: “Vocês foram comprados por um alto preço” (1Cor 6,20). Em função dessa compra, o cristão é portador de Deus, cabendo glorificá-lo de todos os modos, inclusive com seu corpo: “Vocês não sabem que são o templo de Deus e que seu Espírito habita em vocês?” (v. 20). É possível desejarmos um fundamento mais genuíno e enaltecedor da pureza cristã?

Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados

filhos de Deus.

É incrível como a humanidade privilegia a violência. Todos dizem ser contra, mas os filmes, espetáculos e histórias que envolvam guerras, confrontos e choques armados são os mais apreciados e premiados. A história da humanidade sempre deu enorme ênfase à atuação de heróis bélicos, comandantes, generais e grandes guerreiros de todos os tempos. Há muito mais filmes e livros sobre Átila, Júlio César, Aníbal, Napoleão, Patton do que sobre Gandhi, João XXIII, Madre Teresa ou Martim Luther King. Na verdade, o mundo parece não saber o que é paz. Buscam-na como trégua, como armistício provisório, mas nunca como valor permanente.

A paz é uma conquista. É difícil encontrá-la porque nós, geralmente, a procuramos entre as coisas sofisticadas, e ela é simples. Buscamo-la nos valores caros e ela é gratuita. Lembro que Dom Helder Câmara bradou, certa vez: “É preciso parar de uma vez com essa maldita fabricação de armas! O mundo precisa aprender a fabricar a paz!” (In: Missa dos Quilombos, 1984).

Os que promovem a paz, os pacificadores no verdadeiro sentido do evangelho de Jesus, não são aqueles que se escondem atrás de desculpas, para validar covardia ou omissão, mas aqueles bem-aventurados que assumem, que enfrentam, que “pegam o leão a unha”, com a finalidade de trazerem a paz para seu convívio, tornando, assim, a vida de todos mais segura, mais produtiva e desta forma geradora de mais crescimento. O verdadeiro artífice da paz não é um medroso apático nem um pacifista inconseqüente, mas um valente que elegeu a paz como grandeza de sua vida, inspirado nas palavras de Jesus: “Ah, se pelo menos neste dia tu pudesses conhecer aquele que te pode trazer a paz...” (Lc 19,42).

Lutar pela paz nos torna bem-aventurados na medida em que nossa paz é produzida pela justiça, enquanto esta dimana do amor e dos corações puros. Os filhos de Deus são amantes da paz e não da guerra, das desavenças e das inimizades. De um coração novo nasce a paz. Corações novos só batem no peito de homens novos, pessoas novas, ou seja, cristão de fato que, pela conversão interior, progressiva e comunicante transforma o mundo a partir da base. Esses merecem ser chamados de “filhos de Deus”.

Felizes os que são perseguidos por causa da justiça,

porque deles é o Reino dos Céus.

Para nós que vivemos na América Latina, a justiça ainda é um artigo em falta nas prateleiras de nossa vida social e política. Enquanto o povo passa fome, os ricos buscam saciar-se de bens, e com isto sobra menos farinha na panela do carente, representada pelo desemprego, o subemprego, a favelização e um descaso brutal com a saúde e a educação. Se formos olhar as raízes desse problemas veremos a injustiça como marco zero de tantas carências.

Além da fome física, representada pela falta de alimentos e pela insalubridade social, o povo padece de uma inesgotável falta de justiça. O lamentável de todo esse processo é que não se pode reclamar nem denunciar, pois logo aparecem vozes e forças contrárias, obrigando-nos a calar. Numa cidade do interior do Rio Grande do Sul, um jovem cronista criticou a morosidade e a ineficácia da justiça. Como não se calou diante das ameaças, a parte “ofendida” pressionou o jornal, que tirou a coluna do ar.

Um outro colunista, já um teólogo experiente, criticou uma revista religiosa de Porto Alegre, pela “água com açúcar” da maioria de suas matérias, que segundo o mesmo não evangelizavam ninguém. Foi o que bastou para a coluna ser suprimida pelo religioso que dirigia a revista. Em tudo há uma estrutura de injustiça calcando os profetas. O poder não admite críticas, e por essa razão persegue, sabota e suprime os que clamam por justiça. Ainda bem que existe uma sentença contra os que praticam a injustiça: “Vocês não sabem que os injustos não herdarão o Reino de Deus?”. (1Cor 6,9).

No mundo, na história, nas universidades, nos ambientes de trabalho e mesmo nas igrejas, quem tentou defender o bem comum e denunciar a injustiça é perseguido, pois sua oposição afronta o sistema. Desde o Antigo Testamento a Palavra de Deus investe contra quem pratica a injustiça: “Não negues tua ajuda ao injustiçado...” (Eclo 4,2). Não é cristão se criar uma mentalidade apática e negadora, de que não adiante lutar, que nada vai se conseguir, que vamos ficar malvistos, etc. Não adianta chorar “o leite derramado”; é preciso agir, denunciar, influenciar, contaminar.

Um novo agir, de acordo com as “bem-aventuranças” de Jesus, em favor do social, ao lado da justiça, da acolhida e da promoção humana, nos coloca à frente daqueles que, como nós, sonham com um mundo mais justo e fraterno, a verdadeira prática do Sermão da montanha: “O Senhor ama a misericórdia e a justiça” (Sl 32,5).

Felizes vocês, se forem insultados e perseguidos,

e se disserem todo tipo de calúnia contra vocês, por

causa de mim.

Jesus encerra de forma contundente e categórica seu discurso. Esta bem-aventurança forma uma seqüência com as anteriores, pois trata de injustiças, perseguições e calúnias contra os seguidores do Ressuscitado. Aqui não se trata mais da injustiça social, mas da perseguição religiosa contra a Igreja e seus membros. No livro dos Atos dos Apóstolos lemos que Pedro e os apóstolos se sentiram felizes por haverem sido presos e agredidos por causa de Jesus (At 5,41).

O século XXI reserva muitos riscos aos cristãos. Se na Antiguidade, no início do cristianismo éramos jogados às feras, crucificados ou queimados nas arenas dos romanos. Hoje, o perigo é outro, mas não menos intenso: o compromisso, o anúncio, a denúncia e a crítica faz recair sobre nós muitas perseguições, calúnias e desprezo.

A perseguição e a calúnia não podem nos amedrontar. O cristão não pode (e nem deve) se acovardar, Tudo que é perseguido e boicotado, tem cheiro de cruz, e seguramente está ligado a Cristo, e quem é de Cristo nunca será confundido nem perderá sua recompensa. O “pão” que representa para o mundo as bem-aventuranças de Jesus serve para matar a fome do corpo e do espírito, a fome social, de justiça e de abrigo.

Quando radicalizamos nosso cristianismo, ancorando-o no amor, no serviço e na justiça, atraímos antipatias, ódios e perseguições. Em todos os ambientes, inclusive dentro das igrejas. Mesmo assim veremos que os caminhos do Senhor se abrem para nós, e que a despeito dos perigos, sempre teremos a alegria no Espírito, pois Deus não desampara os que nele crêem.

Fiquem alegres e contentes, porque será grande para

vocês a recompensa no céu. Assim perseguiram os

profetas que vieram antes de vocês.

Este último tópico traz consigo a promessa da recompensa final em favor de todos os que, perseguidos e injustiçados, sentiram-se alegres por serem de Cristo. Jesus quer mostrar o valor da fé e da coragem. Quem perseverar com coragem e dignidade verá seu nome escrito no rol dos felizes merecedores das recompensas do céu: “É uma grande glória seguir o Senhor, porque é dele que receberemos a recompensa” (Eclo 23,38).

A quem se atira corajosamente à missão de ser profeta, estão reservados alguns sofrimentos e incompreensões, mas receberá, na contrapartida, a recompensa que o Senhor reservou aos seus profetas.

Alguns exegetas vêem na mudança da água para o vinho, ocorrida no milagre de Caná (cf. Jo 2,1-11), a passagem, como que uma substituição do velho pelo novo.

Outros identificam o fim do período judaico no Sermão da Montanha, quando o discurso de Jesus (cf. Mt 5, 21-48) estabelece uma “dobradiça” do Antigo para o Novo Testamento, revogando a lei antiga, fundamentada no temor, implantando a lei nova, cuja base é o amor, o perdão e a misericórdia. A partir dessa formulação Jesus exemplifica como a lei de Deus deve ser entendida. Aqui se evidencia o vigor da proposta para uma vida nova.

VOCÊS OUVIRAM O QUE FOI DITO AOS ANTIGOS

EU, PORÉM LHES DIGO

Não matarás!

Quem matar será condenado pelo tribunal. Aquele que ficou com

raiva do seu irmão já se tornou réu perante o tribunal

Não cometa adultério!

Todo aquele que olha para uma mulher e deseja possuí-la, já

cometeu adultério com ela no coração.

Quem se divorciar de sua mulher, lhe dê uma certidão de divórcio!

Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por causa de

adultério, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com

mulher divorciada comete adultério.

Não jure falso, mas cumpra seus juramentos com o Senhor!

Não jurem de modo algum! Nem pelo céu que é trono de Deus, nem

pela terra que é o suporte onde ele apóia os pés.

Olho por olho, dente por dente!

Não se vinguem de quem fez mal a vocês!

Ame o seu próximo e odeie seu inimigo!

Amem os seus inimigos e orem por aqueles que perseguem vocês!

Sejam perfeitos como é perfeito o Pai de vocês que está no céu.

Ao final do “sermão” (7,28) Mateus relata a admiração da multidão, porque Jesus ensinava com autoridade, e não com a vazia retórica dos escribas, fariseus e mestres da lei.

Pregação levada a efeito no retiro dos Padres Barnabitas, em Belém do Pará, em 2002.

Antônio Galvão é autor do livro “O Sermão da Montanha. Uma proposta de Vida Nova”. Ed. Santuário, 1992.